Um futuro sem carne?
A resposta à pergunta do título é “não”. Mas o que vem sendo discutido nos últimos anos é qual tipo de carne vamos comer. O consumo de proteína animal é questionado por milhares de pessoas por diversas razões, que passam pelo direito animal, especismo, saúde e até mesmo pelo controle de doenças zoonóticas. Impulsionado pela Covid-19, o tema fica ainda mais atual e discute qual é o papel dos nossos hábitos, especialmente os alimentares, no aparecimento de novas doenças, como a causada pelo novo coronavírus.
“A razão pela qual nós estamos vivendo este surto agora é por causa da maneira como as pessoas lidam com o planeta, com a terra, com a vida selvagem. Nós não estamos mudando nosso comportamento, nós continuamos fazendo a mesma coisa, como neste caso atual, em que alguém entrou em contato com um animal selvagem na China, a doença passou para as pessoas e começou a tomar grandes proporções [caso da Covid-19]”, analisa Alanna Shaikh, especialista e consultora internacional em saúde global. “Enquanto continuarmos com esse comportamento [de explorar com a vida selvagem], teremos mais e mais doenças aparecendo.”
Cientistas acreditam que a pandemia de Covid-19 teve origem em um mercado de animais silvestres em Wuhan, na China, onde o vírus passou para a espécie humana, no final de 2019. Ainda não se sabe como ocorreu a transição do vírus do hospedeiro para as pessoas.
Especialistas não analisam apenas o consumo de animais, mas também a interação com eles. No livro Pandemias, Saúde Global e Escolhas
Pessoais, lançado neste ano, os pesquisadores brasileiros Wladimir Alonso e Cynthia Paim expõem como vários surtos de enfermidades, como a Covid-19, o Ebola, o HIV e a H1N1, estão relacionados à criação e ao consumo de proteína animal. A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) também já alertou a respeito: um relatório indicou que ao menos 70% das doenças surgidas após a década de 1940 têm origem animal.
Consumo de animais
Após ver documentários que tratam sobre os impactos do consumo de carne no meio ambiente, a estudante de Publicidade e Propaganda Amanda dos Santos Peddinghaus começou a repensar seus hábitos alimentares. Em 2018, tomou a decisão de se tornar vegana, movimento que exclui o uso de qualquer produto ou alimento de origem animal. “No começo, foi mais pela saúde, mas, hoje, me mantenho no veganismo pelo meio ambiente e pela causa animal.”
A estudante percebeu, ao longos destes dois anos, o aumento gradual na oferta de produtos sem origem animal. Ainda assim, vê que existem muitos mitos em volta do veganismo que não se aplicam na prática. “A maior parte do prato brasileiro é vegana, é só tirar a carne e pronto. A base da nossa alimentação é igual a de todo mundo: arroz, feijão e verduras variadas”, compara.
Em 2018, eram 30 milhões de brasileiros declarados vegetarianos, 14% da população, de acordo com uma pesquisa do Ibope encomendada pela Sociedade Vegetariana Brasileira. A tendência é acompanhada pelo mercado, que oferece cada vez mais opções veganas. Hoje, não é difícil encontrar um hambúrguer vegetariano até mesmo em grandes redes de fast-food, com o McDonald’s.
“A maior parte do prato brasileiro é vegana, é só tirar a carne e pronto. A base da nossa alimentação é igual a de todo mundo: arroz, feijão e verduras variadas.”
A Jasmine Alimentos acompanhou o crescimento do mercado. Focada em produtos saudáveis, a empresa paranaense oferece produtos veganos há mais de 30 anos. “A Jasmine já nasceu vegana. O dono estava doente e um amigo apresentou para ele a dieta macrobiótica, que é baseada em alimentos com um alto grau de fibras e sem ingredientes de origem animal. Ele começou a se alimentar e a cozinhar desse jeito e daí nasceu o negócio, na sala da casa deles, em Curitiba”, conta Cristiane Alves.
Nos últimos dois anos, viram a procura por alimentos veganos aumentar ainda mais. “Quando a gente olha quem está nos seguindo ou quem participa dos nossos eventos, vemos bastante interesse de pessoas jovens e adolescentes querendo entender isso, especialmente por conta de duas questões: a ecológica e a crueldade contra os animais”, analisa.
Recentemente, lançaram o Vegetal Burger, um hambúrguer feito a partir do mix de soja, aveia, linhaça dourada e quinoa. A empresa pretende aumentar o número de lançamentos de produtos do gênero, mas não apenas para os vegetarianos – incluem, também, os flexitarianos, aqueles que seguem uma dieta vegetariana em grande parte do tempo, mas, ocasionalmente, consomem carne.
“A revolução do plant-based” é como a Innova Market Insights, líder mundial em pesquisas para o setor, classifica o fenômeno dos alimentos à
base de plantas. O movimento ocupa o terceiro lugar entre as 10 maiores tendências para 2020 na América Latina, segundo um relatório da empresa.
Pesquisadores não têm utilizado apenas plantas para tentar criar carne sem proteína animal, mas também tecnologia. É o caso da “carne celular”, que é produzida em laboratório a partir de células animais – ou seja, sem envolver a morte de nenhum deles. Especialistas da UFPR que pesquisam o tema estimam que, em menos de dez anos, será possível encontrar novidades interessantes no mercado.
Nossa relação com outras espécies
Em um vídeo produzido pela BBC, pessoas com posicionamentos diferentes discutem se namorariam alguém que come carne de cachorro ou não. Isso porque, no verão, consumir carne dessa espécie é uma tradição na Coreia do Sul. O tema é polêmico. A filosofia ética estuda a questão de como a população trata determinadas espécies, como os animais domésticos, e tem outro tratamento para o restante. “Os autores chamam de ‘esquizofrenia moral.’ É quando você divide sua personalidade em duas: você trata de uma maneira cães e gatos, que têm uma proximidade maior dentro das famílias, e não tem nenhuma consideração moral com outros animais, que são absolutamente iguais, em termos de ciência e consciência – alguns deles são até muito mais inteligentes, como os porcos. Esse é um dilema moral da espécie humana”, explica Vicente de Paula Ataide Junior, juiz federal e professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Isso traz à tona a discussão dos direitos dos animais – e o especismo. O último é o ponto de vista de que uma espécie, a humana, tem mais direito do que as outras e, portanto, pode explorá-las. Pode-se dizer que é uma forma de discriminação baseada na espécie. Vicente, que também é coordenador do Programa de Direito Animal da UFPR, relembra que existem três momentos na História que colocam essa crença em xeque. A primeira foi com Copérnico, ao mostrar que a Terra não é o centro do universo, mas, sim, o Sol. A segunda foi no século 19, quando Charles Darwin provou que o ser humano não tem nenhuma característica especial nem superioridade em relação às outras espécies. A terceira, no momento em que Sigmund Freud descobriu o inconsciente e, consequentemente, que grande parte das nossas decisões e condutas era irracional – até então, a razão era o argumento que justificava a superioridade. “A gente chama de ‘descentralizações’, quando se desfaz esse mito de que os seres humanos são superiores ao restante dos animais.”
Saudável sem carne?
Quando se fala em redução do consumo de carne, geralmente, a maior preocupação é com relação ao fornecimento de proteínas adequadas ao organismo. Segundo Sandra Patricia Crispim, nutricionista e professora do Departamento de Nutrição da UFPR, é possível equilibrar de outras maneiras. “Um bife médio corresponde, em média, a 30 g de proteína, o que pode ser alcançado com o consumo de três ovos ou mesmo com a combinação diária de outras fontes proteicas de origem vegetal, como feijão, castanha e ervilha”, compara.
Outro ponto importante para a especialista é estar atento às novas evidências científicas de que o consumo excessivo e contínuo de carne, em especial a vermelha e a processada, traz prejuízos à saúde e ao meio ambiente. Os indícios foram evidenciados por organizações como a World Cancer Research Fund (WCRF) e a Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (IARC), que viram a relação entre esse consumo e a ocorrência do risco de câncer de cólon e reto. “Não significa que, se eu comer carne processada hoje, amanhã eu desenvolvo câncer. Tudo depende da exposição prolongada e em quantidades acima do esperado, além de outros fatores que contribuem para o desenvolvimento de doenças”, pondera.
Para Sandra, a diminuição da ingestão de carne já é um bom passo, que ajuda não só a saúde, mas também o meio ambiente. “Precisamos de políticas públicas que promovam a saúde da população e discutam os modelos de produção e comércio de carnes, que afetam também o meio ambiente e, por consequência, a saúde humana”, ressalta. Iniciativas como a Segunda Sem Carne são bons exemplos da prática.
*Matéria originalmente publicada na edição #242 da revista TOPVIEW.