A (in)sustentável leveza do ser
Não tem como falar sobre natureza sem tratar do cuidado que temos (ou não) com ela. Entra aí um termo que não podemos, igualmente, fugir: a sustentabilidade.
Cuidar da natureza – e, consequentemente, da vida da nossa espécie e de todas as que conhecemos – passa pela quebra do status quo, que ainda mantém, em geral, um modus operandi de extração dos recursos naturais a qualquer custo. A exploração da natureza aumentou drasticamente durante a Revolução Industrial. A natureza já era vista como aquilo que nos serve, que está disponível para saciar nossas necessidades. Mas com a ascensão do capitalismo, o ser humano passou a ter uma maior capacidade técnica e científica para explorar os recursos naturais, como hoje. “A diferença é que hoje o ser humano é muito poderoso, temos um potencial de destruição absurdo. A natureza não nos aguenta mais”, analisa Anor Sganzerla, professor de Filosofia da PUCPR e do mestrado em bioética. Essa é, também, a visão ocidental dominante a respeito da natureza, presente até nos relatos bíblicos. Segundo essa tradição, os seres humanos herdaram um domínio sobre as outras formas de vida, ou seja, são os únicos moralmente importantes e elas não têm um valor por si só. Quem aponta isso é o filósofo australiano Peter Singer, um dos grandes pensadores a respeito do tema, em seu livro Ética Prática.
“Mesmo se não quisermos mudar nossa lógica de consumo e produção, seremos formados nos próximos anos a rever tudo isso. É fato que esse modelo de hoje não vai conseguir se sustentar por muito tempo.”
A bioética surge com a proposta de suscitar reflexões e mudanças na forma como a sociedade e os cidadãos se relacionam com a natureza. “Sempre nos achamos no direito de usufruir de tudo que tem na natureza, mas dentro dessa bioética global nasce uma outra perspectiva”, explica Sganzerla. “A bioética é algo que incomoda, pois acaba sendo algo que se opõe a este modelo em que nós humanos passamos a dominar a natureza, opõe-se a essa exploração da natureza sem limites.”
O conceito de bioética é recente e passou por várias mudanças ao longo dos anos, explica Sganzerla. Mas a concepção mais atual, chamada de bioética global, consiste no reconhecimento de que a saúde humana depende da saúde da natureza, cultural e social.
Para o antropólogo Henrique Ressel, o que vemos é um salto de paradigma na maneira como encaramos a natureza. A cosmovisão predominante coloca o homem como o centro do universo, como um ser que está acima e fora da natureza. Mas, cada vez mais, a ciência e as espiritualidades (como temazcal, meditação, yoga, entre outras) estão mostrando que o homem é a natureza e está lado a lado com tudo, num círculo. “A humanidade está chegando num novo estágio de consciência para escolher como viver. Isso é uma troca de era. Foi-se a época do conhecimento, que agora está a disposição, e entramos numa era de sabedoria, para saber como usar o conhecimento. É um movimento da própria humanidade na Terra, e mais que isso, da própria Terra, ela em si está passando por transformações nítidas”, defende.
Ressel também compartilha cerimônias nativas, yoga e meditação e fez sua dissertação de mestrado sobre as espiritualidades na atualidade. Em suas pesquisas, viu como nosso entendimento de mundo é estranho aos nativos americanos, por exemplo. “Eles não chamam a Terra de ‘recursos naturais’, eles chamam de Pachamama. Para eles, é uma família. Esse é o entendimento de vida na Terra, de que tudo está interconecta-do, de que os rios são irmãos e toda a cadeia de vida funciona com interdependência”, conta.
DICAS PARA REFLETIR
Três livros para refletir sobre bioética e nossa relação com a natureza, segundo Anor Sganzerla.
- O Princípio da Responsabilidade: Ensaio de uma Ética para a Civilização Tecnológica – Hanz Jonas: “O livro trata da necessidade de criar uma nova ética diante da sociedade tecnológica, que tem coisas boas, mas também destrói a natureza.”;
- Bioética Ambiental – Anor Sganzerla, Patricia Maria Forte e Valquíria Eita Renk: “O livro foi organizado por mim [Anor] e colegas. Trata da nossa relação com a natureza, com a água, o sol, o solo, o meio ambiente.”;
- Ética Prática – Peter Singer: “O autor é uma das maiores referências no tema. O livro fala da relação dos humanos com a natureza e os animais.”
A discussão se torna cada vez mais urgente quanto maior o nível de adensamento das construções nas cidades e das mudanças climáticas. Singer trata da chamada “ecologia profunda”, uma alternativa ao pensamento ecológico superficial, no qual o esforço de preservar a natureza é realizado para que o ser humano continue a usufruir de seus prazeres. Já na ecologia profunda, há um valor intrínseco na biosfera por si só, independentemente do que ela pode oferecer aos humanos. Propõe-se uma igualdade biocêntrica, em que todas as coisas têm o mesmo direito de viver e fazem parte de um todo, com todos os organismos e entidades integrados e tendo o mesmo valor.
Os direitos da Pachamama
Há sociedades e até Estados que encaram a natureza de outra maneira. É o caso da nova constituição do Equador de 2008. A principal mudança que ela traz é o conceito dos direitos da natureza: a partir de então, Pachamama (termo indígena que significa Mãe Terra), passa a ser tratada como um organismo vivo e, portanto, digno de tutela constitucional. Ou seja, passa a ser compreendida como sujeito de direito.
Em suma, ela deixa de ser vista como “algo” e passa a ser vista como “alguém”. Na Constituição brasileira, ela é vista como um bem coletivo e quem é o sujeito do direito são as pessoas, que devem ter acesso a um meio ambiente saudável. Já na equatoriana, a própria natureza é a titular do direito. “Por mais que o índio seja visto como museu, algo do passado, a visão dele, na verdade, é a visão do futuro. É a preocupação com as próximas gerações e um entendimento dos ciclos da floresta. E nós estamos voltando para essa origem, para essa ancestralidade.”O pesquisador Sganzerla vê um grande avanço com relação aos animais e ao meio ambiente nos últimos anos e acredita que outros países farão o mesmo movimento realizado no Equador. “O desafio é grande porque precisamos de um novo paradigma, precisamos mudar o núcleo, que ainda compreende o direito de exploração humana sobre a natureza.” Inclui nessa lista o Brasil, que tem visto “as políticas nesse sentido só pioraram nos últimos tempos.”É preciso, então, transformar a maneira como pensamos em nosso uso do que a natureza tem.
Sganzerla sugere parar de pensar essa relação a partir de uma perspectiva de abundância e começar a pensá-la de uma perspectiva de escassez. “Entende-se que historicamente a água seria abundante e sempre existia, por isso temos dificuldade de entender que ela pode acabar. Precisamos pensar em uma nova bioética a partir da escassez dos recursos naturais”, defende. “É fato que esse modelo de hoje não vai conseguir se sustentar por muito tempo. A ideia de que os recursos naturais são ilimitados é equivocada.”Outro caminho importante para essa ideia atingir o mainstream é a educação. Para Ressel, estamos ensinando a história errada. “O conhecimento que nos é colocado é de conquista e colonização do pensamento humano. A volta para a natureza é [um movimento de] descolonizar o pensamento, é ouvir a natureza. É o que qualquer espiritualidade está buscando também, ir além de si.”
Confira aqui a matéria completa:
O retorno à natureza
Natureza: uma volta para casa
Cidades biofílicas e a natureza em contexto urbano
*Matéria originalmente publicada na edição 234 da revista TOPVIEW.