“Cores Que Acolhem”: conheça o projeto que resgata a autoestima de curados do câncer
A tatuadora Bárbara Nhiemetz estava beirando os sete meses de gestação quando seu filho nasceu, prematuro, e precisou passar um tempo na UTI Neonatal para ganhar peso. Quando tudo parecia bem e o bebê pronto para ir para casa, um novo baque: exames revelaram que ele tinha uma tumoração na axila. Não era a primeira vez que Bárbara via um familiar bastante próximo lutar contra um câncer – a mãe dela teve um câncer de mama quando a tatuadora era criança, mas foi ali que ela começou a pensar em formas de ajudar pacientes da doença.
Assim, surgiu o projeto “Cores Que Acolhem”, que faz Bárbara dividir seu tempo entre os clientes do estúdio Bárbara INK Tattoo e pessoas que sobreviveram a um câncer e veem na tatuagem uma forma de aceitar e superar essa fase de suas vidas. Atendendo desde 2015, o projeto gratuito cobre cicatrizes decorrentes de cirurgias para remoção de tumores. Em três anos, a tatuadora atendeu mais de 100 pessoas, ajudando a melhorar a autoestima de cada uma delas. À TOPVIEW, Bárbara contou um pouco mais sobre o projeto e a inspiração para ele.
A história do “Cores que acolhem” é muito relacionada à sua família. Conta para nós como tudo começou.
A primeira pessoa que eu atendi foi a minha mãe, ela que me incentivou a dar início. Há 19 anos ela teve câncer de mama. Quando ela descobriu o tumor, eu tinha cerca de sete anos e, por ser filha única, vivenciei de perto os tratamentos e todas questões da doença. Sempre fui a criança que gostou de arte e de desenhar no corpo dela, então quando ela já havia cicatrizado da cirurgia comecei a perguntar se poderia desenhar na área da mama. Quando ela olhava os desenhos ficava muito mais feliz do quando se via sem a mama – algo que era recente pra ela. Desenhar nas pessoas era algo que me trazia satisfação, principalmente, por ver a reação delas quando recebiam a arte.
Em 2014, meu filho nasceu beirando os sete meses, e logo após ele sair da UTI, descobrimos que ele estava com uma tumoração na axila. A cirurgia foi feita após ele ter peso suficiente e foram retirados três tumores. A partir do momento que vivenciei tudo aquilo com meu filho, foi um baque dez milhões de vezes pior. Filho parece que é parte da gente, você quer tirar a dor e colocar em você. Óbvio que com minha mãe foi uma dor terrível, mas como tinha pouca idade, não tinha conhecimento suficiente. Eu e meu esposo, Thiago, pensamos em uma forma de ajudar as pessoas que tiveram câncer, justamente por ser algo presente nas nossas famílias. Já atendia as pacientes oncológicas antes, então decidi fazer o que amo e faço de melhor no momento que meu filho ganhou alta. Era uma forma de agradecer a todos familiares que sobreviveram à doença, porque infelizmente acabamos perdendo alguns deles.
Quem você atende hoje?
O Cores Que Acolhem é um trabalho voluntário que acontece toda segunda-feira, 100% gratuito. Porém ainda existem alguns pré-requisitos para que as pessoas tenham acesso a esse benefício. O primeiro deles é que o tratamento da doença tem que estar completo, a pessoa não pode estar fazendo quimio ou radioterapia, e precisa ter um ano completo de operação. Ela não pode vir a ter novas operações no local para não perder o procedimento. A partir do momento que ela tem o laudo médico a autorizando e estando apta para receber a técnica, ela entra em contato conosco, passa por uma avaliação e, em seguida, consegue agendar uma data. Não atendemos só mulheres, atendemos homens também, desde que todas as cicatrizes sejam oriundas do câncer. Infelizmente não temos condição de ajudar todos que têm cicatriz, então acaba sendo direcionado para pessoas que passaram pela doença. Como a gente vivenciou muito de perto, sei a necessidade emocional que essas pessoas têm. É muito triste se olhar no espelho e encarar uma marca de uma doença que vem silenciosa. Nem sempre você consegue prever. Assim como aconteceu com a minha mãe, já adulta, e com meu filho com dois meses de vida.
Leia também: Cirurgia mamária, por Dr. Leo Francisco Leone Junior
Cada cliente traz consigo uma necessidade diferente. Como é essa primeira conversa?
No começo, a conversa é mais formal, por meio de um e-mail em que é pedido toda a documentação e é explicado como funciona o Cores. Em um segundo momento, é agendada a avaliação e vejo qual é a necessidade, se é reconstituir mamilo, se é cobrir cicatriz. É nesse momento que os pacientes contam a história deles, há quanto tempo foi, como foi o envolvimento familiar, e esse é um contato muito importante. É um meio de acalmar o coração deles, porque é uma doença muito traiçoeira que vem sem pedir permissão. Leva uma parte muito grande do emocional e da vida deles, além dos familiares que estão em volta. Eu vejo porque, mesmo não acontecendo comigo, sofri junto com meus familiares. Consigo entender a necessidade de cada um. É incrível escutar cada história de superação, cada história de luta e batalha pela vida. A partir do momento que você escuta essas histórias, começa a ver como é bom amar e se doar pelo próximo. Eles te ensinam muito. Apesar de aprenderem na dor, aprendem a amar.
Quais desenhos/artes são mais pedidos?
Normalmente é pedida a reconstrução do mamilo, do complexo aréola papilar, que seria a aréola, granulomas do mamilo e bico do seio (foto na galeria). No geral, as mulheres pedem isso e se sobra alguma cicatriz oriunda do câncer, fazemos em volta florais e tatuagens mais delicadas que remetem a reviver. Já fizemos bastante fênix, porque elas dizem que renascem depois da cirurgia. Para homens, já teve reconstrução da aréola e, recentemente, fizemos a primeira tatuagem registrada no Brasil ao redor de uma estoma de traqueostomia (foto na galeria). Nesse caso, de um homem de mais de 50 anos, foi feito um tribal. Foge um pouco do meu estilo, mas era de escolha do paciente e ele se sentiu muito bem.
Tatuar sempre é um trabalho de extrema responsabilidade. O que muda nesses casos?
Eu já sou muito acostumada a trabalhar com cicatrizes e foi algo em que me especializei nos últimos sete anos. Para mim, é normal porque aprendi a regular as máquinas da forma correta, a trabalhar com a profundidade, a entender cada tipo de cicatriz – se ela tem quelóide, é hipertrófica, tem aderência ou não. Se um tatuador tem interesse em começar a trabalhar com cicatriz ele vai ter que se especializar nisso e tentar entender como funciona melhor a pele. Eu faço muito atendimento indicado por hospitais, como o Erasto Gaertner, Hospital de Clínicas, São Vicente. Há inúmeras clínicas que encaminham pacientes e dão suporte, como uma clínica daqui de Curitiba que me ajuda explicando casos diferentes de câncer, sanando as dúvidas. Isso torna meu entendimento sobre cicatrizes melhor, o que me deixa mais tranquila para lidar com cada tipo de caso. A responsabilidade é extrema, assim como qualquer outra tatuagem, e tem que ter um pouco mais de cuidado, por ser uma área mais delicada.
Qual história mais te marcou desde que começou a tatuar com esse intuito?
Sem sombra de dúvidas foi a história da minha mãe, porque foi o início de tudo. Foi a história que mais me ensinou, porque foi um convívio diário, vendo e entendendo o que é lidar com o espelho, com as emoções, com a perda da mama e da autoestima. Essa foi a que mais me marcou, mas a mais importante não posso dizer. Todas têm importância igual, todas têm um carinho no trabalho igual. Eu torço sempre para que sejam menos casos. Hoje, no Brasil e no Paraná, são muitos. Eu estou sempre rezando para essa doença não aparecer na vida das pessoas, mas, se aparecer, eu estou aqui para ajudar.
Cores que Acolhem
Quer conhecer mais sobre o projeto? O agendamento e dúvidas são respondidos pelo e-mail barbaraink.atendimento@gmail.com. Para acompanhar fotos dos trabalhos, siga o Instagram do Cores que Acolhem.