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Cheirinho de sabão, só que não

"Não somos os animais com melhor olfato, mas também não somos aqueles que têm a melhor visão"

Elisabeth Moss interpreta magistralmente June Osborne (OfJoseph), a protagonista de “O conto da aia” (The handmaid’s tale, Hulu/MGM). Ela já ganhou o Emmy e o Globo de Ouro por seu trabalho nessa série de TV, que se passa em um futuro próximo distópico, no qual os Estados Unidos se transformam em um estado fascista e tirânico, Gilead. No nono capítulo da terceira temporada, enquanto encontra-se como acompanhante de outra aia no hospital, divaga relacionando sentimentos e memórias aos cheiros das pessoas que as visitam.

Quando as esposas dos líderes da república estão presentes, ela sente o cheiro de talco e sabonete. Ela recorda a tortura e os abusos que sofre de seus senhores, trazendo à tona a hipocrisia daquelas mulheres orando pelo pronto reestabelecimento de sua companheira. Repugnância, ódio e vontade de vomitar a invadem. Com as outras aias, o cheiro é de suor, que lembra cebola e peixe, misturado com sangue e pus de ferimentos. A sensação é um misto de revolta e resiliência. Sozinha, ela sente o cheiro de frutas cítricas e amoníaco, o que a remete aos tempos anteriores à revolução, quando havia perfumes e aromatizadores de ambiente, quando era possível comprar livremente pela internet. No fim da cena, descreve conformada e placidamente o cheiro da paciente como uma deterioração doce, folhas úmidas, sobrepostas a um cheiro de bebê com fraldas cheias.

A nossa dependência da visão nos faz subestimar a importância do olfato em nossas vidas. Os cheiros são interpretados em uma área primitiva do nosso cérebro, o rinencéfalo. Todos os vertebrados possuem essa área cerebral, que é mais desenvolvida naqueles que habitam a terra, devido a propagação dos cheiros pelo ar. Ter a capacidade de reconhecer e identificar quais deles são bons e quais são perigosos foi uma capacidade adaptativa incrível. Essa adaptação continuou com a percepção que também precisávamos ter uma memória para os odores. Por isso, a área cerebral que determina o que devemos gravar fica nessa região, o hipocampo. Essa estrutura tem uma forte ligação com uma outra adjacente, a amigdala, que participa das reações de luta ou fuga, ataque e defesa, desejo e agressividade. O cérebro humano é fantasticamente complexo e várias outras regiões se comunicam com essas, que são responsáveis pela memorização e por reações emocionais relacionadas aos odores.

Várias pessoas aprenderam da forma mais difícil o que é a hiposmia e a anosmia, a diminuição e a ausência da capacidade de sentir cheiros, nos últimos meses. De 35% a 90% dos pacientes com Covid-19 podem apresentar dificuldades para sentir cheiros. Esse é um sintoma muito relatado pelos pacientes brasileiros que foram atingidos principalmente pela cepa original do coronavírus (China), e pelas variantes brasileiras Gama e Zeta. A maioria recupera a capacidade em poucas semanas, mas algumas pessoas podem permanecer com esses sintomas por mais de um ano. Pacientes diagnosticados com cepa Delta (Índia), forma com maior transmissibilidade e apresentações clínicas graves já identificada no Brasil, parecem ser menos susceptíveis a ter hiposmia, e quando ocorre, evolui com uma resolução mais rápida.

Há algumas semanas atendi um paciente que teve uma forma muito leve da doença, sem relato de hiposmia. Depois da melhora dos sintomas respiratórios, ele continuava a apresentar as dificuldades de memorização, características da doença. Na sequência, ele sentiu cheiro de algo podre por alguns minutos. Na semana seguinte, passou a apresentar episódios frequentes semelhantes, só que o cheiro era de queimado, de fumaça. Ele não achava a origem do fogo, e ninguém sentia o mesmo. Após as crises, que passaram a se tornar mais intensas e frequentes, começou a sentir tonturas e mal-estar. O que ele tinha eram crises epilépticas focais, com origem na região cortical cerebral que processa os odores, as crises uncinadas. Eram uma herança deixada pela Covid-19, por lesão nessa região. Semelhante a esse paciente, em 1936, o famoso compositor de jazz George Gershwin começou a apresentar crises uncinadas com episódios súbitos de um cheiro de borracha queimada, seguidos de episódios curtos de lapso mental. Foram os primeiros sintomas de uma forma agressiva de tumor cerebral que lhe tirou a vida.

A preocupação com o Sars-CoV-2 tem desencadeado uma série de estudos visando o entendimento das alterações das perdas dos neurônios das vias olfativas nas doenças neurológicas. Na doença de Parkinson e na atrofia de múltiplos sistemas, a hiposmia pode preceder, em anos, os sintomas motores (lentidão e tremores). Outras doenças neurodegenerativas também desencadeiam problemas na capacidade de sentir cheiro, como a doença de Alzheimer e outras demências. Não somos os animais com melhor olfato, mas também não somos aqueles que têm a melhor visão. Temos sentidos equilibrados e um sistema nervoso programado para interpretá-los dentro das características que o meio ambiente e a sociedade em que vivemos exigem deles. Interpretamos e criamos a nossa própria percepção de mundo pelas informações que recebemos. Ignorar o poder do olfato é um erro crasso.

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