HAND MADE: o décor feito à mão é uma tradição sem previsão para acabar
No Período Neolítico – em 6000 a.C., mais precisamente –, o ser humano aprendeu a polir pedra, fabricar cerâmica e tecer fibras animais e vegetais, suprindo a necessidade de produção de utensílios que auxiliassem sua sobrevivência. Além disso, nasceu a criação de adornos, que começaram a demarcar a capacidade criativa e produtiva como forma de trabalho. Na época, as populações usavam peças produzidas manualmente para caçar, confeccionar roupas e, inclusive, criar pequenas estátuas e pinturas, até chegar ao ponto disso se tornar uma forma de sustento e renda.
Por milênios, o artesanato esteve nas mãos das sociedades. A cerâmica de marajoara, por exemplo, é anterior à colonização portuguesa no Brasil.
Muito antes de 1500, os povos originários da Ilha de Marajó, no Pará, já moldavam e pintavam argila para formar tigelas e vasos – essas criações artísticas, inclusive, estão entre as mais antigas já encontradas por arqueólogos nas Américas.
Os materiais feitos à mão, além de úteis, tomaram conta também do décor dos lares mundo afora, independentemente da cultura ou do contexto histórico, seja com os balaios e as redes de palha de carnaúba do Piauí, com os tapetes turcos, que foram retratados, inclusive, por pintores famosos,
ou até mesmo com as cortinas, que fizeram parte importante da casa de nobres e imperadores chineses.
Em 2021, portanto, o artesanato segue tendo forte influência e participação na sociedade – nas mãos dos artistas e também no universo online, que dissemina cada vez mais os processos de criação à mão. Além de atuar com curadoria de produtos, Bruna Galliano se dedica à produção de conteúdo focada em décor e Do It Yourself (DIY).
Para ela, saber que um trabalho é feito à mão, traz um sentimento de tranquilidade em relação à marca, uma vez que é possível saber quem está por trás da peça, além de garantir que o trabalho e o estudo das pessoas sejam reconhecidos. “Ao mesmo tempo que é pago mais caro pelo trabalho, você contribui para que o profissional tenha um salário decente e tem consciência de que está sendo feito algo com amor. Na indústria, sabemos que as peças são feitas por máquinas ou em uma escala muito absurda, em que, muitas vezes, existe trabalho escravo ou mal remunerado”, destaca Bruna.
Ela narra, ainda, que o feito à mão tem uma ligação muito grande com o sentimental. Quando a pessoa faz suas peças, é como uma terapia. “Tenho certeza que todas as pessoas de que trabalham com um produto feito à mão têm esse momento – de muita introspecção. É uma troca de energia muito bacana entre quem faz e quem consome”, conta a produtora de conteúdo.
E foi justamente como uma forma de terapia que Cynthia Sarmento, fundadora do ateliê de cerâmica Vida Feita à Mão, de Curitiba, jogou-se nesse universo. “Desde o começo, eu via nessa atividade, de montar mesas com louças muito diferentes das que você vê em qualquer lugar, algo muito mais ligado à experiência. A louça é uma moldura para o alimento, então ter uma peça diferenciada faz um alimento muito simples ficar especial”, revela a ceramista.
A artista acredita que a técnica tem algo que só é percebido ao se tocar um produto feito a partir dela – como uma energia diferente. “É um processo que passa pelas mãos de outra pessoa, feito exclusivamente. Passou por um lugarzinho no forno. Por um toque diferente, em um momento diferente. Isso, para mim, é o mais encantador”, acrescenta.
Marcelle Langaro, ceramista idealizadora da Ceramina, marca artesanal feita por mulheres, também em Curitiba, afirma: “Uma cerâmica, com suas formas orgânicas, encaixa perfeitamente nas mãos. Afinal, foram feitas por duas. E esse toque que abraça traz um sentimento de aconchego – é mais humano e real. Uma cerâmica artesanal tem o poder de transformar qualquer momento e deixá-lo mais especial.”
Além disso, Langaro acredita que a relação artesanal com o material faz com que uma louça deixe qualquer comida mais gostosa – por haver, justamente, conexão. “O barro possui uma conexão com o artista. Nos dias em que não estamos bem, ele é mais teimoso – e a produção costuma ter mais problemas. O barro também nos ensina muito: a sermos pacientes, a respirar e a respeitar o tempo do processo”, explica Marcelle, complementando que, além disso, também há um aprendizado sobre a aceitação de que, mesmo seguindo todas as regras e etapas, tudo pode dar errado – e, nessa hora, é preciso saber desapegar.
Cynthia Sarmento ainda lembra que os materiais de cerâmica duram muito tempo e, com isso, podem acompanhar o indivíduo por toda a vida. “Existem peças que duraram 19 mil anos, mesmo com um processo bem mais rudimentar que o de hoje. É um movimento de valorizar coisas com mais significado. Inclusive, a pandemia nos fez dar mais valor a coisas menores. Adquirir e utilizar peças artesanais de cerâmica passa por uma etapa muito mais significativa e sentimental”, compartilha.
EXTENSÃO DO EU
Principalmente por ter uma ligação muito forte com o lar, a Bruna Galliano acredita que a casa é a extensão de quem vive nela.
“Vejo a minha casa como uma continuação de mim, da minha alma e de quem eu sou em determinado momento. Entre as casas em que eu morei, vejo que cada vez mais eu consigo transmitir quem eu sou, tanto na casa quanto nas peças”, revela a artista.
Em São Paulo, no local em que morou antes da sua atual moradia em, Curitiba, passou por um momento difícil, em que se sentia cinza. O lar, consequentemente, possuía a mesma cor. “Naquele momento, fez sentido manter aquela casa cinza. Eu mergulhei no que eu estava sentindo e no que eu era naquele momento”, lembra Bruna, logo acrescentando que, tempos depois, ao se mudar e reformar o novo apartamento, decidiu pintá-lo de branco, “porque era o que queria: uma tela em branco para poder sentir o lar”.
Ela conclui: “É uma troca que eu tenho com todos os ambientes da casa: aos poucos, vou sentindo o que eles têm a oferecer e o que eu preciso deles. Minha casa é toda feita à mão. Ao pintar uma parede estou pensando em coisas aleatórias da minha vida. É um momento de introspecção que eu tenho, seja pintando uma parede, montando um arranjo ou tricotando uma almofada.”
* Matéria originalmente publicada na edição #252 da revista TOPVIEW.