SELF

Moda em movimento

Hanayrá Negreiros, curadora de moda do MASP, falou com exclusividade à TOPVIEW sobre as transformações do setor

Ela investiga, costura e escreve histórias sobre negras maneiras de vestir. Hanayrá Negreiros, curadora adjunta de moda do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP), mestra em Ciência da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e bacharela em Moda pela Universidade Anhembi Morumbi (UAM), integra o grupo de pesquisa INDUMENTA – Dress and Textiles Studies in Brazil, vinculado à Universidade Federal de Goiás (UFG). Além disso, é membro do Núcleo de Pesquisas em Modas Africanas e Afro-diaspóricas. Portanto, evidenciando as transformações que têm acontecido no setor da moda – principalmente no ano em que a São Paulo Fashion Week, principal semana de moda da América Latina, bateu recorde de participação de pessoas negras –, a pesquisadora e professora falou com exclusividade à TOPVIEW sobre as novas movimentações no mundo da moda. Confira:

Resgatar a memória afro-brasileira a partir da moda pode ser uma forma de transformar o setor?

Imagens do livro Conflict and Costume: The Herero Tribe of Namibia (Foto: Jim Naughten)

Essas pautas são muito importantes. Tanto as histórias afro-brasileiras, africanas e indígenas quanto as dos povos originários são superimportantes para conseguirmos mudar um pouco a dinâmica da história e do mercado da moda, que ainda são muito baseados no contexto e no modelo europeu. Então, quando conseguimos jogar luz nessas narrativas e resgatar essas histórias, fazemos com que todo o mercado se beneficie. E essas histórias mais plurais fazem total sentido, afinal, o Brasil é plural e diverso.

Neste ano, orixás foram levados à São Paulo Fashion Week. Para você, quais impactos isso causou  e continua causando – à moda?

Achei muito bacana todo o movimento do projeto Sankofa. Antes, talvez, essas narrativas até apareciam uma vez ou outra nas semanas de moda, mas geralmente a partir de olhares brancos ou de estilistas brancos que ali olhavam para essas histórias. Nesse caso, temos essas narrativas sendo enunciadas por pessoas negras, por vivências afro-brasileiras. Acho que isso já é um ponto importante a ser ressaltado. Acho muito legal quando a gente consegue trazer essas estéticas de terreiro, dos povos tradicionais, de uma maneira respeitosa, para as passarelas, afim de que se desmitifique. É uma forma de educação. Acredito que a moda tem esse potencial. Acredito no lugar dessas narrativas como formas de potencializar a educação da nossa população.

E qual é a principal importância da moda afro ocupar esses espaços?

Imagens do livro Conflict and Costume: The Herero Tribe of Namibia (Foto: Jim Naughten)

Além dos espaços fashion, desse universo das semanas de moda, dos estilistas, a gente tem uma presença muito importante e significativa da moda brasileira com pessoas negras. Gosto sempre de voltar um pouquinho ao passado e pensar nas costureiras negras que trabalhavam ainda
escravizadas para as modistas, para as lavadeiras, as passadeiras, as engomadeiras, os alfaiates. Todo esse pessoal compunha uma parte muito importante do vestir brasileiro – e muitas dessas pessoas eram negras. Quando esses corpos negros ocupavam esses espaços, eram subalternizados, uma condição imposta. Fazendo um salto para o século XXI, é de suma importância resgatar essas histórias para percebermos que a presença de pessoas negras na moda não é de hoje. Portanto, pensando no século XXI, ocupar esses espaços de poder, como a SPFW e a curadoria de moda do MASP, também é importante para dar continuidade a essas narrativas, que já existem há muito tempo.

Estudar e documentar as modas afro são formas de quebrar construções sociais?

Imagens do livro Conflict and Costume: The Herero Tribe of Namibia (Foto: Jim Naughten)

Com certeza. A gente tem um grande problema no ensino brasileiro de moda. Respeito muito todas as professoras e professores que tive, mas lembro da minha frustração quando me formei. Ali, eu ainda não tinha tanta conexão com histórias negras, africanas, estava começando, mas eu senti muita falta disso na grade curricular. Quando a gente tem aula de história da moda, não vemos história africana ou história da moda indígena. Acho que é fundamental que as universidades de moda se revisitem, se olhem e pensem a partir dessas perspectivas decoloniais. Pensando no norte global, Europa e Estados Unidos são superimportantes, influenciaram a moda global, mas existem outras histórias da moda para serem contadas.

A moda, portanto, pode ser usada como ferramenta de fortalecimento das identidades culturais?

Acho que aí entramos em uma questão que é a de também desassociar o universo da moda daquele do consumo. É pensar moda como arte. A professora Gilda de Melo e Sousa já falava isso na década de 1980, quando ela lançou o livro O espírito das roupas, onde ela propunha o estudo da moda, da estética, também como uma forma de arte: a arte do vestir. Há muitas possibilidades de leitura da moda que extrapolam o mercado, o consumo e as vendas. Obviamente, isso é superimportante porque compramos e vendemos roupa, mas a moda é cultura, é comportamento, é comunicação. Quando a gente consegue expandir o olhar sobre o que entendemos por moda e colocá-la como ferramenta de combate ao racismo, de empoderamento, acho que é possível entrar em um lugar mais amplo.

A sociedade influencia a moda ou a moda influencia a sociedade? Há como definir?

Imagens do livro Conflict and Costume: The Herero Tribe of Namibia (Foto: Jim Naughten)

Essa é a grande encruzilhada da moda. Se a gente for pensar nas inspirações dos estilistas, do que aparece nas semanas de moda desde muito tempo, é olhando as ruas, olhando as manifestações culturais, olhando povos muitas vezes tradicionais. É uma via de mão dupla. Acho que a gente não consegue separar. É até legal quando a gente não separa, porque há essas possibilidades diversas que enriquecem a conversa e o nosso entendimento sobre o tema.


REGISTRO EM FOTOS 

(Foto: Divulgação)

LIVRO:
Conflict and Costume: The Herero Tribe of Namibia
Jim Naughten – Merrell


PARA REFLETIR

(Foto: Divulgação)

LIVRO:
Memórias Ancoradas em Corpos Negros 
Maria Antonieta Antonacci – EDUC

(Foto: Divulgação)

LIVRO:
Joias de Crioula 
Laura Cunha, Thomas Milz e Mary Lou Paris – Terceiro Nome


*Matéria originalmente publicada na edição #252 da revista TOPVIEW.

Deixe um comentário