As múltiplas facetas do Carnaval curitibano
por Camila Gino
Mistérios, quantos mistérios guardam as cidades. E quantas identidades? A investigação a respeito das questões de identidade e pertencimento vêm sendo uma marca do cineasta Luciano Coelho. Ele coordenou com Marcelo Munhoz o “Projeto Olho Vivo”, entre 2003 e 2012, trabalho do qual resultaram documentários como Caras de um Carnaval, em que acompanhou o período que antecede os desfiles curitibanos em seus vários momentos e sutilezas, até a entrada na avenida – hoje a Marechal Deodoro, que recebe os desfiles 2015 no sábado (14), a partir das 17 horas.
O documentário foi lançado em 2010. De lá para cá, Coelho seguiu no trajeto de investigação de identidades, tema que está expresso em seu mais recente trabalho, A Linha Fria do Horizonte (www.linhafria.com.br ), coproduzido pelo Canal Brasil e lançado no ano passado. Aí a investigação é sobre a estética do frio e como ela une, em seu repertório de características, o Sul do Brasil aos países vizinhos Uruguai e Paraguai.
Luciano Coelho percorre este caminho a partir do cancioneiro sulista, pelo olhar de músicos como o uruguaio Jorge Drexler, o brasileiro Vitor Ramil e o argentino Kevin Johansen. E o mais interessante é que o tema do Carnaval se faz presente. “Foi a partir da reflexão sobre o Carnaval, há muitos anos, que o Vitor Ramil começou a refletir sobre a questão da estética do frio”, resgata Coelho nesta entrevista, em que ele enfatiza: “Existe Carnaval em Curitiba, e ele é parte da identidade da cidade”.
TOP VIEW – O que motivou você a filmar o documentário Caras de um Carnaval?
Luciano Coelho – Caras de um Carnaval foi feito enquanto eu ainda coordenava o “Projeto Olho Vivo”. Na produção dos vídeos, surgiu a questão do Carnaval, que é muito debatida em Curitiba. Fizemos documentários sobre a população negra da cidade, o jazz curitibano, danças do coração, armazéns e a transformação do cenário urbano ao longo das décadas. E também tratamos da questão dos transexuais, das prostitutas, dos catadores de papel. O que percebemos é que a identidade de uma cidade está em todos estes temas, ela envereda por todos eles.
TV – E isso acontece também em Curitiba, cidade que tem uma referência de imagem oficializada bastante forte, não é?
LC – Curitiba é uma cidade que tem um pouco este histórico da construção da própria imagem, de ter uma imagem, em certa medida, oficial. E o Projeto Olho Vivo se iniciou quando surgiam aqueles rótulos – de “Curitiba cidade ecológica”, “capital social”, “cidade europeia”, “cidade-modelo”. Nossa proposta no Projeto Olho Vivo foi de encontrar a Curitiba por trás desses rótulos, encontrar a identidade da cidade e das pessoas que moram aqui.
TV – A Curitiba do cotidiano.
LC – Uma cidade do cotidiano, que é a verdadeira Curitiba. E o Carnaval se insere aí. Eu mesmo não tenho uma trajetória de contato com o Carnaval. Faço parte do curitibano introvertido, que não gosta muito de estar em destaque. Inclusive acabei de fazer um documentário [A Linha Fria do Horizonte, lançado no final do ano passado e coproduzido com o Canal Brasil], em que o músico gaúcho Vitor Ramil levanta a questão de haver uma estética do frio. Um dos temas condutores do documentário, a estética do frio trata de uma identidade brasileira do Sul, um pouco mais introvertido. O Vitor levantou esta bola, que essa nossa identidade seja reconhecida como brasileira também. E o próprio Vitor fala que para ele uma das coisas mais importantes foi o Carnaval de Pelotas [onde o músico mora]. Ele levantou a reflexão de uma estética do frio quando estava no Rio de Janeiro tentando alavancar a carreira. Assistindo o noticiário da TV ele viu notícias sobre Carnaval e na sequência sobre o frio no Sul do país. Ele se deu conta de como a festa, que no Sul é mais contida, é tratada com naturalidade. E, de como o frio, que para nós é natural, é tratado como algo exótico, diferente em outros locais do país. Naquele momento que ele sentiu: “existe uma estética do frio, que nos representa”.
TV – Esta estética do frio contorna também a identidade curitibana?
LC – A obra do Vitor me impactou muito na década de 1990. Quando ele levantou esta bola da estética do frio me tocou muito, porque de alguma forma me identifiquei com este sentimento de não estar representado no estereótipo brasileiro. E também por morar em uma cidade que não tem uma identidade clara. E então, veja que interessante, meu caminho começa atravessando esta seara da identidade curitibana, pelo Projeto Olho Vivo, e desemboca no A Linha Fria do Horizonte, que é uma reflexão sobre o Sul do Brasil e sua relação com os vizinhos Argentina e Uruguai, e também com o frio, que acho que determina muito nosso temperamento.
TV – Então tem uma trajetória bem coerente.
LC – Isso a gente enxerga depois que passou. E de alguma forma o Carnaval entra aí. O Vitor Ramil começa a reflexão sobre a estética do frio vendo a imagem de um Carnaval na TV. E eu aqui em Curitiba nunca pulei o Carnaval. Só que a trajetória do Olho Vivo foi de bater nas portas, de transitar nas comunidades, por toda a cidade e ver que o contato entre as pessoas derruba os preconceitos. Chegou o momento em que, depois de tratar de tantos temas da cidade, resolvemos falar do Carnaval.
TV – O que fez você sair da visão-padrão curitibana e perceber que o Carnaval existe em Curitiba?
LC – Existe, sem dúvida nenhuma. Uma coisa é você não gostar do Carnaval e ficar na sua, outra coisa é você não querer que a cidade tenha Carnaval. De uma certa forma, com esta postura, você recusa o direito do outro que mora na cidade e que gosta do Carnaval. Me lembro que tinha uma peça de teatro na época que o nome dizia algo assim: “Ainda que eu não queira, aqui tem Carnaval”. E todas essas questões nos levaram a perceber que tínhamos de conhecer essa festa. Foi muito bacana acompanhar a construção desse Carnaval e ver o amor das pessoas que o constroem, com tanta força em contrário.
TV – Quem são essas pessoas?
LC – Elas sofrem muito com os recursos. É pouco tempo para preparar a festa, mesmo existindo tanto envolvimento e amor. O recurso, pelo menos naquele ano, acabou chegando muito tarde. Elas se bateram muito para comprar as alegorias, as fantasias, tudo o que era necessário. O documentário mostra isso, a dificuldade, mas ao mesmo tempo o amor das comunidades pela construção desse Carnaval. E mostra também como o momento da construção é também de interação entre as pessoas, como as crianças e os idosos se envolvem. E famílias inteiras, que têm tradição de envolvimento com o Carnaval. Foi como quando fui fazer o documentário Preto no Branco (2004). Muita gente falava “mas não tem negros em Curitiba”. É claro que tem, mas grande parte dessas famílias vive no entorno. A gente entrevistou uma família incrível de origem negra, que mora em uma rua no Sítio Cercado que se chama Cidade Modelo. Olhe só que paradoxo.
TV – A cidade-modelo está lá então.
LC – Pois é. E essa é uma Curitiba, de fora do centro, que constrói o Carnaval. E que talvez fique um pouco “invisibilizada”. Mas ela existe, e ama o Carnaval também. Isso é muito importante. Ela dá alma para isso. Por exemplo, o momento do aquecimento antes da entrada da Avenida – e isso está documentado – é de uma tensão, de uma emoção, que é incrível. Muito emocionante.
TV – É contagiante?
LC – Muito. Fiquei arrepiado de estar ali filmando. Aquele momento de preparação, dos últimos retoques, de arrumar uma fantasia. Corre para lá, para cá. Isso está bem claro no filme.
TV – Foi, de certa forma, surpresa descobrir tudo isso?
LC – A intensidade com que as pessoas vivem esse Carnaval, para mim foi surpresa. Claro que eu acreditava que o Carnaval existe em Curitiba. Mas estar presente ali, ter vivido o cotidiano, foi muito impactante. E acho que, na verdade, nossa identidade tem que ser formada por paixões autênticas. A identidade não é algo que deve ser formado por uma imposição de gestão ou por vontade política. Nossa identidade tem que ser formada por nossas paixões, das pessoas que fazem a cidade.
Assista à íntegra documentário Caras de um Carnaval (2010), de Luciano Coelho
Entrevista com Vlad Urban, organizador do Psycho Carnival