Lembro, logo existo
No final de junho, a Amazon Prime Video lançou a primeira temporada da inquietante série “Sozinhos” (Solos, 2021). São sete episódios que misturam drama e ficção científica, nos quais sete megastars (Anne Hathaway, Helen Mirren, Morgan Freeman, Anthony Mackie, Nicole Beharia, Constance Wu e Uzo Aduba) atuam magistralmente em monólogos ou diálogos intensos, profundos e emocionantes. A neurologia e as neurociências encontram lugar em vários episódios desta série, que tem sido comparada a Black Mirror da Netflix.
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No sétimo episódio, que tem direção de arte e fotografia impecáveis, Morgan Freeman está estupendo como um solitário paciente com doença de Alzheimer vivendo em uma linda casa de repouso à beira mar. Como em outros capítulos da série, estamos no futuro, e a razão para a perda de memória está relacionada ao mau uso de novas tecnologias (isso é muito black mirror!). Ainda mais surpreendente é a narrativa que envolve a tentativa de cura para seu problema. Como resultado, a alegria em sentir que pode ter algumas lembranças é refletida em gritos de: “Eu existo!”
Ver a alegria de Freeman em poder evocar e gravar novas memórias é emocionante, mas a realidade nos remete às limitações do tratamento para as demências no presente. Há muitos anos temos somente os mesmos medicamentos que retardam a evolução dos sintomas. Entretanto, há poucas semanas ficamos boquiabertos com a notícia de que o Food and Drug Administration (FDA), a Anvisa dos americanos, liberou para o uso comercial, ainda que com restrições, o medicamento aducanumab (Biogen, Cambridge, EUA), o primeiro que atua para impedir a progressão da doença. Ele tem ação específica no processo fisiopatológico, removendo as placas de proteína beta- amiloide cerebral nas fases iniciais da doença.
A ideia do uso de medicamentos imunobiológicos para doenças neurodegenerativas não é nova. Há muitas pesquisas nessa área. Já houve muita expectativa e também muita frustração. Quanto ao aducanumab, o último congresso da Academia Americana de Neurologia, em maio, promoveu uma intensa discussão sobre a sua viabilidade, eficácia e segurança. A aprovação pelo FDA não era esperada. Um comunicado oficial da Academia Brasileira de Neurologia salienta que esse medicamento foi testado somente para as fases iniciais, e não tem potencial para cura da doença.
Alertas assim são importantes. A doença de Alzheimer traz uma incapacidade enorme aos pacientes e um sofrimento muito grande a todos que os acompanham. Quando uma agência reguladora com a respeitabilidade do FDA autoriza a comercialização de um medicamento automaticamente é criado um desejo do uso, com uma esperança de efetividade naqueles que amamos. Um correto e pedagógico processo de orientação é muito necessário.
Recentemente tivemos uma experiência diametralmente inversa, e desastrosa, no Brasil. Os brasileiros se familiarizaram com termos como “evidência científica” devido à açodada propagação de alguns medicamentos, como a cloroquina, para o tratamento da Covid-19. A falta de organização e de informação correta pode acarretar usos inadequados de bons medicamentos. Quem perde são os pacientes.
Esperamos não ver pacientes como o personagem interpretado por Freeman no futuro. Claro, porque esperamos ter a cura para doenças degenerativas. Além disso, sabemos que, além da genética, essas doenças têm como causa os nossos hábitos e a ação do meio sobre nosso corpo. Podemos aprender mais sobre como preveni-las. Que saibamos ter uma vida mais saudável e cuidar melhor do meio ambiente.