Novos tabus infantis: como abordá-los com as crianças
Era uma vez em que o tópico espinhoso para tratar com os filhos era sexo. Além do diálogo com crianças e adolescentes, o próprio cotidiano dos pais hoje passa por temas emergentes – essenciais, desconhecidos e desafiadores. Gênero, redes sociais, filhos celebridades, feminismo, veganismo, política… Confira um guia para lidas com os novos tabus infantis da sociedade atual.
POLÍTICA
“Seu coxinha!”, “Fora, Mortadela!”
Quando o assunto é política, o Brasil e o mundo parecem ter se transformado em um grande campo minado, onde qualquer passo em falso pode provocar a explosão de ideias mais fulminantes que bombas atômicas. E, nesse terreno fértil, crianças e adolescentes não ficam imunes e acabam até mesmo participando de passeatas ao lado dos pais ou reproduzindo discursos que escutam em casa.
Para Pedro Markun, um dos autores do livro Quem manda aqui?, o assunto deve ser pautado dentro de casa, independentemente da idade dos filhos, para informar corretamente os pequenos, numa linguagem apropriada a cada idade. Já para a psicóloga Maísa Pannuti, mestre e doutora em Educação e professora da Universidade Positivo, essa abordagem deve ser feita gradualmente, de acordo com a idade e a curiosidade. “A resposta deve ser focada naquilo que a criança quer saber.”
DOUTRINAÇÃO
Escola sem partido
A questão vem colocando pais e professores em lados opostos. Movimentos como o da Escola Sem Partido, que alega não ter vinculação política ou ideológica, visam combater abordagens que possam entrar em conflito com as convicções religiosas ou morais das famílias dos estudantes.
A consulta pública do projeto de lei relacionado ao programa Escola Sem Partido já conta com quase 400 mil votos – com resultado bastante equilibrado. Para o Senado Federal, é um recorde desde a criação dessa ferramenta online, em 2013. Maísa Pannuti ressalta a importância de se refletir e diferenciar o que é doutrinação política na escola daquilo que é debate para estimular o conhecimento e aflorar o pensamento crítico dos estudantes. “Doutrinação política é a escola apontar candidatos ou partidos, e isso deve ser combatido”, afirma. “Mas há temas atuais e complexos que precisam ser discutidos e aprofundados na sala de aula.”
VAIDADE PRECOCE
“Espelho, espelho meu…”
Quesitos como simpatia, beleza física, desinibição e capacidade de articulação verbal são algumas das exigências para as meninas de 4 a 17 anos interessadas em participar de concursos como o Miss Brasil Infantojuvenil. Lídia Weber pondera que algumas ações, que acontecem por repetição de cenas que envolvem os mais velhos, não chegam a ser preocupantes. É o caso da menina que, ao ver a mãe pintar as unhas, pede para fazer o mesmo. O problema é quando a vaidade na infância se torna uma meta, um hábito, e a criança quer ir toda semana ao salão de beleza. “É necessário cuidar para não falar o tempo todo ‘você é bonita’ para uma menina”, aconselha. “Ela passa a aprender que só a aparência é importante para as relações sociais.” Para a doutora em Psicologia e professora da UFPR Lídia Weber, excesso de preocupação com a aparência não combina com a pouca idade.
VEGANISMO/ VEGETARIANISMO
“Quero misto quente sem presunto!”
Quando Joaquim, 5, vai a festinhas, seus pais, o casal de professores Thays Teixeira de Oliveira e Nilo Silva Pereira Neto, costumam ir preparados com uma “marmitinha vegana” para que o filho possa se divertir sem ficar alheio às tentações da mesa. Adeptos da alimentação vegana* há muitos anos, eles optaram por incluir o filho, com acompanhamento da pediatra e de uma nutricionista. Em alguns casos os próprios anfitriões já preparam algo específico para ele. De acordo com Thays, não precisa ser nada muito elaborado: pipoca já é o suficiente para o menino curtir a festa tranquilamente, da mesma forma que as outras crianças. Segundo a nutricionista Marinês Cristine Silveira é necessário apenas que a criança seja acompanhada por um médico para avaliar se há carências nutricionais. No caso do Joaquim, ele faz suplementação de ferro e vitamina B12.
Nas instituições particulares em que estudou, ele levava o lanche de casa e, quando necessário almoçar na escola, consumia o trivial (arroz, feijão, salada e algum legume refogado). Os pais solicitaram alimentação especial quando Joaquim passou para a rede pública municipal, que oferece uma variedade de cardápios, visando a atender desde alunos que seguem dietas veganas até casos de diabetes ou intolerância a algum ingrediente. Os colegas sabem que Joaquim é vegano, e a família usou um recurso pedagógico para explicar: “Sempre pergunto se ele gosta dos animais. Para criança, essa lógica é muito fácil de entender: se a gente gosta, não come. E é assim que ele explica para os amiguinhos”, exemplifica a mãe.
*Os adeptos do veganismo não consomem nenhum produto de origem animal, como também roupas e acessórios – em couro, por exemplo – ou marcas de cosméticos que façam testes de laboratórios em animais.
OBESIDADE/SEDENTARISMO
Turma da batata-frita
Estudos divulgados em junho no The New England Journal of Medicine mostram que o número de pessoas acima do peso ideal só aumenta no mundo. Deste total, estima-se que 605 milhões de adultos e 110 milhões de crianças estejam não só acima do peso, como sejam obesas. A Organização Mundial da Saúde recomenda que crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos façam, pelo menos, 60 minutos de atividade física por dia.
A nutricionista Marinês Cristine Silveira lembra que a probabilidade de uma criança com sobrepeso se tornar um adulto com o mesmo problema é grande – por isso a importância de se corrigir o quanto antes e evitar doenças futuras. “Os pais devem procurar ajuda profissional para avaliar carências nutricionais e estabelecer as melhores estratégias para corrigir erros alimentares. É possível ajudar uma criança a sair do sedentarismo explorando o lúdico, com atividades em que possa se movimentar, como jogos com bola, passeios de bicicleta, skate e mesmo jardinagem.
2,2 bilhões de pessoas no mundo (ou 30% da população), entre adultos e crianças, estão acima do peso, segundo a OMS.
ÁLCOOL E TABACO
“Mas todo mundo bebe, pai…”
O tabaco, que envolve cigarro e seus derivados (inclusive narguilé), é a segunda droga mais consumida entre estudantes, superada apenas pelo álcool. De acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar, 18,4% dos estudantes brasileiros já experimentaram cigarro. Para o psiquiatra Marcelo Kimati, o mais preocupante é a “tolerância social” que essas drogas têm, inclusive dentro das famílias. “O álcool é muito mais aceito socialmente, mas seu o uso por adolescentes é um fenômeno mais grave epidemiologicamente e mais associado à mortalidade do que o uso de drogas ilícitas”, compara.
De acordo com Kimati, pelas estatísticas, para cada adulto dependente de crack há cerca de cem que fazem uso abusivo ou desenvolvem dependência de álcool. “A discussão sobre drogas lícitas ou ilícitas precisa ser feita no mesmo patamar. Muitas vezes, os pais têm uma postura muito mais flexível e tolerável com relação ao álcool e ao cigarro, mas as estatísticas mostram que as bebidas causam danos muito mais graves socialmente, em função justamente do número de pessoas que se tornam dependentes ou abusam do álcool”, salienta o psiquiatra. Ele reitera ainda que, a exemplo do que ocorre com as drogas ilícitas, a discussão deve sempre acontecer de forma espontânea, ouvindo os filhos e evitando conversas em tom de monólogo, em que apenas os pais “despejam as regras”.
Três filmes sobre o uso de drogas na adolescência:
Diário de um adolescente, com Leonardo Di Caprio.
Trainspotting (1 e 2), de Danny Boyle, com Ewan McGregor.
Aos 13, com Holly Hunter e Evan Rachel Wood.
DROGAS
“Fica longe desses maconheiros, filho”
Levantamento da Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (Pense), realizada em 2015 pelo IBGE entre adolescentes de 13 a 15 anos de escolas de Curitiba, mostra que 15,7% dos estudantes pesquisados já experimentaram algum tipo de droga ilícita. Destes, 46,1% utilizaram maconha e 1,2% usou crack nos 30 dias que antecederam a pesquisa.
A psicóloga Lídia Weber lembra a importância desse tipo de debate em casa, assim como questões de sexualidade e direito sobre o corpo. “Mas não adianta falar sobre o não uso de drogas se os pais tomam bebidas alcoólicas todos os dias ou remédios para dormir”, salienta. “Coerência é essencial.” A capacidade de diálogo sobre esses temas, segundo o psiquiatra Marcelo Kimati, depende dos canais já existentes na família.
Segundo o psiquiatra, a literatura médica é consensual ao afirmar que os processos de prevenção com mais sucesso não abordam direta ou exclusivamente o tema, mas discutem autonomia, transformações das relações. Abordam lazer, solidão e temas que podem se conectar ao uso de drogas. “Não deve existir um ritual para se conversar sobre o tema.
Ele pode e deve surgir de forma espontânea, com a possibilidade de se ouvir o adolescente sobre qual informação ele detém sobre o assunto”, orienta. “Não se deve usar o que chamamos de ‘pedagogia do terror’, apontando para os aspectos trágicos do uso de drogas. Este tipo de argumentação não tem apresentado sucesso na prevenção ao uso.”
GERAÇÃO WHATSAPP
Use com moderação!
A tecnologia chegou para causar um alvoroço na relação entre pais e colégios. As conversas que antigamente se limitavam ao portão da escola agora acontecem a qualquer hora e lugar. Os grupos de WhatsApp, que para os pais é uma forma de estreitar a comunicação sobre a rotina das crianças, para a escola acaba se transformando num aluno-problema.
O advogado Guilherme Guimarães, especialista em Direito Digital e Segurança da Informação, destaca que esse tipo de grupo precisa contar com um administrador que mantenha o foco dos objetivos, até para evitar as fofocas e discussões desnecessárias. Guimarães lembra que problemas entre estudantes ou entre pais e a escola devem ser tratados de forma privada entre os envolvidos, jamais publicamente nas mensagens pelo aplicativo. “Desde pequenas fofocas até críticas sem fundamento à escola ou aos profissionais são passíveis de ação judicial por quem se sentir ofendido”, enfatiza o advogado.
Não é necessário cumprimentar diariamente, nem mandar mensagens motivacionais. O grupo deve ser utilizado para esclarecimentos sobre situações pontuais do cotidiano escolar, como quando um aluno não pode comparecer à aula e os pais querem saber o que ele perdeu naquele dia. “Não é um grupo social, de amigos. Podem surgir amizades ali dentro, obviamente, mas no ambiente coletivo, o foco deve ser sempre os interesses comuns a todos”, afirma Guimarães.
FUTURO PROFISSIONAL
“Quando crescer, tenho que dominar o mundo!”
Aulas de inglês, natação, judô, além do período regular na escola… A agenda das crianças e adolescentes anda tão lotada que pode mal sobrar tempo para brincar ou curtir a família. E, apesar de todo o conhecimento técnico adquirido nesses cursos, especialistas recomendam atividades que contribuam para o desenvolvimento de competências socioemocionais dos filhos. Para Rosana Becker, coach especialista em crianças, adolescentes, pais e professores, há muita competição, estimulada por pais e, às vezes, pelas escolas, para exigir resultados das crianças desde cedo.
Segundo Becker, esse período é de desenvolvimento emocional e comunicação, por isso a importância do brincar livremente, inclusive. A psicóloga e coach de desenvolvimento de carreira Tania Klein alerta que é necessário prestar atenção ao que os filhos querem, e que esses desejos, durante a infância e adolescência, raramente estão definidos. “Existem muitos adultos infelizes por aí porque seguiram as profissões de familiares”, analisa.
“É preciso ter muito cuidado com o que os pais projetam para os filhos para não ter profissionais frustrados no futuro.” Ela enfatiza que mais importante do que o conhecimento técnico é a maturidade emocional do profissional. “É possível preparar um cidadão para que enfrente obstáculos, saiba escolher, tenha autoestima elevada e confiança em si.”
REDES SOCIAIS
“Sai do celular, filho!”
Dados do Comitê Gestor da Internet no Brasil mostram que 79% das crianças e adolescentes com idades entre 9 e 17 anos no país são usuários de Internet, dos quais 87% possuem perfil em redes sociais. Apesar de reconhecerem que o acesso à tecnologia está cada vez mais precoce, especialistas recomendam tentar adiar ao máximo esse “contato”. Se possível, somente depois dos 13 anos, afirma a psicóloga Maísa Pannuti, mestre e doutora em Educação e professora da Universidade Positivo. “Antes eles precisam ter acesso a outras linguagens”, explica. Para o advogado Guilherme Guimarães, os pais é que podem determinar o momento mais adequado para os filhos entrarem em rede social, a partir da avaliação da maturidade e trajetória.
O especialista indica cuidados como deixar o computador, tablet ou celular em local acessível para toda família, limitar o tempo de acesso diário e orientar sobre perigos como conversas com estranhos. E explica que as orientações devem ser direcionadas ainda para esclarecer crianças e adolescentes de que tudo o que eles fazem na rede tem consequências. “Agressões, postagens que comprometam a honra de pessoas, divulgação de conteúdo inapropriado ou o simples compartilhamento de uma situação comprometedora são crimes virtuais”, observa o advogado. “Quando o autor é menor de idade, os pais ou responsáveis podem ser responsabilizados e responder por essas atitudes que não foram monitoradas.”
O YouTube já oferece recursos para bloquear conteúdos indesejados e, melhor ainda, limitar quais canais a criança pode ver. Para usá-los, é preciso ter uma conta ligada ao aplicativo.
CRIANÇA CELEBRIDADE
“Curte aqui o meu canal!”
A curitibana Rafa Gomes, de 11 anos, passou a conviver com as câmeras e holofotes desde que se tornou uma das finalistas do The Voice Kids 2016. A rotina da estudante que cantou ao lado de Roberto Carlos está mais agitada e agora é compartilhada com fãs em todas as suas redes sociais oficiais – que são monitoradas constantemente pela família. Seus pais, o casal de empresários Marcia Gomes Silva e Aguilar Borsato Silva, optaram por assumir a gestão da carreira da pequena artista e assim poder definir a agenda de eventos conforme julgam adequado. “O foco de uma criança de 10, 11 anos deve ser brincar, estudar”, argumenta a mãe.
Propostas de shows, eventos e publicidade são analisadas pelos pais de acordo com o que se relaciona com a imagem de uma criança, independentemente da rentabilidade. As que não têm relação com temas ligados à infância, cultura, educação ou causas sociais não passam no filtro da família. “No futuro, é importante que ela olhe para trás e se orgulhe de ter participado destes trabalhos”, comenta Marcia.
GÊNERO
Meu pai é dono de casa
Formar crianças livres de preconceitos, promovendo a educação para a igualdade desde a infância é papel dos pais, da escola e de toda a sociedade. A psicóloga Carla Regina Françoia, professora da PUCPR, destaca que o primeiro passo é dar o exemplo, compartilhando as responsabilidades na criação dos filhos e na execução das tarefas domésticas. “Os pequenos são muito observadores e o discurso desconexo do comportamento não funciona com eles”, salienta. Fugir da rotulagem nas brincadeiras, como “jogar bola é para meninos” e “brincar de boneca é para meninas” é outro ponto fundamental a ser trabalhado desde a infância.
As brincadeiras e as atitudes acabam convencionadas ao sexo anatômico, e, de acordo com Carla, isso é fruto de uma sociedade “heteronormativa e preconceituosa”, que reproduz construções sociais arraigadas no inconsciente coletivo. Mas a professora da UFPR Lídia Weber já percebe alguns avanços na questão da liberdade de gênero. Antes, a caixa de química tinha sempre a foto de um menino e a minicozinha cor-de-rosa, a foto de uma menina. A Lego lançou bonecas femininas cientistas, paleontólogas, astrônomas, químicas”, comemora.
Quero ser menina? Quero ser menino?
A distinção entre sexo (anatomia) e gênero (identidade) apareceu entre as décadas de 1950 e 1960, após estudos com crianças que não se identificavam com o sexo anatômico e de pessoas transexuais. Já naquela época a medicina e a psicologia concluíram que o gênero podia não coincidir com o sexo.
Casos de crianças que não se identificam com o gênero biológico – transgênero – têm aparecido na mídia e estão desafiando pais, escolas, além de toda a rede de serviços de saúde para saber como atender adequadamente e com respeito. Um dos casos mais famosos é o do filho de Angelina Jolie e Brad Pitt, que nasceu menina e era chamada Shiloh, mas optou pelo nome de John e hoje está com 11 anos. No Brasil, entre os exemplos que se tornaram públicos está o de Oliver, 8 anos, filho da flautista Uiara Pimenta.
Apesar de ter nascido Olívia, desde os 4 anos afirmava ser menino e agia como tal. Já Melissa, 11 anos, nasceu Miguel, mas sua mãe, Karina de Fazzio, relata ter percebido desde que ela tinha 1 ano a vontade de ser menina, inclusive com ameaças de se automutilar. Os dois casos são acompanhados no Ambulatório Transdiciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Hospital das Clínicas de São Paulo. Segundo a psicóloga e professora da Universidade Tecnológica do Paraná Grazielle Tagliamento, o maior desafio é trabalhar o assunto, em suas mais diferentes vertentes, com pais e professores, porque as crianças tendem a tratá-lo com mais naturalidade. Carla Françoia concorda e credita isso ao fato de estarem menos expostos às convenções sociais.
2 comentários em “Novos tabus infantis: como abordá-los com as crianças”
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Excelente matéria! Muito esclarecedora e atual. Ilustração nota 10.
Olá, Marielle, tudo bem? Poxa, que bom! Obrigada pelo comentário 🙂