A minha, a sua, a nossa escuridão
por Cris Lira
Cada livro que lemos deixa em nós tatuagens mais ou menos fortes. Algumas estarão sempre na pele, na lembrança da experiência, do quase corte. Outras serão fugazes e saltitantes, desaparecendo com o tempo e com a esperança de que novas se sobreponham àquelas. Mas há outras, muito seletas, que marcam pela memória compartilhada que trazem consigo. Para sempre na minha carne, tenho agora a bofetada que o romance Na Escuridão, Amanhã, de Rogério Pereira, desenhou em mim.
Catarinense radicado em Curitiba, idealizador do jornal de literatura Rascunho e organizador do Paiol literário, Pereira estreia sua atividade romanesca com uma narrativa intimista, densa e de elevação poética muito marcante. As imagens apresentadas durante a história de uma família que sai do campo e segue para a cidade, nomeada apenas como “C.”, despertam as memórias mais intrínsecas, tanto das vozes da própria narrativa quanto as do recôndito do leitor. Em meio a este “acordar” dos porões da alma humana, que universaliza a obra, e dos diálogos com os ecos da própria história de tantos outros brasileiros em constante migração, o romance de Pereira é uma tentativa de narrar a violência enquanto que, ao mesmo tempo, aponta o fracasso de conseguir alcançá-la em sua plenitude, afinal, “As palavras nunca serão suficientes. Ou há palavra que nos salve?”
Como o exercício de olhar para um álbum de fotografias que mais esconde do que revela a respeito das pessoas que são ali eternizadas, a história tenta capturar ausências. Os espaços em branco deixados no início de capítulos e cartas parecem uma tentativa geográfica de apontar a impossibilidade de se contar tudo. Somos guiados pela narrativa como se estivéssemos a remexer em uma velha caixa de correspondências, aventurando-nos pela leitura das cartas que são endereçadas a uma figura em sua distância imponente de pai. Ao mesmo tempo, durante os capítulos, acessamos a vida da família na sua cotidianidade, tanto quando eles habitavam o lugar primevo, com os urros da matança do porco povoando a memória, quanto no caminhar pelo Passeio Público ao lado do tão perto e tão longe pai.
Romance de sinestesias, a experiência dos pequenos momentos de lembrança de alguma felicidade dá-se através da cor e do sabor das jabuticabas, dos sons em um bailinho atrás da igreja e da textura na iniciação dos prazeres do corpo que se dão permeados pelo desejo e pela culpa. Já o trauma e o sofrimento são alimentados pela visão da violência que se deseja esquecer. Mas a mácula permanece, tirando os freios da memória.
Ecoando as palavras de Luiz Ruffato, que assina a orelha do livro, Rogério Pereira é, de fato, uma das promessas da literatura brasileira contemporânea. Em Na Escuridão, Amanhã temos uma amostra do potencial de sua escritura. Vale agora um convite à la Clarice Lispector, “Renda‑se, como eu me rendi.”
“Eu trouxe a fotografia, pai. Carrego-a comigo (…). De onde saiu aquele fotógrafo? Nós lá, cercados de animais, e na única fotografia da infância (…). Eu, na garupa do inerte pangaré, estampo a expressão do desespero. Você sempre me disse isso. É a única frase tua que ficou: ‘Você é um desesperado, meu filho’.”
Trecho do romance Na Escuridão, Amanhã, lançado em 2013 pela Editora Cosac Naif.
Cris Lira é mestre em Literatura Brasileira e estudante de doutorado na Universidade da Geórgia, nos EUA, onde dá aulas de português. clira@uga.edu