Ticiana Martinez promove o avanço do design autoral com a Ôda Design Club
Ela gosta de chegar em casa, fazer um café, ligar a vitrola (herdada da mãe) e colocar para tocar clássicos como Baden Powell, Elvis Presley ou Frank Sinatra – vinis que também eram da família. Objetos aparentemente simples, mas que têm um valor muito grande para ela. Ao criar, em 2016, a Ôda Design Club, a ideia da empresária Ticiana Martinez era de fato esta: a de proporcionar objetos autorais que, na casa dos curitibanos, pudessem se transformar em heranças afetivas como as dela.
Autodidata, ela sempre estudou por conta própria os assuntos que a interessam e tem na valiosa bagagem cultural e intelectual, combinada a um olhar apurado, o segredo que torna a ÔDA um sucesso – em 2018, ela foi vencedora do Prêmio Personalidades TOPVIEW na categoria Personalidade de Design e Interiores do Ano. Por meio do coletivo criativo, ela propõe um novo olhar para o feito à mão. “Gosto muito de olhar o design dentro das manualidades, isso é possível. Só porque é feito à mão, não significa que tem que estar apenas na feirinha. Gosto de trazer essa manualidade com o design agregado, com a qualidade estética”, define.
Na loja descolada, instalada à Alameda Prudente de Moraes, que já se tornou point criativo na cidade, devem existir entre 300 e 400 peças. E encontrar mais que cinco ou seis iguais é quase impossível. “Por isso eu digo que o meu trabalho demanda muito. Seria muito mais fácil comprar 15 desses, 20 daqueles…” Todas as peças, no entanto, são feitas por criativos brasileiros que compartilham um mesmo processo produtivo, voltado para a sustentabilidade.
A relação de Ticiana com arte, moda e design, porém, remonta a muito antes da Ôda. Há 11 anos a curitibana mantinha com a irmã, Lorenza, a loja de moda feminina Lanthana, focada principalmente em alfaiataria e camisaria. Com o nascimento dos gêmeos Maria Clara e Caíque – hoje com 9 anos -, ela bem que tentou conciliar a maternidade com a loja, mas não conseguiu. “A minha responsabilidade era a produção – e é uma parte muito difícil. Então, a gente decidiu estancar aquele projeto”, conta. Depois de quatro anos acompanhando de perto o crescimento dos filhos, decidiu voltar ao mercado e aceitou o convite para gerenciar a Michael Kors do Pátio Batel. Foi durante esse processo que Ticiana construiu a ideia da ÔDA.
Aos 40 anos e no segundo casamento, ela é a responsável por encabeçar parcerias como o projeto Mãos em Ação, com o Instituto Campana, e é uma das organizadoras do Ôda Design Club + Feira na Rosenbaum, um dos principais eventos de design autoral brasileiro da cidade, que caminha para a 3ª edição. Sentadas em cadeiras de plástico coloridas em frente à loja, conversamos sobre o trabalho dela em conectar pessoas por meio do design, sua percepção sobre o consumo desse segmento entre os curitibanos, maturidade e o mercado de design local. Confira!
TOPVIEW: Por que quis abrir uma loja com o perfil da Ôda?
Ticiana Martinez: Quando estava na Michael Kors, estava também me mudando de casa e ia muito a São Paulo, ao Rio de Janeiro. Sentia muito a presença do design local, da economia criativa, do pequeno artista e sentia falta disso em Curitiba. Quando buscava coisas para mim, acabava sempre comprando em São Paulo. Um dos lugares que também me inspirou foi a própria Feira na Rosenbaum. Tudo o que encontrava lá tinha muita dificuldade de encontrar aqui. E aí fui formulando a ideia de ter um espaço no qual pudesse atender não só economia criativa, o pequeno produtor, mas também trazer um pouco do design assinado voltado para objetos. Gosto de diferenciar isso porque vejo que a parte de mobiliário é um cenário que já está muito bem desenvolvido.
“Acho que agora existe uma preocupação do próprio criativo em buscar soluções para que o produto dele não tenha um preço inacessível.”
Quando criou a loja, qual foi a percepção?
Ao mesmo tempo que sabia que era algo novo, nem eu entendia exatamente que rumo o negócio iria tomar, quem seria realmente o cliente da ÔDA. Tinha um planejamento financeiro, mas a essência do que seria esse projeto eu sabia que iria acontecer conforme eu caminhasse com a loja. E foi o que aconteceu. A gente percebeu que sim, conseguiu trazer um espaço onde o designer curitibano se sente muito bem representado – e esse era um dos objetivos. Além de trabalhar com arquitetos, que hoje é o foco principal da loja.
O que o design de qualidade pode agregar ao dia a dia das pessoas?
Principalmente por essa questão do que está por trás disso, pensando em como é produzido, qual a história por trás, acho que essa é a importância. Quando você compra um produto que sabe que teve um processo de produção, digamos, sem escravidão, e você leva isso para casa, está sendo cúmplice daquilo. Algo que você sabe que tem uma produção honesta, um cuidado, porque a grande maioria deles têm um grande cuidado com sustentabilidade, madeira certificada, não explorada, é uma característica inata desse mercado. Pequenos cuidados que, na soma, refletem em um novo produto. E obviamente de fazer uma troca, afinal, quando você compra algo desse mercado, está incentivando aquele profissional.
A peça autoral tem um preço superior. Você acha que o público sabe diferenciar preço vs. valor?
Hoje, sabe cada vez mais. Do primeiro para o segundo ano, tivemos um bom crescimento da loja. Mas principalmente um entendimento e um querer maior para esse tipo de trabalho, um entendimento cada vez maior de tudo que envolve esse mercado criativo dos designers. Não é uma produção em larga escala, na qual você consegue diminuir o custo. Um trabalho que muitas vezes é extremamente manual e leva mais ou menos um mês para fazer uma peça é inviável colocar em larga escala, então, o processo produtivo também justifica o preço elevado. Mas eu também acho que agora existe uma preocupação do próprio criativo em buscar soluções para que o produto dele não tenha um preço inacessível. Sinto neles essa preocupação de busca de fornecedor, de processos de criação, para que, cada vez mais, o produto seja acessível.
O que te guia durante uma curadoria?
Nunca tive nenhuma formação para isso. Digo que sou super autodidata e uma amante de todo esse universo. Hoje, na minha maturidade, eu entendo um pouco melhor essa questão de acreditar na sua intuição e seguir fazendo aquilo. Eu amo fazer tudo isso, para mim é super prazeroso viver o universo da ÔDA, pesquisar e estudar sobre arquitetura, design, arte, música. Inclusive me inspiro muito nessas questões. Não gosto muito de ficar focada em Instagram, nem uso o Pinterest. A natureza é muito inspiradora para mim, me revigora muito. Isso tudo me energiza no trabalho. Não significa que eu não leia revistas e não veja o que está acontecendo. Eu faço tudo isso, mas não é a minha principal fonte. O que mais gosto de fazer é achar artistas fora do circuito, que não estão ali dentro daquele universo. É o que mais me encanta.
E como você encontra?
Eu pesquiso. Se vejo uma revista que fala de um cantor que amei, vou ver um pouco daquela pessoa e como ela se comunica com o mundo. A partir dali eu vou achando outras e, quando vejo, já estou em um universo… Viajo muito também…
“Eu amo a maturidade que eu tenho hoje. Você percebe que questões pessoais estéticas já não fazem mais sentido, que está tudo bem, tudo certo.”
Quais são seus destinos favoritos?
Eu sou super mutante, mas o lugar que sempre amei viajar é para Nova York. Já viajei muito pra lá, mas agora, sei lá… A ÔDA e a minha vida pessoal me amadureceram muito e, com isso, tenho olhado viagens com outros desejos. Então, tenho tido vontade de fazer viagens mais de conexão comigo, ir para uma Chapada dos Veadeiros, sentir a natureza, [ir para o] Atacama, ver a mescla de cores, ficar com aquilo na minha biblioteca mental. Lugares que acho incríveis (não fui para todos): Escandinávia, Amsterdã – o design deles tem muito a ver com o que eu gosto. Eu sinto que quando faço isso, venho muito energizada e o trabalho depois é muito produtivo. Vou para a África entre março e abril… O que eu tenho percebido é que ter me envolvido em outros projetos além da loja física e do comércio acaba me tirando muito tempo e eu não consigo fazer tantas viagens. Este ano, preciso tentar equilibrar isso tudo, tentar me dedicar aos projetos, poder viajar e fazer todos esses garimpos.
Nessa pegada de design e autenticidade, quais são seus lugares favoritos em Curitiba?
Adoro o Barista, vejo muita verdade nele. O Léo [Moço] é um barista que não se cansa de pesquisar, de buscar algo melhor. Olho o trabalho dele e fico chocada com a dedicação que ele tem no que faz. Do próprio MON gosto muito, tenho o maior orgulho do museu, sempre que viajo falo para todo mundo dele, me orgulha bastante. Tem o Ginger, que eu gosto, lugares como Arte & Letra, que tem uma livraria junto. Agora, no Ginger, abriu uma livraria super bacana, alternativa [Livraria Barbante]… Acho tão corajoso, interessante… gosto dessas ações.
Visualizar esta foto no Instagram.Já visitou a livraria noturna? Neste sábado, a Barbante está aberta até a meia-noite!
Quem é a sua principal referência em design?
Tem várias pessoas que eu admiro… De arte, um que me emociona muito que é o Carlos Vergara [gravador, fotógrafo e pintor brasileiro, um dos principais representantes do movimento artístico da Nova Figuração no Brasil, 77 anos]. A última vez que o vi eu chorava copiosamente… O Humberto Campana… além de ser o que é hoje em dia, eu tive a oportunidade de conhecê-lo mais, é uma pessoa iluminada, eu acredito muito no processo de criação dele, intuitivo. Ele é formado em outra profissão que não o design e é um designer encantador. Ele quebra paradigmas que são do meu tempo, em que se você é formada nisso tem que ser aquilo. O Carlos Motta e a energia que ele tem até hoje. Dos produtores com que eu trabalho também, pessoas daqui, todo mundo têm a nos fazer brilhar os olhos. O Leonardo Sokolovicz, sou encantadíssima com o trabalho dele. A forma como a Ana Penso cresceu nos últimos anos desde que nós abrimos a ÔDA – até hoje quando participou de uma feira importante como a Paralela, em São Paulo. O próprio Marcelo Rosenbaum…
Entrou em crise ao chegar aos 40 anos?
Tô super bem, feliz, em uma fase ótima de vida. Inclusive não tenho problema em falar minha idade porque eu amo a maturidade que eu tenho hoje. Você percebe que questões pessoais estéticas já não fazem mais sentido, que está tudo bem, tudo certo, passa a aproveitar mais a vida, é mais gostoso.
Dá para dizer que Curitiba tem uma cena de design local? Como é?
Eu acredito que sim, principalmente por ser uma espectadora dessa evolutiva desde que abri a loja. Sinto e vejo realmente um crescimento, no formato de trabalho dessas pessoas e na forma como elas se relacionam com o mundo profissionalmente. Sempre digo que a gente tem que se unir, estar perto, próximo e se ajudando para que essa cena esteja cada vez mais robusta – algo que eu vejo em São Paulo. A conexão entre criativo e designers é algo que estimulo muito.
Neste ano, quais os planos? Pessoais e profissionais.
Quero encaixar mais coisas que sejam para mim. Fazer uma yoga, pensar em fazer um curso, voltar a estudar, isso também me alimenta e me modifica. Este ano vamos fazer uma edição especial da feira, envolvendo workshops e palestras voltadas para esse universo. Enfim, estou criando algo mais robusto, que fique esteticamente mais bonito, cresça e valorize ainda mais quem está lá. Também estou buscando a possibilidade de trazer um outro nome de referência para cá. Não posso contar ainda porque quero formalizar tudo isso, mas sempre pensando em agregar ainda mais conhecimento para o curitibano. Percebi que tudo que trago é muito bem recebido pelo curitibano, isso me estimula.
Para onde o design atual aponta? Quais caminhos e tendências você vê ele seguir nos próximos anos?
Eu acho que ele reafirma essa preocupação com a matéria-prima e a forma de produzir, tem a ver com pensamento de não ficar colocando mais produto do que é necessário no mundo, de ressignificar. É uma vertente que já é presente, mas que ainda precisa ser mais pulverizada. Quanto mais a gente enxergar projetos assim, mas vai se tornar cotidiano para nós. Eu espero que seja assim.