A diretora que retrata a guerra em peças de teatro
Ao final de uma encenação em especial, entre as mais de 400 apresentações de O malefício da mariposa, de Federico García Lorca, os integrantes da Ave Lola sentiram um frio na barriga.
Na plateia, ninguém aplaudia, ninguém dava um pio, ninguém se mexia. Até que soaram as palmas – 140 pessoas bateram as mãos por três vezes. E silêncio novamente. O público não deixava seus lugares e a trupe se entreolhava, imóvel. O impasse durou até que um velho senhor se levantou: “De novo!”.
Essa é uma história que Ana Rosa Tezza, diretora e cofundadora da companhia Ave Lola, conta para ilustrar o fascínio mútuo entre público e trupe que caracterizou os projetos Fronteiras do Norte e Ave Lola Rumo ao Rio Negro. Naquela noite, sua plateia era composta pela comunidade do rio Uatumã, que nunca havia assistido a uma peça de teatro – tampouco estava habituada a convenções como aplaudir os artistas ao fim de uma apresentação. “Acho que essa foi uma das maiores alegrias da minha vida”, ela comentou sobre a cena.
Os dois projetos foram realizados no final de 2015. O grupo de 21 profissionais passou dois meses e meio se apresentando e realizando debates e oficinas em cidades fronteiriças e comunidades ribeirinhas como Alter do Chão, Oriximiná, São Francisco do Caribi e Guajará-Mirim, no Norte brasileiro. Calor de 45º C, longas horas de viagem por estrada, ar e rio, encontros, surpresas – a turnê condensa características centrais da Ave Lola: o senso de trupe, o amor pelo teatro e o compromisso com a sociedade.
Como diretora da companhia curitibana, formada há quatro anos, Ana Rosa Tezza é a personificação de tais valores. Tanto no premiado Malefício (2012) – história trágica de jovens apaixonados que mesclou atores e bonecos no palco – quanto no sucesso de público e crítica Tchekhov (2013) – ambientado no universo do escritor e dramaturgo russo –, ela se preocupa em transportar o espectador para um mundo onírico, que não é desprovido de reflexão sobre questões correntes.
“É a partir da poesia que a gente transgride – ela transgride a ordem”, afirmou a diretora numa manhã de fevereiro. “Toda a racionalização é possível, mas quando vê uma obra do Sebastião Salgado, você se arrepia. E pensa sobre o que está vendo depois. E só quer continuar pensando sobre aquilo porque aquilo te tocou o coração.”
Aos 47 anos, Ana Rosa é extrovertida, budista, exigente, passional e orgulhosa de ser romântica e otimista. Aparenta ser mais coração, mas também é cérebro. Se sonha com o dia em que seus atores serão bem remunerados, se almeja que a população valorize e seja tocada pelo teatro – está trabalhando para isso com a sua equipe.
Não hesita em vestir a “roupa de captar verba” ou ligar para empresas propondo parcerias e permutas, além de manter um planejamento rigoroso com a sócia, Janine de Campos. Um “clube de amigos” faz doações diretas à companhia, que também possui bom retorno com as sessões do “pague o quanto vale”, em que o público paga o ingresso ao final do espetáculo, no valor que achar justo.
São medidas que visam envolver a sociedade civil na manutenção do grupo e do espaço, que Ana Rosa também considera público: “Ele serve à cidade, ao seu universo imaginário, à construção simbólica dos nossos cidadãos”. Ainda assim, em 2015, que foi um bom ano, a companhia conseguiu somente pagar os gastos.
A responsabilidade perante a sociedade molda algo na linguagem do grupo. Há, claro, o desejo de buscar novos caminhos, de se desafiar. A pesquisa é parte essencial desse trabalho. Para Ana Rosa, no entanto, a linguagem deve ser compatível com o diálogo e encantamento do público. “O que buscamos como pesquisa não é a inovação de linguagem. Acho isso muito pretensioso. O teatro já fez tudo.”
O que é possível, então, fazer hoje? “É experimentar no teu corpo, com a tua história essa linguagem, e ela vai aparecer em você de outro jeito. Ela não é uma novidade. Ela é de novo”, definiu a diretora, com a fala rápida, urgente, que lhe é característica.
Dar forma à dor
Brinca-se que o Espaço Ave Lola, no bairro São Francisco, é a casa da mãe Joana. A companhia é conhecida justamente pela hospitalidade: antes dos espetáculos, o público é recebido com uma pequena refeição – borsch e vodca, no caso de Tchekhov – e fica livre para circular pelo imenso jardim dessa casa com um pequeno teatro (cerca de 45 lugares) adaptado.
É um tempo para que se dispam das preocupações cotidianas e possam fruir a peça. Entre temporadas, não é diferente. Amigos chegam para assistir aos ensaios, conhecidos sentam para um café e por aí vai. O espaço é propício: amplo e agradável, acolhedor. Às vezes, fica uma loucura.
A Ave Lola é uma trupe diversificada. Seus integrantes vêm de diferentes áreas, têm idades distintas e desenvolvem projetos paralelos. O número de colaboradores varia, mas nunca é menor do que 15, como no próximo espetáculo, que estreia na Mostra Oficial do Festival de Curitiba.
O ambiente coletivo, em que todos participam da construção da peça, com tempo generoso para pesquisar e abertura para debate, pode soar algo hippie. “Existe uma democracia do ponto de vista da escuta”, refuta Ana Rosa, que não acredita em companhias lideradas por “300 pessoas ao mesmo tempo”. A trupe é como um barco ao qual propõe a direção e todos remam juntos.
Nuon é exemplo dessa embarcação. No espetáculo inspirado em Phaly Nuon – cambojana que no regime do Khmer Vermelho ajudou outras mulheres traumatizadas –, o processo fluiu inesperadamente. Mas são, afinal, quatro anos juntos. Mesmo com a sincronia, o projeto foi especialmente difícil. Muita pesquisa foi feita – sobre a biografia da personagem, a história do Camboja, o período sob o comando de Pol Pot –, totalizando um ano de “aprendizado básico”.
Eles entravam na sala de ensaio mas percebiam que não sabiam o suficiente. A própria temática, envolta por violência e miséria, fez com que quase desistissem. “Como falar sobre aquilo?”, se perguntavam. “Era tão absurdo que eu falava: tudo o que fizer em cena vai ser menor do que a tragédia pela qual aquele povo passou”, lembra Ana Rosa.
A proposta de maquiagem que a carioca Maria Délia elaborou para Nuon tinha como referência bonecos de madeira cambojanos. A partir das leituras iniciais dos atores, a artista criou uma verdadeira pintura, formando um rosto belo – demais. Como usar algo tão lindo para falar de tanta dor?
O incômodo transformou-se em solução para a diretora: “Não preciso ficar sublinhando, passando um marca-texto na miséria, porque ela já está dada, está no texto, está no que aconteceu”. O universo que leva ao Festival tende mais ao imaginário, a partir da forte ligação com os espíritos na cultura oriental. São eles que sobem ao palco para revisitar suas memórias.
O limite da poetização de um personagem que existiu, de um fato histórico, não está dado. Mas é evidente para Ana Rosa. A diretora, que antes trabalhou como atriz, deixa a equipe livre para avançar na licença poética, desde que sinta que é verdade. E apesar de ser uma encenação e uma ficção, essa “verdade” é perceptível. “Tem alguma humanidade ali”, explica. “Por mais que seja com uma peruca, com uma roupa toda esquisita, é evidentemente verdade!”
Ainda que seja um evento de décadas atrás, tão longe do Brasil, o desejo de abordá-lo em Nuon vem de sua relação íntima com o aqui e agora. “O ser humano precisa se enxergar de novo como um coletivo. Como espécie, mais do que como indivíduo”, afirma a diretora, enfática e arrasada com os tempos de guerra que não cessam. Nem mesmo frente a esse fracasso do homem ela parece duvidar da potência do teatro.
É como se vivesse por aquele instante, por mais breve que seja, em que vê o encanto nos olhos do público. “Hoje, na minha idade, já quase nada me importa muito”, comentou ao final da entrevista. “Me importa fazer o sonho. Eu quero fazer a peça do jeito que gosto de ver. E quero ver o público lá, gostando comigo.”