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Todos por todos

A solidariedade e a colaboração surgem como alternativas para pessoas e negócios enfrentarem a crise da Covid-19

A publicitária Larissa Filipak chegou à Curitiba para visitar a família na mesma semana em que a Covid-19 começou a assustar as autoridades da cidade. Em pouco tempo, ela notou a rotina das pessoas a sua volta mudar. Foi quando decidiu, com os amigos, reunir doações para ajudar as que estavam em situação mais vulnerável. “Queríamos doar para essas pessoas que estão ao nosso redor. A nossa ideia inicial era ajudar 30 famílias. Mas na nossa primeira entrega, conseguimos ajudar 440 famílias”, conta.

Foi assim que nasceu o projeto Contagiados pelo Bem, uma das centenas de iniciativas criadas para ajudar aqueles que estão em uma situação de vulnerabilidade econômica e social em meio a pandemia. Mas os voluntários não pretendem atuar apenas neste período, já estão planejando outras arrecadações e mapeamento de quem precisa de assistência.

Em uma quarta-feira, quando Larissa conversou com a reportagem da TOPVIEW, o projeto já havia batido a meta de doações da semana: 200 cestas.O arquiteto curitibano Jorge Elmor e seus amigos sentiram a mesma preocupação ao pensar sobre os efeitos da crise em algumas famílias. “Começou de forma despretensiosa. Vimos que tinha muita gente querendo auxiliar o próximo. Como estão todos em casa, acho que começamos a nos conscientizar mais. Isso ajudou a despertar esse sentimento solidário em mais pessoas”, diz. Na primeira ação, distribuíram 210 cestas de alimentação. Pouco tempo depois, criaram um grupo no WhatsApp com arquitetos e designers para ampliar a rede de colaboração.

“Como estão todos em casa, acho que começamos a nos conscientizar mais sobre o próximo. Isso ajudou a despertar esse sentimento solidário em mais pessoas.” – Jorge Elmor

Para a primeira ação, os 170 profissionais arrecadaram mais de R$70 mil e distribuíram mais de mil cestas básicas. “Isso deixa a gente muito emocionado, a adesão e o empenho de todos eles que entraram [nessa inicia-tiva] com a gente”, diz Elmor. Outra ação do grupo foi realizar leilões de vinhos e de peças de design assinadas para arrecadação de fundos. “Queremos continuar com essa rede solidária, percebemos que conseguimos fazer muita coisa se estivermos juntos nessa batalha.”

Unidos para enfrentar a crise

A pandemia escancarou certas relações sociais que nem sempre estiveram tão claras, como as noções do papel individual de cada um dentro do coletivo. Isso pode ser uma das razões para o aumento da solidariedade. “A pandemia deixa cada vez mais evidente o quanto a gente é dependente um do outro. É uma dependência fatal. Não tem como viver fora da sociedade, e viver na sociedade é estabelecer relações – relações de cooperação, de solidariedade”, analisa Cezar Bueno de Lima, sociólogo e professor do mestrado em Direitos Humanos e Políticas Públicas da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).

Apesar disso, Lima aponta que o século XXI tem sido simbolizado pelo egoísmo e individualismo. “A sociedade não pode matar sua individualidade. As pessoas precisam desse espaço privado para firmar sua identidade. O problema é o individualismo excessivo produzido em nossa sociedade”, reflete. “A pandemia mostra um lado humano da realidade, que estava adormecido, e reacende essa potencialidade muito humana, muito nossa. A necessidade de recorrer ao outro, pedir ajuda e solidariedade.”

Para Jackson Bittencourt, coordenador do curso de Economia da PUCPR, a solidariedade é uma construção social e o Brasil conta com sistemas de cooperação desde os anos 1970. “Se você pegar [como exemplo] a cooperativa de crédito, cooperativa agrícola, cooperativa de reciclagem de lixo, esses sistemas produtivos, há uma construção social de colaboração, de solidariedade. Isso já vem acontecendo e eu não tenho dúvida de que é uma tendência”, exemplifica. Outros casos que têm um caráter colaborativo na economia são a economia solidária e o empreendedorismo social.

Os negócios de impacto social movimentam cerca de US$ 60 bilhões mundialmente, com um aumento de 7% ao ano, de acordo com o levantamento da Ande Brasil (Aspen Network of Development Entrepreneurs).

A essência volta à superfície

Uma crise pode potencializar algumas dimensões da pessoa que estavam num estado embrionário, já que não havia necessidade de se manifestar. As máscaras sociais tendem a desfazer-se e mostrar-se mais frágeis, enquanto os aspectos da personalidade mais adormecidos vem à tona. É o que afirma Cloves Amorim, professor Titular do curso de Psicologia da PUCPR. “Mas não há saltos, nem mágica, nem mudança aguda. Se até ontem eu era a pessoa mais egoísta do mundo, e hoje estou vivendo essa experiência, amanhã eu não vou acordar uma pessoa generosa”, pontua.

“A pandemia mostra um lado humano da realidade, que estava adormecido, e reacende essa potencialidade muito nossa. A necessidade de recorrer ao outro, pedir ajuda e solidariedade” – Cezar Bueno

Nesses casos – como em uma pandemia – há uma mudança de contingência e, portanto, uma alteração nos comportamentos para responder a elas. “Para o bem ou para o mal. Quem era muito egoísta, já correu e comprou todas as máscaras do mercado. As que tinham predisposição ao altruísmo, estão ajudando o outro”, exemplifica. Ainda assim, Amorim acredita que a solidariedade pode continuar forte no pós-quarentena.

Outros eventos históricos mostram que as transformações que um momento de crise impõe, se refletem em comportamentos a longo prazo, como o pós-guerra. “Nós vamos mudar um pouco esse homem enclausurado em si mesmo, por essa experiência intensa, para um homem também voltado para fora, voltado para o outro”, defende. “O autor [e neuropsiquiatra] Viktor Frank, que foi também um prisioneiro de campo de concentração, estudou sobre o sentido da vida. Nas suas obras, uma das frases que ele diz é: ‘o sentido da vida não está em você mesmo, mas no trabalho para o outro’. É no outro que você encontra o sentido da vida.”

Foi para servir o outro que nasceu o projeto Do Sofá pra Rua. O produtor de eventos Kahoê Mudry já participava de outra iniciativa criada durante o período de isolamento, a No Seu Sofá. Esta tinha o intuito de levar entretenimento e conteúdos legais para quem estava em casa, para deixar esse momento difícil mais agradável – e ainda motivar os artistas locais a produzir enquanto estão parados. Durante esse período foi convidado para entregar comida a quem precisava e viu um amigo fazendo marmitas com o mesmo intuito. Surgiu a ideia de unir as duas coisas: “Vi que estava ali a chance de fazer algo maior. Fiz um formulário para cadastro de voluntários. No primeiro dia já tínhamos 80 cadastrados”, relembra.

“Aquilo que estava embrionário e contido, numa situação de crise tende a amplificar-se, seja para o bem ou para o mal” – Cloves Amorim

Kahoê idealizou, então, o outro braço do projeto. O Do Sofá para a Rua entrega marmitas para pessoas em situação de rua e, hoje, reúne 150 voluntários. Eles recebem os insumos e cozinham nas próprias casas, para evitar aglomerações. “É fundamental nesse momento. Quem vive nessa situação de vulnerabilidade na rua, com tantos comércios fechados e menos gente circulando, recebe menos doação. Quem passaria por ali e deixaria algo pra eles, não está saindo de casa”, diz. “Essa ajuda é necessária até pensando em índices de criminalidade. Um pai de família que ficou sem renda e não tem comida para colocar na mesa, vai buscar por outros meios. O Estado deveria ajudar, mas sabemos que eles não ajudam, então nós ajudamos.” O projeto foi estruturado para ter continuidade mesmo depois que a pandemia passar.

As adaptações do “normal”

A partir das indicações da Organização Mundial da Saúde (OMS) para a população fazer isolamento social para conter a disseminação da Covid-19, a produtora cultural Lucia Casillo Malucelli baixou as portas do Solar do Rosário. “Nos impactou 100%. Nossos 300 alunos dos cursos ficaram sem aulas de uma hora para outra, e nós sem eles”, conta. Foi o momento de se adaptar.

Em duas semanas, a equipe se preparou para transferir as aulas para o ambiente virtual. “Mais da metade dos professores gostou e aderiu, até mesmo os cursos práticos, de desenho e aquarela”, diz Lucia. “Há uns dois anos já tínhamos essa ideia de fazer curso online, mas na correria não paramos para fazer um projeto. Agora, que fomos forçados, tivemos que fazer. O lado bom foi a gente se readaptar e aprender algo novo, que já queríamos tirar do papel.” A adesão foi imediata. Grande parte dos alunos gostou da mudança. “Nosso objetivo na pandemia é ajudar muita gente com arte, cultura e coisas boas para preencher a cabeça”, ressalta.

Migrar para o digital foi a solução para vários negócios. Alguns já tinham a ideia e apenas não haviam executado, outros nem sequer imaginavam que podiam desempenhar a função de outra maneira, sem o contato presencial. Foi diante dessas adaptações forçadas que Marcia Almeida, diretora da loja de mobiliário Casa Villa Batel, descobriu um novo potencial para a marca.

No domingo de Páscoa, Marcia recebeu a ligação de um cliente que havia alugado uma casa e precisava mobiliá-la em dois dias. Ele ficou preso na cidade devido às restrições de viagem para frear a Covid-19. “Ele me mandou o projeto da casa, liguei para minha nora [que é] arquiteta, já que não podia chamar nenhum vendedor, fomos até a loja e escolhemos, juntas, o mobiliário que cabia na casa e estava a pronta entrega”, descreve. No dia seguinte, à noite, o frete chegava para embalar e levar tudo para Campinas. Na manhã de terça-feira os móveis chegaram à casa. “O entregador ligou a câmera do celular e fomos montando a casa juntos. Eu falava onde ia o sofá, a mesa, o tapete… Tivemos que ensinar ele até como colocava a almofada no sofá, já que ele nunca tinha feito a montagem.”

“Quando a vida voltar ao normal, seguramente nós não seremos mais os mesmos.” – Cloves Amorim

A experiência virtual foi tão boa que Marcia decidiu implementar esse serviço no catálogo da loja. “Foi uma experiência única, o cliente ficou muito satisfeito e grato, ele dizia que salvamos a vida dele, já que não tinha onde ficar. No meio do caos, conseguir fazer um trabalho desses foi muito legal”, comemora a diretora. “Vamos incluir no nosso site uma aba para projetos online. Faremos as conversas, acompanhamento, tudo online.”

O projeto Heroínas sem Capa seguiu essa onda. Assim que viu que as atividades presenciais não podiam mais continuar, Gabriella Möller, psicóloga e fundadora, decidiu testar reproduzir os eventos online. A Liga das Heroínas, encontro mensal de mentoria, passou a ser realizado digitalmente, e o Café com as Heroínas se transformou em live no Instagram. “Nos vimos obrigadas a transpor todos os nossos produtos para esse novo formato. Mas, com isso, conseguimos chegar a bem mais mulheres, atingir cada vez mais pessoas”, compara.

Lançaram, também, a primeira edição online da Jornada da Heroína – com duração de quatro semanas – para aprofundar todos os temas que são tratados nos outros projetos. “O essencial é entregar esse conteúdo de saúde mental e coach. Nosso foco é a Psicologia Positiva, todas as nossas ferramentas são baseadas na ciência da felicidade e do bem-estar.”

“O isolamento social não nos obriga a se desconectar, podemos ter esse apoio virtual. As pessoas não sabem lidar consigo mesmas e com o ócio” – Jessica Parolin

A embaixadora do projeto e gestora de pessoas Jessica Parolin Backes conta que a recepção foi ótima, uma vez que as pessoas estão cada vez mais preocupadas com a saúde mental. “O isolamento social não nos obriga a se desconectar, podemos ter esse apoio virtual. A gente precisa ter esse cuidado emocional em todas as épocas. As pessoas não sabem lidar consigo mesmas e com o ócio”, ressalta.

Rachaduras e fortalezas

A crise de saúde pública da Covid-19 explicitou, também, nossas rachaduras e fortalezas. A desigualdade social no país ficou ainda mais evidente com relação a como a doença tem afetado cada grupo. O atual presidente, Jair Bolsonaro, tem sido duramente criticado – pela população e por líderes e organizações mundiais – por colocar a economia como aspecto tão importante (ou mais) quanto a vida.

Para Lima, não há dúvidas no que deve ser prioridade. “A pandemia nos mostrou que a vida é muito mais importante do que uma relação econômica. Porque as pessoas vivas fazem girar o trem da economia. As vidas têm prioridade sobre o aspecto econômico”, pontua.O sociólogo vê, também, um aspecto positivo: o consenso da sociedade brasileira sobre a importância do Sistema Único de Saúde (SUS). “O SUS tem sido a tábua de salvação para minimizar o sofrimento e as mortes. Então recuperamos esse consenso de termos realmente uma saúde mais organizada, que, independentemente da sua situação financeira, você pode ter acesso”, complementa.

O grande desafio que a Covid-19 traz é a facilidade de propagação e, com isso, o colapso dos hospitais, que não tem espaço para tantos doentes. Ela colocou em xeque o sistema de saúde de grandes potências mundiais e, principalmente, mostrou a falta de preparo para situações como essa. Surgiram com força, então, as discussões acerca da necessidade de um sistema de saúde gratuito, como o SUS, em países que não contam com o serviço, como os Estados Unidos.

Aceleração de mudanças

Um meme que circulou pelas redes sociais levanta uma discussão interessante. A pergunta “quem liderou a transformação digital na sua empresa?” tem três alternativas: a) CEO, b) CTO, ou c) Coronavirus. A última é marcada como a resposta certa. A verdade é que a pandemia da nova doença viral forçou várias mudanças digitais, que vinham sendo conduzidas a passos lentos, a dar grandes saltos.

A telemedicina foi uma das inovações que precisaram ser aceleradas. A ideia é antiga, mas com o distanciamento social e a saturação do sistema de saúde, o Conselho Federal de Medicina passou a reconhecer e regulamentar seu uso no Brasil. Os atendimento por vídeo-chamada mantêm o paciente em casa, sem precisar estar em contato com outros. A medida é provisória e vigorará até o final da crise de saúde.

“A pandemia nos mostrou que a vida é muito mais importante do que uma relação econômica. Porque as pessoas vivas fazem girar o trem da economia” – Cezar Bueno de Lima

Na esfera pública, o Senado Federal brasileiro realizou a primeira votação online do mundo, abrindo caminho para os Legislativos Virtuais. O sistema de votação remoto impacta a dinâmica dos órgãos públicos, mas ainda não há como prever se vai perdurar após a crise. Milhares de trabalhadores de vários setores também entraram em regime home office, mantendo as jornadas de trabalho em casa. Na arte, vários museus pelo mundo ainda podem ser visitados mesmo sem sair de casa. Usando o Google Arts & Culture, plataforma lançada em 2011, os visitantes podem ver exposições de museus e galerias de diversos países online.

Em maio, o Museu Oscar Niemeyer (MON) inaugurou sua décima exposição virtual no site, a mostra “União Soviética Através da Câmera”, que foi vista presencialmente em 2015. O consumo de serviços de streaming de filmes, séries e vídeos teve um cresci-mento de 20% durante o mês de março no mundo, devido a quarentena, aponta o relatório da Conviva. Isso fez com a que a União Europeia requisitasse a serviços como Netflix e Amazon Prime Video, duas gigantes do setor, a redução da qualidade da imagem das plataformas para que a população não tivesse problemas de conexão de Internet.

As tecnologias para o mundo digital avançaram anos em meses e prometem continuar fortes na vida da população, hiperconectada. Pelo lado comportamental, não há como garantir que os valores expandidos durante a pandemia vão durar no pós-crise, mas, para o psicólogo Cloves Amorim, não há dúvidas de que, “quando a vida voltar ao normal, seguramente nós não seremos mais os mesmos.”

*Matéria originalmente publicada na edição #236 da revista TOPVIEW.

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