O adeus ao peregrino
por Cris Lira
Fui assaltada pela notícia da partida de Gabriel García Márquez. Sim, sabia que estava doente. Mas a ideia de que ele esteve e já não está foi de tamanho rompante que decidi que havia de ser dele este mês de maio. Assim, de algum modo, continuaria conosco com seu sorriso certo e sua escrita que deu vida a tanta gente. Dos vários livros dele que li há muitos famosos, traduzidos para várias línguas, utilizados como uma espécie de motivo em filmes, como Serendipity, de 2001. Seus leitores fiéis sofrem entre a escolha de Cem Anos de Solidão e O Amor nos Tempos do Cólera. No entanto, para mim, nenhuma obra condensa com tanta delicadeza e magia a força narrativa de Márquez quanto Doze Contos Peregrinos (e logo depois da afirmação já me sinto culpada por não ter escolhido um dos já citados, Ninguém Escreve ao Coronel, O Outono do Patriarca, Do Amor e Outros Demônios ou…).
Em Doze Contos Peregrinos encontramos as mesmas qualidades dos narradores treinados em criar sagas familiares e teias de personagens, mas agora deslocados. Trata-se de personagens e narradores em trânsito – peregrinos – vivendo situações de estrangeirismo e epifania mágicas. Aliando a sua característica de jornalista, partindo de fatos, ao seu trabalho artesanal de criador de ficção, especialmente ligado ao Realismo Mágico – recurso no qual aspectos irreais são narrados intrinsicamente conectados ao real e sem causar espanto, Márquez desenha histórias e personagens inesquecíveis como duas de suas muitas Marias. A primeira, do conto “Só Vim Telefonar”, Maria de la Luz Cervantes, e a segunda, do “Maria dos Prazeres”. Aquela é como uma personagem kafkiana que tem de cruzar todos os meios burocráticos para provar a sua sanidade, enquanto atua como uma pessoa verdadeiramente louca. Esta, por sua vez, é o retrato de uma espera que ela pressupõe ser a da visita final, mas descobre é que “a vida é mesmo o que acontece enquanto fazemos outros planos”.
Nas doze histórias que compõem o livro, o cotidiano é vivido entre o espanto e a alegria das pequenas descobertas, além de ser cuidadosamente construído como narrativa mental pelas personagens. Em “O Avião da Bela Adormecida”, o narrador arquiteta um desenlace que não passa de uma invenção não compartilhada enquanto a jovem de pele de louça dorme ao seu lado. Já o belíssimo “O Rastro do Teu Sangue na Neve” é inteiramente a imagem contida no título, pois personagem e vida se esvaem na pintura em vermelho construída, pouco a pouco, na neve.
Narrativas curtas, porém elevadamente mágicas, cada uma delas, a seu modo, dialoga com a possibilidade da morte, com essa finitude que nos custa tanto aceitar. Talvez fosse a maneira de Márquez ficcionalizar a partida, o momento do adeus. Esse que agora é para ele que não morreu, mas encantou-se, transformou-se em mariposa amarela e agora voa feliz por sua Macondo utópica ao lado dos Buendía.
“Encontrou finalmente a fechadura, ouvindo os passos contados na escuridão, ouvindo a respiração crescente de alguém que se aproximava tão assustado quanto ela no escuro, e então compreendeu que havia valido a pena esperar tantos e tantos anos, e haver sofrido tanto na escuridão, mesmo que tivesse sido só para viver aquele instante.”
Trecho do conto “Maria dos Prazeres”, de Doze Contos Peregrinos, lançado pela Editora Record.
Cris Lira é mestre em Literatura Brasileira e estudante de doutorado na Universidade da Geórgia, nos EUA, onde dá aulas de português. clira@uga.edu