O que é o verdadeiro luxo? Julie Fank desvenda a palavra!
É preciso pouco para desfazer uma palavra. É preciso muito para refazer uma palavra. Uma letra, quem sabe? De história a histeria, um acento se soma à conta e cai por terra. De réplica para tréplica, só é necessário um “t” e um pouco de paciência. Na etimologia, luxo, por incrível que pareça, está bem próximo da palavra luto, que, com mais uma troca, vira luta. E assim segue o baile, em um sutil revezamento de pares.
É dessa troca de letras quase dança das cadeiras que a gente desemboca nas palavras luxúria, lixar, luxação. E o que uma coisa tem a ver com a outra? Tudo, mas quase nada. Bonita e formosa, a palavra luxo, nas mãos de Haroldo de Campos, virou poema concreto formando, com um sem-número de palavras iguais, a palavra lixo. Na boca de Ivan Lins, “Nós semo luxo do lixo”, nos tambores de Rainha Musical, um jeito de explicar a evolução de uma relação amorosa: “Do luxo pro lixo voltou ao passado/tá trocando o sujo pelo mal lavado/amor mal resolvido, coleciona pecado”. E, da sombra, surge a palavra luxúria, ela mesma, que nada tem a ver, etimologicamente, com luxo, apesar de se confundir quando migramos para a língua inglesa: luxuriance. Ela se caracteriza por uma emoção de intenso desejo pelo corpo e é também pecado capital de acordo com a doutrina católica. E luxo, é pecado?
“Bonita e formosa, a palavra luxo, nas mãos de Haroldo de Campos, virou poema concreto formando, com um sem-número de palavras iguais, a palavra lixo.”
Do latim luxus: excesso, extravagância, magnificência, também é o que está fora do lugar, deslocado, uma articulação que parou de funcionar. É como a linha quase invisível que separa hospitalidade de hostilidade, outra delicadeza etimológica. Luxação é uma provável derivação de luctus/luxus, o passado de luxare, deslocamento de uma articulação, o que se relaciona com o verbo luctari, lutar, esticar, tensionar.
Enquanto isso, luxo, se tirarmos a letra o, se transforma em lux, parte do primeiro pedido bíblico: fi at lux, “faça-se a luz”. Lixar, por sua vez, é o verbo que permite o corte dos excessos, o aparo, a polidez – somos todos muito bem-educados, claro. E os excessos estão aí para serem aparados. O mármore, por exemplo, sempre escondeu uma obra de arte dentro de si, mas, sozinho, era só um bloco de pedra. Michelangelo encontrou, ali, sua Pietá. Uma encomenda de alguém muito rico que queria uma escultura impecável em seu leito de morte.
Outro lembrete: um dos sinônimos para luxo é fausto, um dos sinônimos para lixo é sucata. Rainha da sucata foi uma novela que colocou a riqueza em perspectiva. O que é o lixo quando a riqueza vem de um ferro-velho? Os colecionadores que o digam. Mas quem é que está ligando, não é mesmo? Eu, por exemplo, estou pouco me lixando.
*Coluna originalmente publicada na edição 228 da revista TOPVIEW.