Em busca do céu
Estive em Buenos Aires durante o mês de junho e a cidade, preparada para a Copa do Mundo, esbanjava as cores azul e branco por suas charmosas ruas e praças. No entanto, o que atraiu a minha atenção pela cidade foi um olhar que me seguia por todos lugares aonde eu ia…
Certo dia, em plena Biblioteca Nacional de Maestros, a sensação de estar sendo observada me assaltou completamente e quando elevei o olhar, lá estavam aqueles olhos vívidos fixos em mim. Mais tarde, ao caminhar pela Avenida Callao, deparei-me novamente com a mesma mirada. Já começava a pensar nas possibilidades borgianas para tantos encontros, quando descobri que 2014 é o ano em que se celebra os 100 anos de nascimento de Julio Cortázar, um dos maiores escritores argentinos, dono da imagem que me perseguia pelas esquinas de Buenos Aires. Nascido em Bruxelas, em 26 de agosto de 1914, o autor é dono de uma obra de peso, verdadeiro marco dentro da literatura latino-americana, e a cidade está repleta de eventos para comemorar seu centenário.
Dentre seus textos, sobretudo uma extensa galeria de contos fantásticos, destaca-se o romance Rayuela, cuja tradução para o português brasileiro é O Jogo da Amarelinha. O livro é também categorizado como contrarromance/antirromance em decorrência das suas características que modificam a interação entre leitor e obra e o que se entendia pelo gênero romance até então.
Escrito em pleno boom da literatura latino-americana, O Jogo da Amarelinha é um grito liberto, resultado do desejo de mudança no modo de se fazer literatura, um hino à liberdade da leitura e do leitor. Dividido em três partes: Do lado de lá (capítulo 1 ao 36), Do lado de cá (capítulo 37 ao 56) e De outros lados (capítulo 57 a 155), o livro apresenta diversas possibilidades de leitura. No começo da obra, o leitor é convidado a escolher como vai lê-lo. Pode fazê-lo da forma corrente: ler as duas primeiras partes e ao terminar o capítulo 56 o livro chega ao fim; ler de acordo com o Tabuleiro de Direção proposto no começo do livro (e aí o romance começa no capítulo 73 e depois volta para o 1); ou, ainda, de outras formas. Afinal, como o próprio autor diz: “À sua maneira, este livro é muitos livros”.
História de duplos, em que Paris e Buenos Aires se fundem e confundem, os personagens que por elas transitam também podem ser lidos como reflexos uns dos outros, como é o caso de Maga/Talita e Oliveira/Traveler. De triângulo amoroso a tratado sobre literatura, as histórias vão se compondo e construindo sempre novas possibilidades de leitura – e tudo regado com excelente música (é quase impossível lê-lo e não se apaixonar por jazz ao mesmo tempo!). Mais de 50 anos de sua publicação, celebrados em 2013, O Jogo da Amarelinha é retrato de uma época efervescente ao mesmo tempo em que se faz extremamente atual. Leitura obrigatória para aqueles que buscam o céu. Artístico, claro.
“Era como se alcançassem a partir de outro lugar, com uma outra parte de si mesmos; (…) como se fossem marionetes de um encontro impossível entre seus donos. (…) onde se podia (…) surgir numa noite de Buenos Aires para repetir no jogo da amarelinha a própria imagem do que acabavam de alcançar.”
Trecho do romance O Jogo da Amarelinha, da Editora Civilização Brasileira.
Cris Lira é mestre em Literatura Brasileira e estudante de doutorado na
Universidade da Geórgia, nos EUA, onde dá aulas de português. Email: clira@uga.edu