A hora e a vez de Ferreira Gullar

No dia 5 de dezembro de 2014, tomou posse da cadeira nº 37, um dos nossos poetas mais importantes, o maranhense Ferreira Gullar. Cotado para assumir outras cadeiras antes, finalmente adentrou os caminhos da imortalidade concedida por fazer parte da Academia Brasileira de Letras. Dono de vasta obra que inclui gêneros diversos, como crônicas, que escreve semanalmente para o jornal Folha de São Paulo, um livro de memórias, Rabo de Foguete, de 1998, obras de teatro, crítica de arte, biografia, roteiros para televisão e sua expressão máxima, a poesia, Gullar é um escritor no sentido mais pleno do termo.

Vencedor do prêmio Jabuti, Em Alguma Parte Alguma, seu último livro, publicado em 2010, ano no qual o poeta completava 80 anos, veio quebrar um silêncio de mais de 10 anos desde a publicação de Muitas Vozes (1999). Embora distante no tempo, Gullar (re)inventa-se e a relação entre sua última publicação e o conjunto de sua obra faz-se latente.

Dividido em quatro partes, os temas caros para o autor de Poema Sujo, como a passagem final, apresentada no poema “Reencontro”, com o verso inaugural “Estou rodeado de mortes”, são recorrentes. Há, por exemplo, o apodrecer das frutas na fruteira, que dialoga com poemas anteriores, iniciado nesse livro com “Bananas Podres 3” e finalizado com “Bananas Podres 5”.

Além disso, o eco constante de debruçamento da obra sobre si mesma e seu exercício de se constituir e construir a palavra poética, como vemos em “Fica o Não Dito Por Dito” com os versos: “O poema / antes de escrito / não é em mim / mais que um aflito / silêncio / ante a página em branco”. Também reaparecem os aspectos mundanos e metafísicos postos lado a lado na fluidez do cotidiano, como flagrado nos versos de “Registro”: “À janela / de meu apartamento / à rua Duvivier 49 / (sistema solar, planeta Terra, / Via Láctea) / Limpo as unhas da mão / (…) / na galáxia M 31 / (…) / extingue-se uma estrela”.

Finalmente, a parte que encerra o livro, composta de apenas dois poemas, edifica-se na fisicalidade da memória impressa nas geografias de uma cidade e na figura de “Rainer Maria Rilke e a Morte”. É da visita à “cidade que dentro de mim / é incêndio e perda” que o eu-lírico tenta encontrar as marcas do passado no exílio. Ele fala de Santiago do Chile, mas descobre que “La Moneda não é La Moneda / Santiago não é Santiago / Nada resta das tropelias e gritos, / (…) / Nenhum temor, nenhuma esperança maior”, expandindo, ainda que indiretamente, a reflexão para o próprio eu-lírico, afinal, também ele não é aquele sujeito de 1973. Tanto a cidade que ele avista de cima enquanto o avião se prepara para o pouso quanto a voz lírica são agora outros que se encontram e confrontam, como toda a obra gullariana.

 

Em algum lugar
esplende uma corola
de cor vermelho-queimado
metálica
não está em nenhum jardim
(…)
não cheira
(…)
não murchará
apenas fulge
em alguma parte alguma
da vida

Poema “Uma Corola” de Em Alguma Parte Alguma, publicado pela Editora José Olympio.


Cris Lira é mestre em Literatura Brasileira e estudante de doutorado na Universidade da Geórgia, nos EUA, onde dá aulas de português. Email: clira@uga.edu

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