Os possíveis caminhos da construção
Diante de um futuro ainda incerto, especialistas tentam esboçar as transformações e os movimentos que prometem atingir o setor. Descarbonização, espaços de desinfecção, soluções da indústria 4.0 e cidades inteligentes são algumas das direções.
Um corredor alto, ladeado por paredes brancas, sem quadros ou qualquer decoração. Cômodos igualmente sem cor e com poucos ornamentos, em uma estética limpa, clara e minimalista. Essa é a mansão da empresária Kim Kardashian West e do rapper Kanye West, divulgada pela revista Architectural Digest, que chamou a atenção por seu estilo inusitado. O artista a define como um “mosteiro futurista belga”. Já a revista a classifica como “uma das mais fascinantes, de outro planeta e, sim, estranhas peças de arquitetura doméstica no mundo”.
Nas mídias sociais, causou estranheza.
A casa lembra um estilo arquitetônico que voltou à tona recentemente por conta de suas relações com a saúde: o movimento modernista. As características da arquitetura moderna – que foi muito presente entre as décadas de 1920 e 1970 – foram interpretadas por alguns historiadores como uma espécie de resposta às crises de saúde da época, como os surtos de febre tifoide, cólera, tuberculose e gripe. Entre os exemplos, estão o uso de linhas simples e geometrias estritas e a exclusão de itens ornamentados com espaços que pudessem acumular micróbios.
Então, uma pergunta ronda a discussão: a Covid-19 pode ser tão impactante a ponto de transformar ou desencadear um novo estilo arquitetônico? O relatório de tendências do estúdio Roar, de Dubai, afirma que sim. Os profissionais defendem que uma nova forma de arquitetura modernista pode surgir, influenciada por razões parecidas com as do século passado: facilidade de higienização para eliminar contaminação por doenças.
Independentemente das mudanças (ou não) no estilo arquitetônico, especialistas acreditam que a relação com a casa foi alterada pelo tempo de quarentena. “Mudou a forma como as pessoas enxergam seus lares. O que antes era um espaço para descanso, agora é também escola, trabalho, lazer e até academia. É nesse contexto que a demanda por ambientes dinâmicos e espaços funcionais torna-se de extrema relevância”, observa o empresário Leonardo Yoshii, proprietário da construtora A.Yoshii.
Isso desafia o caminho que a indústria vinha trilhando, com apartamentos menores e compactos. Yoshii aponta que um aspecto relevante nesse momento é o espaço para a higienização e a desinfecção ao se chegar em casa. “[Precisaremos de] uma área em que o morador possa tirar os sapatos, casacos, e prevenir sua família da possível contaminação que traz da rua.”
Pensar nos detalhes de funcionalidade da casa não é novidade para os profissionais do Y Arquitetos. A metodologia usada por eles vai na contramão do que criticam no setor: a generalização e a falta de foco nos clientes. “As casas [hoje] têm a cara dos arquitetos; achamos isso muito errado. A casa tem que ter a cara dos clientes. Quando se mostra um projeto, conta-se pouco a história dos clientes”, enfatiza o arquiteto Lucas Issey,
um dos fundadores. Por isso, em projetos residenciais, priorizam, antes de qualquer outra etapa, meses de conversa com os futuros moradores.
“Todo sistema muito homogêneo é bastante frágil em qualquer tipo de crise. A cidade vai ter que se reinventar para ser mais heterogênea.” – Lucas Issey
“Ficamos entre três a seis meses apenas conversando sobre aspectos da casa com eles, sem apresentar nenhum desenho ou proposta de projeto. Mas criamos teorias sobre assuntos que possamos discutir, [como, por exemplo] o que são os espaços públicos, sociais, íntimos, o que é viver nesta nova era, como é a vida hoje e como será em 30 anos”, exemplifica.
Um dos projetos ganhou atenção neste ano: uma planta que coloca o banheiro na entrada do imóvel. O formato incomum não foi idealizado por conta da pandemia, mas, sim, porque a proprietária da casa é médica e tinha a higienização como ritual mais importante ao chegar à residência. “É quase um trabalho psicológico [o processo], de deixar os clientes à vontade para contarem suas peculiaridades, mostrando para eles como são indivíduos com idiossincrasias e precisam de uma residência específica.” Uma das etapas, por exemplo, é medir os moradores. “O [conceito de] padrão é muito ruim. Quando a gente normatiza as coisas, não deixamos ninguém feliz, só uma minoria”, reitera.
Reflexos da nossa época
Com as novas atribuições da casa, os espaços precisaram ser adaptados. Por enquanto, muito home office tem sido, na verdade, um trabalho remoto arranjado, com caráter temporário. A mesa e as cadeiras do jantar foram emprestadas para o “escritório”, tudo sem muita ergonomia. Às vezes, até o sofá entra no rearranjo. William Hara, futurista, arquiteto e especialista em inovação e novas economias, acredita que o trabalho a distância chegou para ficar. “As empresas estão devolvendo andares de escritórios. No futuro, dificilmente vão querer alugar novamente para ter todos os departamentos juntos”, reflete.
A arquitetura do comércio passa por um grande desafio com o fim da quarentena. Como continuar as atividades e, ainda assim, evitar a contaminação?
“Acredito que as pessoas vão dar preferência aos restaurantes que começarem a abrir mão do enclausuramento.” – William Hara
Algumas soluções surgiram, como cabines de vidro para duas pessoas e redomas de vidro individuais. A utilização do espaço externo também pode ajudar. “Precisamos levar a experiência do restaurante para fora. As cidades que foram minimamente projetadas têm espaço na calçada. Acredito que as pessoas vão dar preferência aos restaurantes que começarem a abrir mão do enclausuramento”, examina Hara.
Isso se conecta, também, com as funções sociais da arquitetura. “Uma delas é ocupar os espaços urbanos. Então, se o restaurante, que é uma empresa privada, consegue criar meios para que as pessoas usem o espaço público, é um ganha-ganha”, explica. “A rua, quando é ocupada, ganha vida, movimenta o comércio, além de criar ‘olhos da rua’, que diminuem a violência e as atividades ilícitas.” Grandes metrópoles mundiais, como Paris e Barcelona, são exemplos na utilização dos espaços externos.
A procura por ambientes abertos pode afetar outros tipos de estabelecimento, como os shoppings. “A tendência é a lógica atual se inverter: ter menos espaços enclausurados, que são as lojas em si, por exemplo, e tirar o teto dos corredores. Os corredores devem ter ar puro e respirável”, exemplifica o futurista.
O relatório da Roar aponta que a estética escapista pode ganhar força em estabelecimentos públicos. A ideia é que, com menos pessoas saindo para comer, a experiência precise ser “ligeiramente surreal”. As “cozinhas-fantasmas” também conquistaram espaço. O conceito surgiu com a popularização dos aplicativos de entrega de comida e representa os restaurantes que não possuem espaço físico para os clientes – são apenas virtuais.
Em uma matéria da BBC, a líder do projeto Rappi Dark Kitchens para a América Latina, Stephanie Gómez, conta que, em março, já somavam 230 cozinhas-fantasmas. Issey, do Y Arquitetos, questiona a própria relação com as tendências do setor.
Para comércio e varejo, a metodologia do escritório busca entender para aonde as coisas estão andando e não pegar esse caminho. “Se vermos que é uma tendência, sabemos que todo mundo vai usar isso. Temos uma teoria interna sobre tendência e destino. A tendência é um fluxo natural e orgânico, mas o destino é algo importante, é a delimitação individual, uma decisão humana do rumo das coisas. Tentamos achar um novo destino para a tendência”, resume.
As demandas mais urgentes
Em meio às previsões e expectativas do que virá – ou permanecerá – no mundo pós-Covid, Otavio Zarvos, fundador da incorporadora Idea!Zarvos, aponta problemas mais urgentes a serem resolvidos no cenário da construção civil brasileira. “Temos um déficit habitacional absurdo, que ficou mais claro com a pandemia. Temos a maioria da população vivendo de maneira miserável. A gente tem que, primeiro, resolver as favelas”, ressalta.
Sobre os impactos da pandemia na indústria, é preciso discutir soluções coletivas. Zarvos defende que a lição dessa experiência não deve ser mexer dentro dos condomínios, mas cobrar soluções do poder público. “Temos que preparar as cidades com hospitais e centros de saúde e higiene, para que, na próxima vez, se acontecer, estejamos preparados para isso enquanto cidade – não individualmente. Todas essas soluções individuais – como se fechar dentro de um condomínio ou viver isolado –, ao meu ver, são bastante maléficas para a sociedade”, afirma.
Issey acredita que, sem resolver questões de base, como saneamento básico, vai ser difícil experimentar e explorar novos horizontes. Hoje, 47% da população brasileira não tem acesso a sistemas de esgoto e precisa utilizar outras medidas para descartar os dejetos. Os dados são do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS).
Um dos grandes problemas ambientais do país ocorre aí, quando o esgoto é jogado em rios. O urbanismo é ferramenta essencial para pensar em saídas, já que impacta, também, as construções em si – e vice-versa. “É uma coisa que, às vezes, é relegada a segundo plano e ninguém entende muito bem, mas o urbanismo é uma coisa objetiva, é como matemática”, diz Zarvos.
O principal desafio do setor, hoje, é trazer a população mais pobre para morar perto dos melhores empregos. “A sociedade é muito elitista. Quem faz as leis procura sempre afastar o pessoal mais pobre”, opina. As habitações sociais, por exemplo, devem ser construídas no centro, o que melhoraria problemas de mobilidade e
poluição.
Para pensar em uma cidade saudável, é preciso, também, levar em conta sua heterogeneidade. “Todo sistema muito homogêneo é bastante frágil em qualquer tipo de crise. A cidade vai ter que se reinventar para ser mais heterogênea”, observa Issey. Isso ainda leva em conta uma utilização mais eficaz da área central, problema presente, por exemplo, no urbanismo de Curitiba, aponta o arquiteto.
“Lutamos contra o genérico, aquilo que todo mundo quer, para buscar o específico, com autoconhecimento para entender o que é melhor para cada um.” – Lucas Issey
Perspectivas do mercado imobiliário
Essa crise é um grande divisor de águas, defende Hara. “Esse vai ser o teste final de que tipo de modelo de indústria e de negócio vai sobreviver daqui para frente. Um modelo mais antigo de economia tinha uma visão de que dá para produzir e desperdiçar eternamente. Acredito que esse tipo de modelo está fadado [ao fracasso] daqui pra frente”, analisa.
Adaptações já estão sendo feitas. Foi o caso da construtora A.Yoshii, que investe, desde 2019, em um processo de digitalização de vendas e oportunidades de negócios. Para o pré-lançamento do empreendimento Talent, ela utilizou essas estratégias digitais, como tour virtual 360° no decorado, vídeos, fôlder digital, além de atendimento remoto e personalizado via Skype e Zoom.
O Glória Residence, outro empreendimento do grupo, em Londrina (PR), também seguiu a mesma direção e obteve bons resultados: antes do lançamento oficial, já tinha 40% das unidades vendidas. “Vejo um cenário otimista para a construção civil nos próximos anos. Antes da pandemia, o setor imobiliário apresentava uma retomada lenta, porém, consistente. Atualmente, vejo que a taxa Selic é um grande motivador para a compra e venda de imóveis – nos últimos meses, apresenta-se como a mais baixa já vista na história do país”, observa Yoshii.
A incorporadora do segmento de alto padrão AG7 Realty, de Curitiba, também viu o rendimento de sua adaptação em meio à pandemia. Com reforço da presença digital e ações sociais, registraram mais de 25 milhões em vendas, entre março e julho.
Para aqueles que têm interesse, um retorno ao campo começou a parecer uma boa ideia. A procura por casas de campo cresceu 52% em março, em comparação a fevereiro, na plataforma de imóveis Imovelweb. Quando comparado ao mesmo período do ano anterior, o aumento foi de 124%. O engenheiro ambiental e civil Altair Rosa relaciona a busca ao movimento de bem-estar. “Estão trocando o modo de vida. Saíram do meio urbano, totalmente agitado e com infraestrutura, procurando qualidade de vida de uma outra forma”, analisa. Ele acredita, também, que a evolução da tecnologia é uma facilitadora no processo.
*Matéria originalmente publicada na edição #238 da revista TOPVIEW.
Confira a segunda parte desta matéria em: Reflexos da Quarta Revolução Industrial
Confira a última parte desta matéria em: Sustentabilidade e soluções ecoeficientes