O legado de Cintia Peixoto, nossa inventora
Eu já tinha ido àquele endereço no Batel antes. Da última vez em que estive ali, há dois anos, eu e toda equipe da Top View estávamos vestidos com algum item caipira, com pratos de salgados e doces na mão, animados para fazer uma Festa Junina na casa da chefe. Mas quando eu toquei a campainha da casa de Cintia Peixoto em março deste ano, o motivo da minha ida era bem diferente: fazer uma entrevista para escrever este perfil de despedida dela, que está se afastando da sua função de publisher da View Editores. Que situação estranha.
Como jornalista, estou acostumada a entrevistar pessoas que eu não conheço. Para não dizer que são totalmente desconhecidos, posso dizer que sempre dou uma olhada no Facebook ou alguma outra rede social, para ver o rosto do entrevistado e antecipar um pouco o que me espera. Mas ali eu estava prestes a entrevistar uma pessoa com quem convivi diariamente nos últimos cinco anos – com quem eu falava muito de trabalho, claro, mas que vinha me dar um beijo todos os dias. E que trouxe um lindo macacão de uma viagem ao Chile quando eu fiquei grávida da minha filha. E que me falava da sua família, que me contava da sua dieta, que me dava dicas de coisas legais para ver no Netflix. Enfim, mais do que uma chefe, uma amiga.
Entretanto, ao preparar a pauta – as perguntas da entrevista, jornalisticamente falando –, me dei conta de que não sabia muitas coisas sobre essa pessoa que, há quase 20 anos, decidiu criar uma revista regional, do zero, em uma época em que o legal era ter um veículo nacional. “Eu abri uma revista porque eu não tinha noção da correria que seria”, comenta Cintia, relembrando o início da trajetória da Top View, sentada à sua mesa de jantar.
A Top View começou como um encarte da Top Magazine – revista que circulava em Ponta Grossa e que tinha Claudio Mello como dono. Ele queria alguém que fizesse uma coluna social em Curitiba e chamou a Cintia para ajudá-lo. “Como eu trabalhava na Secretaria de Administração do Estado, conhecia muita gente”, explica. Depois de 20 dias de trabalho juntos, viraram sócios. A condição de Cintia era que a revista “fosse linda” e que não fosse política, “porque tinha que sobreviver a todos os governos”. O conteúdo da então Top Magazine era feito em Curitiba, mas a distribuição era nacional – até para Portugal a revista chegou a ir. Sem investimento externo, era preciso “vender a revista” para que ela rodasse na gráfica. “A gente começou um projeto muito ousado na época e não entendia como fazer revista. E até que o fato de não entender foi um diferencial”, lembra Cintia, que cita capas sem texto algum para não poluir a foto principal.
Depois de alguns meses com a parte editorial da Top Magazine sendo feita em Curitiba e a parte comercial atuando com mais força em São Paulo, a Top View – essa só com conteúdo local – foi ganhando força. Quando passou a ter 16 páginas, surgiu a ideia de desvincular as duas Tops: a Top Magazine passaria a ser feita em São Paulo, onde existe até hoje. Já a Top View se fortaleceria como uma revista 100% regional, feita em Curitiba e para curitibanos.
Para celebrar a maioridade da marca – que completava 18 meses na ocasião –, a Top View deu sua primeira grande festa no Jóquei Clube de Curitiba, evento que reuniu duas mil pessoas. Na época, a View Editores já publicava também a Top Festas.
Do erro ao processo
“Não tem nenhum sonho que não dê muito trabalho”, comenta Cintia ao lembrar sua trajetória e a da Top View. Das primeiras reuniões de pauta às impressões em gráficas de São Paulo, a publisher lembra que o que hoje parece um processo natural – de elaboração de pautas, produção de fotos, contato com os clientes – foi definido ao longo dos anos. A cada erro que acontecia com a revista, a equipe sentava e definia processos. “Era tudo muito informal”, lembra. Segundo ela, não teve um lugar novo na cidade no qual ela não bateu na porta para tentar vender um anúncio. “Se você me perguntar, eu sei de todas as construtoras, de todos os apartamentos novos, de todas as distribuidoras de bebida, de tudo o que abriu e fechou na cidade”, emenda.
Quem muito ajudou Cintia, orientando-a sobre o mercado editorial, foi Ernani Paciornik, dono da Editora Grupo 1, que publica a Náutica – revista que nasceu em Curitiba em meados dos anos 80. Além de explicar como e quando comprar papel para a impressão – gasto que pode fazer toda a diferença na produção de uma revista, Ernani deu a Cintia uma dica muito importante sobre a distribuição do produto: “Ele me disse que o público AA deve ser mimado, receber a revista em casa”, conta. Até hoje o maior volume de revistas Top View é entregue em residências e estabelecimentos comerciais -– apenas um volume simbólico é destinado à venda em bancas. Por isso, Cintia afirma que o mailing da revista sempre foi bem pensado, com formadores de opinião e consumidores de alto padrão. Muitas vezes, os próprios clientes comerciais da revista indicaram nomes.
Uma Curitiba cool
Ao focar sua linha editorial no lifestyle do curitibano, a Top View assumiu, despretensiosamente, o papel de ser o registro impresso de como a capital paranaense mudou nas últimas duas décadas. Cintia cita o Crystal Fashion – evento de moda que surgiu em 2009, do qual a revista sempre participou, e que abriu o mercado local para fotógrafos, produtores, modelos. “A gastronomia mudou barbaramente; todo o trabalho do Celso [Freire], a luta da Manu [Buffara], do Chico [Urban], da Eva [dos Santos], do Beto [Madalosso], tudo isso é muito recente”, emenda.
Segundo Cintia, um dos nortes da revista sempre foi trazer as grandes novidades de fora, mas principalmente valorizar o local. “Sempre tivemos um trabalho nas entrelinhas de promover o que é daqui, em todos os tipos de movimento”, afirma. Por anos, por exemplo, o muro da casa que abrigou a View Editores na rua Fernando Simas foi pintado mensalmente por um artista diferente. E esse material – feito por artistas como André Mendes e Nilson Sampaio –, virou um pocket book de cartões postais. Muitos dos personagens que ajudaram a dar fama a Curitiba – como os arquitetos Jaime Lerner e Lolo Cornelsen, o presidente de O Boticário, Artur Grynbaum, a artista plástica Guita Soifer, a diretora presidente do MON, Juliana Vosnika – foram temas de reportagens das quase 200 edições da Top View. Modismos, mudanças de comportamento, eventos sociais e tudo o que foi novidade na cidade tiverem registros por aqui.
O Batel Soho é outro exemplo do legado de Cintia Peixoto para a cidade. Ao atuar como diretora de marketing da Associação dos Comerciantes da Região da Praça da Espanha, criada em 2007 e na qual assumiu a presidência na terceira gestão, Cintia incentivou o movimento de ocupação do espaço público na cidade – que rende frutos até hoje, visto as inúmeras feiras de gastronomia, entre outras, espalhadas pela cidade. O trabalho de Cintia na entidade é um exemplo de como ela defende a forma de atuação de um veículo de comunicação: “Ajudar na parte social da cidade é uma obrigação de quem trabalha com comunicação”, resume. “Isso é um luxo”, pondera a publisher que sempre focou atuar no mercado de luxo – mesmo quando o termo era pouco falado por aqui.
“E agora, Cintia?”
Ao olhar para trás, Cintia lembra das pessoas que conheceu, dos lugares que visitou, das experiências que viveu graças à Top View. Visitar Peru e Atacama, trabalhar com o fotógrafo J.R. Duran, entrar no Fasano de São Paulo antes da abertura. “Foi tudo muito legal”, comenta. “Nos últimos 19 anos, eu vivi a revista 24 horas por dia.” Cintia lembra que seu marido, Newton Rocha Gomes Jr., foi o primeiro investidor da Top View e que seu filho Luccas tinha quatro meses quando tudo começou. Sua mãe chegou a fazer recepções e seus filhos Antonella e Newton Neto buscaram o irmão milhões de vezes na escola. “Quando você tem estabilidade familiar, é muito mais fácil vencer”, comenta, lembrando -se de agradecer o apoio da família durante todos esses anos.
A sensação que fica, segundo ela, é a de dever cumprido. “É muito prazeroso saber que você criou um produto que não existia na cidade e que está fazendo quase 20 anos; saber quantas pessoas você ajudou, quantas formou, quantas famílias envolveu, quantas pessoas conheceu”, conta Cintia. Sobre a continuidade da marca, Cintia é categórica ao afirmar que criou um filho forte. “Um produto não é uma pessoa, ele tem que ter vida nova, pessoas novas, novos desafios, pessoas que pensem diferente do que eu pensei”, reflete. Aos 53 anos, ela afirma que chegou a hora da marca quebrar paradigmas que se tornam mais difíceis com o tempo. “O amadurecimento te engessa muito”, completa.
Agora, o projeto é de curtir mais sua casa e a família. “Eu pretendo voltar ao mercado, usando minha experiência no mercado de luxo”, afirma. Da redação, segue a torcida por quem, de forma visionária, nos moldou e criou. E o nosso obrigado. Boa sorte, Cintia. De uma forma ou de outra, estas páginas serão sempre suas.
Depoimentos para nossa inventora
Selecionamos depoimentos de pessoas próximas a ela. Amigos, colegas de trabalho e admiradores estão na lista:
“A Cintia é, sem dúvida, uma das mais brilhantes publishers do Brasil, que conseguiu criar e manter um produto de qualidade e inovador, que sempre esteve à frente do seu tempo.” – Ernani Paciornik, dono da Editora Grupo 1, deu valiosas dicas à Cintia nos primeiros anos da Top View.
“Cintia Peixoto é uma pessoa ímpar, com um conhecimento surpreendente das pessoas desta cidade e do Estado e da forma como vivem. Falar da minha prima é muito confortante, pois a conheço bem! Com sabedoria, generosidade e ética, ela compartilha seu conhecimento pessoal e profissional com clientes e amigos. É uma grande conselheira, uma mulher de fibra, uma mãe zelosa e carinhosa. É um privilégio desfrutar de sua convivência. Sucesso e que Deus te acompanhe neste novo desafio!” – Fernanda Richa, prima e amiga que sempre acompanhou a trajetória de Cintia.
“Quando cheguei em Curitiba, em 2000, algumas pessoas me ensinaram a amar a cidade. Uma delas foi a Cintia Peixoto. Seu entusiasmo pela cidade e pela sociedade local logo trouxe frutos. Não só através da Top View, mas também na transformação radical da região do Batel. Parabéns, Cintia. Você fez a diferença por Curitiba.” – Mario D’Andrea, atualmente CEO da Dentsu Brasil. Por meio da agência Loducca Sul foi, segundo Cintia, um dos grandes apoiadores no início da Top View.
“Trabalhei com a Cintia por nove anos. Foram nove anos de parceria, de respeito e de amizade. Hoje me vejo, como gestora, repetindo a essência do que aprendi com ela. Sua relação com o trabalho vai muito além de competência e profissionalismo. Tem a ver com paixão, com envolvimento, com entrega. Ela é ousada, corajosa, cheia de referências e generosa. Trabalhar com a Cintia foi fundamental na formação da profissional que sou hoje e eu só tenho a agradecer.” – Fernanda Ávila, primeira editora da Top View. Hoje, é sócia da Pulp Edições.
“A Cintia sempre foi um exemplo de como fazer networking com trabalho árduo e disciplina. Construiu um verdadeiro case com a Top View, fruto de muita dedicação e vontade de fazer melhor. Para Curitiba, ela é uma referência importante de empreendedorismo, foco em qualidade com resultados e capacidade de fazer acontecer.” – André Caldeira, empresário, headhunter e especialista em gestão de talentos. Colaborou com a coluna Vida e Trabalho por um período da Top View.