Renasce um clássico
Muitos críticos e escritores já discutiram sobre como são construídos os clássicos. De Jorge Luis Borges a Italo Calvino, os discursos versam sobre o número de leitores, a passagem do tempo e a universalidade das obras. Mas, afinal, o que torna uma obra clássica? Desde muito jovens, por exemplo, somos apresentados a Machado de Assis, e se torna praticamente uma heresia dizer que não gostamos dele.
Sugerir que Shakespeare era um chato ou confessar que não leu o Dom Quixote pode ser o fim de uma carreira acadêmica. Os clássicos carregam o peso de que nasceram para serem lidos e admirados por muitas gerações. O que dizer, então, de um escritor que surgiu aclamado pela voz de outros grandes, como Manuel Bandeira, Erico Verissimo e Oswald de Andrade e, no entanto, desapareceu quase completamente dos livros que discutem e preservam as grandes obras literárias?
José Geraldo Vieira (1897-1977) foi um autor que à sua época tinha a admiração dos seus pares e do público. Incansável, escreveu 11 títulos ao longo de sua carreira. Mesmo assim, desvaneceu dos livros sobre literatura. Agora, com a força da era digital, é resgatado pela Editora Descaminhos, que tem recuperado toda a sua obra romanesca.
Prova-se, assim, que ele nunca desapareceu, estava apenas adormecido nas prateleiras dos livros desmerecidamente esquecidos. No dia 8 de setembro de 2014, foram lançados simultaneamente três títulos: Território Humano (1936), O Albatroz (1951) e Terreno Baldio (1961). O plano é que todos os títulos estejam disponíveis para compra no site da Amazon até o início de 2015.
Na contramão dos romances regionalistas de sua época, José Geraldo Vieira tratava de assuntos universais, com tom cosmopolita e culto, mas também extremamente lírico. Em um dos romances que pode ser considerado expoente de toda a sua obra, O Albatroz, temos acesso à história de três gerações de uma família carioca e suas mazelas em duas esferas: pública, uma vez que o pano de fundo do enredo começa com a revolta de Canudos, atravessa os movimentos tenentistas e desemboca na Segunda Grande Guerra; e outra mais íntima, circunscrita a essa família que tem todos os seus varões, pouco a pouco, mortos.
Rodeada por homens – que vão um a um caindo como cartas de um baralho marcado pelos caprichos do Destino, como nas tragédias gregas –, a matriarca Virgínia, mistura de muitos mitos, é o eixo narrativo e familiar. Obrigada a suportar todas as perdas, seu sofrimento e a maneira como lida com ele são a grande linha condutora da história. Por meio da habilidade de narrar os embates entre o Destino e a frágil vontade humana, percebemos que O Albatroz é resultado das mãos de um mestre, e este agora tem renascido o seu clássico.
“Assim, a mentalidade de Fernando, criado e educado em moldes especiais, reagira reflexamente contra a clausura e a extraterritorialidade, optara pela condição humana; mas aceitava o paradigma dos mitos. Afinal, mitos eram todos os seus.”
Cris Lira é mestre em Literatura Brasileira e estudante de doutorado na
Universidade da Geórgia, nos EUA, onde dá aulas de português. Email: clira@uga.edu