Tempos fragmentados

Exatamente no momento em que me sento para escrever esta coluna, o processo para a eleição de um novo presidente para o Brasil iniciou o seu primeiro turno. Pensar que há menos de 30 anos esta participação nas urnas era apenas um desejo preso na garganta, um grito de liberdade impedido pelos militares, me enche de esperança e alegria. O ano de 2014 marcou os 50 anos da instauração da ditadura no Brasil e também aumentou o movimento – já em processo – de diversas obras que contemplam direta ou indiretamente esse período duro da história do Brasil.

Tempos Extremos, romance inaugural da premiada jornalista brasileira Míriam Leitão, lançado no primeiro semestre deste ano, faz parte desse grupo de obras que revisita esse conturbado momento político. No entanto, o livro se destaca ao trazer em primeiro plano não somente o período ditatorial mas também reflexões a respeito da época da escravidão. Ambientada em uma fazenda, que propicia um clima de contação de histórias – quem nunca passou um fim de semana no campo e ouviu/contou histórias de fantasmas? –, a narrativa contempla, por intermédio da personagem Larissa, planos diversos de tempo e espaço, que se dão pela borragem quase completa do limbo entre realidade e sonho, ficção e testemunho, passado e presente.

A narrativa abre com um encontro familiar, planejado para ser um momento harmônico, de celebração e alegria. No entanto, como em outros textos tradicionais da literatura – veja o famoso conto “Feliz Aniversário” de Clarice Lispector –, resulta em uma reflexão a respeito das diversas máscaras e performances, as quais as pessoas se dispõem a executar durante essas reuniões familiares. No caso da protagonista Larissa, são postas em evidência as diferenças entre os membros da família, sobretudo entre sua mãe, Alice – personagem que fez parte da luta armada e cujo companheiro faz parte da lista de desaparecidos pela ditadura –, e seu tio Hélio, que fez carreira militar e tem uma opinião totalmente divergente da de sua irmã.

A partir do abismo entre os irmãos vão aparecendo outras rachaduras na estrutura familiar, nos tempos da narrativa e também na própria forma pela qual Larissa se sente ou não parte de sua família, do lugar e do tempo nos quais vive. Personagem deslocada, ela adentra uma atmosfera limiar que a permite navegar entre histórias para construir novos significados e sentidos para a própria vida.

Romance que apresenta a teia do tempo, presente nos rompantes da visitação ao passado, Tempos Extremos faz uma reflexão necessária, mas sem perder o envolvimento e o mistério de uma história bem contada.

“A nenhum tempo pertenço. Transito sonâmbula ou insone por uma enorme casa escura. Nela vejo tudo com visão mais aguda do que jamais tive. Encontro pessoas que não são deste mundo nem desta época, mas elas eu entendo mais do que a minha família.”

 

Cris Lira é mestre em Literatura Brasileira e estudante de doutorado na Universidade da Geórgia, nos EUA, onde dá aulas de português. Email: clira@uga.edu

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