NFT: como três letras vão revolucionar a arte e a moda
Por Talita Souza
Quanto vale uma obra de arte que existe somente no mundo virtual? Se depender dos tokens não fungíveis (NFTs), nova tecnologia de registros digitais, até 69 milhões de dólares. Esse foi o preço que arrematou uma colagem digital do artista americano Beeple em um leilão realizado em março deste ano. A negociação pode não fazer sentido agora, mas representa o futuro para mercados como o da arte e da moda.
NFT (sigla para o termo em inglês Non-Fungible Token) funciona como uma espécie de selo de autenticidade formado por informações criptografadas. São ativos digitais, assim como as criptomoedas. Mas, diferentemente delas, cada NFT representa um valor único, são tokens diferentes entre si.
Isso funciona por conta de um contrato inteligente criado na plataforma Ethereum e registrado em blockchain, que pode ser comparada a um cartório de registros digital e independente. Nesse sistema, são registrados arquivos digitais que se tornam únicos e incorruptíveis, com detalhes de autoria, data de criação e qualquer outra informação associada a eles. A garantia de segurança se dá pela validação em todos os computadores independentes da rede, que ficam em constante comunicação.
Com a tecnologia, qualquer arquivo, entre obras de design, músicas, vídeos, postagens em redes sociais e até memes pode ser vendido em market places. Os casos são os mais variados possíveis: um vídeo que registra uma enterrada histórica de Lebron James, jogador lendário da NBA, foi vendido por US$ 280 mil. O famoso meme do Nyan Cat, uma pixel art de um gato voando no espaço, lançado em 2011 no YouTube, chegou a US$ 590 mil. Já o primeiro tweet, feito pelo fundador do Twitter Jack Dorsey, alcançou US$ 2,9 milhões.
Celebridades não ficaram de fora: Paris Hilton vendeu uma arte digital de seu gato por US$ 17 mil. Um autoretrato de Lindsay Lohan rendeu US$ 73 mil à atriz. Obras autorais da cantora Grimes estão estimadas em US$ 6 milhões.
Por mais que reproduções e cópias possam ser feitas, o comprador se torna o dono oficial do registro e dos direitos autorais sobre ele. Sendo assim, pode usá-lo como quiser. O proprietário de uma música, por exemplo, pode vender parte dela para um comercial ou negociá-la depois de ter sido valorizada.
Também é possível “quebrar” o NFT em vários, fazendo com que mais de uma pessoa compartilhe a posse de um mesmo ativo. Esse processo pode ser comparado à venda de ações de uma empresa ou marca, por exemplo. “Como o mercado de criptoativos é global e funciona 24 horas por dia, sete dias por semana, a liquidez é imediata e universal.” A afirmação é de Helena Margarido, especialista em criptomoedas da casa de análise Inversa.
Para ativos não digitais, há a tokenização, quando se emite um NFT correspondente a um item que existe fisicamente. “Você pode, por exemplo, emitir um NFT de um quadro do Picasso e ele será seu certificado de propriedade daquela obra, com todas as garantias de que ele é original e autêntico.”, explica Helena.
Revolução Artística
“Trabalhar que nem um maluco, postar sua arte nas redes sociais, rezar para os algoritmos não cortarem o alcance, torcer para atingir alguém que se interessa pelo trabalho e, possivelmente, oferecer uma proposta de freelance.” Antes dos NFTs, essa era a rotina de Fesq, um artista digital carioca de 24 anos que deixou a programação para exercer sua criatividade.
O registro em NFT surgiu como uma oportunidade para utilizar o background de programador para criar valor para trabalho autoral sem ficar refém de grandes plataformas e seus algoritmos. Agora, ele se tornou um verdadeiro embaixador dessa tecnologia no meio artístico e, assim como outros colegas, tem uma nova fonte de renda, que proporciona viver apenas de trabalhos que ele decide fazer.
Além do aumento nos ganhos, a classe pode se sentir mais valorizada e autônoma. “Antes, o artista digital era visto como uma ferramenta. Havia pouco espaço para dar a sua voz. Com essa mudança, quando uma pessoa me aborda para um trabalho, ela está muito mais interessada no que eu tenho para dizer, em vez de pedir apenas para eu executar”, conta.
Os principais compradores de Fesq estão nos Estados Unidos e na Europa, já que o mercado de NFTs no Brasil ainda é quase inexistente. Enquanto isso, artistas independentes que buscam se inserir no mercado enfrentam barreiras que começam pela língua, seguida do entendimento de criptomoedas e conceitos de programação e do custo para emitir uma transação – em média de US$ 50.
Obras mais caras do mundo
“EVERYDAYS: THE FIRST 5000 DAYS”. Artista: Beeple | US$ 69 milhões
“CRYPTOPUNK #3100”. Artista: Larva Labs | US$ 7,58 milhões
“CROSSROADS” Artista: Beeple | Preço: US$ 6,6 milhões
“CROSSROADS”. Artista: Beeple | US$ 6,6 milhões
“CRYPTOPUNK #7804”. Artista: Larva Labs | US$ 7,57 milhões
Entenda o mercado
Essa realidade de economia digital pode parecer uma previsão futurista, mas já existe há mais de uma década. A tecnologia de registros em blockchain surgiu oficialmente em 2009, quando o código fonte original do Bitcoin foi lançado em código aberto, ou seja, disponível para download de qualquer pessoa.
Para Wilhelm Milward Meiners, economista e especialista em criptomoedas, esse sistema faz parte de uma nova revolução industrial, marcada pela digitalização, que foi, inclusive, acelerada com a pandemia. Um exemplo disso, segundo ele, é o PIX, em que é possível movimentar dinheiro de maneira digital, imediata e sem custo algum.
Meiners, que também atua como consultor, afirma que um mercado reconhecido por trazer novas tecnologias e possibilidades também envolve muita incerteza e risco. É o caso da aplicação em NFTs, ação que, apesar de recente, tende a se popularizar rapidamente.
Ele exemplifica: “Quando os ativos digitais surgiram, gestores e bancos de investimento recomendavam que seus clientes destinassem entre 1 a 2% da sua carteira para eles. Hoje, dada a estruturação desse mercado, que, antes, era cercado de incertezas, recomenda-se que as pessoas tenham 5% do seu portfólio nesses mesmos ativos.” Estudar esse mercado, no entanto, é necessário, a fim de não correr o risco de investir apenas por “moda”. A orientação é complementada pela pesquisadora e consultora em blockchain Helena Margarido: “NFTs são um dos incontáveis tipos de aplicações que existem na blockchain. Esse é o começo de uma evolução que a gente deve ver com cada vez mais intensidade daqui para frente. Estar antenado nesse tema é fundamental para qualquer pessoa que quer entender como o mundo vai funcionar daqui para frente”, assegura.
A sustentabilidade é real?
Ainda existem questionamentos sobre o impacto ambiental do processo de tokenização. Incluir informações na Ethereum, rede usada para as transações, requer cálculos complexos feitos por equipamentos de ponta, com um alto consumo de energia elétrica. O procedimento, chamado de Proof-of-Work, pode equivaler ao gasto energético de dois meses de uma família em um país desenvolvido.
Tendências além das passarelas
Marcas apostam na tecnologia e levam a moda para universos nunca antes imaginados
Na moda, os NFTs fazem parte de um novo mercado de luxo há pelo menos dois anos. Em 2019, um vestido da casa de moda digital The Fabricant foi arrematado por US$ 9.500 em um leilão organizado pela Dapper Labs, empresa responsável por algumas das primeiras vendas de NFTs.
No mesmo ano, a Nike anunciou sua patente CryptoKicks, um sistema que vincula tênis físicos a versões virtuais colecionáveis, transferidos, vendidos e recombináveis entre si. Pouco mais de um ano depois, em fevereiro de 2021, uma série de NFTs da marca de tênis digitais RTFKT, em parceria com o artista Fewocious, esgotou-se em sete minutos e arrecadou US$ 3,1 milhões. A proposta, semelhante à anterior da Nike, disponibilizou uma versão física dos sneakers correspondente à virtual.
“Se a gente olhar para o passado, arte e moda sempre foram um reflexo da sociedade. Ambas sempre estiveram a par das últimas tecnologias, mudando-as e adaptando-as.” A reflexão é proposta por Taisa Vieira Sena, professora e diretora executiva da Associação Brasileira de Estudos e Pesquisa em Moda (Abepem).
A comercialização e a valorização de NFTs faz sentido em um momento em que praticamente todas as relações se tornaram virtuais. Os itens comprados podem ser usados a partir de integrações com redes sociais, em metaversos como o Sansar, sucessordo Second Life, e personalizando skins (aparência de personagens e cenários) em uma série de jogos.
Essa é a proposta trazida pela parceria entre a plataforma de blockchain Enjin e a The Fabricant. Junto à empresa de produtos eletrônicos Atari, foi lançada uma coleção de produtos inspirados no futebol que podem ser usados em jogos/plataformas que vão desde servidores do Minecraft à RPGs online.
Luxo Virtual
Em março, o tênis Virtual 25, da Gucci, idealizado pelo diretor criativo Alessandro Michele, foi motivo de alvoroço nas redes sociais. Isso porque, ao desembolsar entre US$ 9 e US$ 12, o que os seus compradores recebiam, na verdade, era um filtro que simulava a peça nos pés. Apesar de não ter ligação direta com criptoativos, o caso demonstra a tendência das peças digitais, desenvolvidas para diferentes plataformas online.
Para a designer e professora de moda Camila Ferreira da Costa Teixeira, a Gucci é um exemplo da adaptação das marcas de luxo a um novo público consumidor. “É uma grife que se reinventou totalmente para atingir as novas gerações, muito tecnológicas e ligadas ao virtual. A Gucci trouxe o Michele como diretor de criação justamente para promover esse vínculo. Se a gente comparar a Gucci de Tom Ford com a de hoje, a mudança é total”, afirma.
A presença digital de grandes marcas não é novidade. Em 2019, o estilista Nicolas Ghesquière, da Louis Vuitton, assinou uma coleção de skins para o jogo League of Legends. Esse tipo de iniciativa foi impulsionado pela restrição de eventos presenciais durante a pandemia do coronavírus. No ano passado, a Balenciaga lançou a coleção de inverno 2021 com seu próprio game apocalíptico Afterworld: The Age of Tomorrow.
O representante brasileiro dessa tendência é o estilista Lucas Leão. O carioca, reconhecido pela presença da tecnologia em suas criações, faz tanto roupas digitais quanto físicas. Na São Paulo Fashion Week de 2019, Leão fez parceria com outros dois artistas, Gabriel Massan e Lucas Guimarães, no lançamento de uma coleção com estamparia virtual, e apresentou avatares usando peças igualmente digitais.
Real e virtual juntos
Fora das telas, a garantia de identidade original de roupas vem de componentes quase invisíveis aos olhos. A empresa FibreTrace desenvolveu uma tecnologia para adicionar pigmentos finos, semelhantes a uma poeira, às fibras dos tecidos. Eles são únicos e carregam informações sobre a origem da matéria-prima utilizada, uma espécie de “digital” da peça.
A partir desse registro, a cada novo processo de fabricação – da tecelagem ao tingimento ou à costura, entre outros –, os pigmentos recebem novas informações, que são registradas em blockchain, assegurando sua confiabilidade assegurada. Toda essa estrutura permite que indústria e os consumidores saibam a procedência dos produtos de forma transparente, barata, escalável e segura.
Novas soluções para velhos problemas
Camila sustenta dois vieses principais para a importância dos NFTs na moda: “A certeza da originalidade do produto, já que essa é uma indústria extremamente copiada, e a questão da sustentabilidade: você pode ter um conhecimento maior da procedência do que está comprando”, diz. Além disso, os NFTs tocam no ponto das relações trabalhistas que estão por trás da fabricação e da comercialização dos itens. “Aqui, a gente tem uma mão de obra extremamente especializada: não é qualquer pessoa que consegue desenvolver esses produtos.
Então, por enquanto, não existe o risco da utilização de serviços análogos à escravidão, como já aconteceu em algumas fast fashions.”, defende Taisa. Sustentabilidade e valorização da mão de obra são algumas das discussões e macrotendências mais relevantes no mercado fashion. A solução de rastreabilidade trazida pelo digital pode, portanto, resolver o que o mercado mais tradicional até hoje não conseguiu.
Contradição
Um momento de desmaterialização de produtos e serviços marca o mercado global atual. Exemplos disso são empresas como Uber e Airbnb, que promovem o consumo, mas sem a ideia de posse, fazendo com que serviços e produtos se tornem mais acessíveis. Por outro lado, inovações como o NFT representam a manutenção de um conceito antigo da moda: o status da exclusividade e da personalização.
A necessidade do isolamento em casa por conta da pandemia de COVID-19 contribuiu para o fortalecimento de um luxo que só existe na dimensão online. No momento em que não é possível demonstrar o poder de consumo em itens ou experiências da “vida real”, as plataformas digitais se tornam palco dessas relações.
Segundo Camila, houve uma quebra de expectativa no que se esperava das próximas gerações. “Havia a ideia de que os millennials seriam nômades digitais que não ligariam para bens e seriam desapegados. Muito pelo contrário. No entanto, ao mesmo tempo em que eles querem ter, preocupam-se com o meio ambiente. Então eles vão considerar ter, mas virtualmente”, exemplifica.
Mas não é apenas por status que as criptorroupas são adquiridas. Elas também funcionam como investimento. Vale lembrar que a palavra “investir” surgiu, inclusive, por causa do vestuário – e significa “vestir o dinheiro”. A ideia vem da Grécia antiga, quando mais pregas nas roupas significava maior poder aquisitivo, já que, para produzir a lã, que era o tipo de tecido geralmente usado na época, era preciso ter terras, ovelhas, criados e assim por diante. Quem diria que o conceito milenar faria mais sentido do que nunca em um contexto totalmente tecnológico?
*Matéria originalmente publicada na edição #250 da revista TOPVIEW.