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Marcello Dantas traz Ai Weiwei ao MON na exposição do ano: “O museu é a catedral possível do nosso tempo”

Um dos grandes nomes da curadoria de arte no Brasil, Marcello Dantas apresenta a grande exposição de Ai Weiwei em Curitiba

“A arte é uma maneira de expressar meu amor pela vida”, conta Marcello Dantas, sentado em meio a grandes caixas de madeira e ao som de marteladas da montagem de uma das exposições mais esperadas do ano. O cenário é o Olho do Museu Oscar Niemeyer (MON), onde estava sendo preparada a exposição Raiz, do artista chinês Ai Weiwei – sua maior já realizada no mundo.

A partir do dia 3 de maio, os curitibanos poderão apreciar, pela primeira vez, as obras do ativista que já percorreu temas como ditadura, refugiados e direitos sociais com a curadoria de Dantas.

Com fala mansa e em meio a entradas ao vivo nas rádios locais, Dantas explica sua curiosa trajetória: estudou para ser diplomata, mas desistiu quando se deu conta de que detestaria trabalhar para o governo. Decidiu, então, estudar história da arte na Itália e telecomunicações interativas, cinema e televisão em Nova York. Aliou os conhecimentos que trouxe na bagagem e o incentivo de um colega para iniciar o caminho que segue até hoje: criar linguagens.

Imperdível! Ai Weiwei, um dos maiores nomes da arte contemporânea mundial, chega a Curitiba

O curador frisa que nunca quis repetir uma fórmula – nem mesmo sua própria. Com esse mote profissional, hoje acumula em seu currículo a concepção de museus como a Japan House e o Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, e o Museu do Caribe, na Colômbia. Na curadoria de exposições, soma diversos artistas consagrados, como Anish Kapoor, Peter Greenaway, Rebecca Horn, Bill Viola e Laurie Anderson. A ênfase está na arte contemporânea, sua preferida.

Marcello Dantas
Marcello Dantas. (Foto: Samuel Chaves/S4 Photopress/divulgação.)

Um dos critérios profissionais de Dantas – dialogar com interlocutores que o inspirem – é constantemente alcançado com sucesso. Com Weiwei, a conexão foi instantânea. Dois taurinos de curiosidade inesgotável não poderiam ter um resultado diferente. Por outro lado, a conexão do chinês com o Brasil remonta a muito tempo antes: seu pai, o poeta Qing Ai, visitou o país como embaixador cultural da China e chegou a ficar amigo de Jorge Amado. “Dentro da distância existe proximidade”, diz Marcello. E é justamente esse seu objetivo: aproximar a arte e o público.

No bate-papo a seguir, Marcello falou sobre as características de sua curadoria, como os museus podem conquistar mais público, as dificuldades do cenário artístico atual e, claro, o que podemos esperar da mostra de Ai Weiwei.

Você une arte e tecnologia para proporcionar experiências de imersão por meio dos sentidos e da percepção. Essa é a tendência para conquistar novos públicos?
Acho que só podemos fazer a arte do nosso tempo. Eu nunca seria capaz de ser curador de uma arte de um tempo que eu não vivi. A tecnologia é parte integrante da nossa realidade no dia a dia hoje. Eu acho que a tecnologia é, e sempre foi, uma linguagem, que se manifesta de várias formas e vai perdendo a sua visibilidade com o passar do tempo. Então, a beleza da tecnologia é que ela vai se tornando invisível e você para de pensar nela. Quando a gente fala que existe alguma coisa entre arte e tecnologia é que a gente ainda está olhando ela como algo distante, mas, para mim, ela é algo que está cada vez mais dentro da gente, do nosso jeito de pensar. A nossa memória foi expandida pelo Google, nossa forma de comunicação foi totalmente mediada através da tecnologia. Então, eu uso sim a tecnologia porque acho que ela é uma linguagem contemporânea. É impossível falar com o público de hoje sem usar isso. Mas não uso a tecnologia pela tecnologia, uso como uma ferramenta de comunicação, que é extremamente legítima e verdadeira.

A experiência estática do museu está ultrapassada?
Não. Tem uma coisa muito curiosa: as pessoas me associam à ideia de interatividade. Mas tenho algo dentro de mim muito claro: interatividade não é apertar botão. Ela é a inclusão do espectador na equação da obra. No momento em que você passa a reconhecer a importância do papel do espectador dentro do processo artístico – e não mais como alguém passivo, distante e isolado – você está criando algo interativo. Ou seja, entre criador, obra e observador, que agora é agente, existe uma interação. A beleza é conseguir fazer obras que mesmo que não seja eletrônicas, sejam inclusivas, tragam as pessoas para dentro do jogo que você está jogando.

“Só podemos fazer a arte do nosso tempo.”

Curitiba é a cidade que mais frequenta museus, segundo a pesquisa Cultura nas Capitais, com uma taxa de 38%.
Para qualquer cidade do mundo isso [a taxa] é muito. A frequência é extraordinária. Se a população de Curitiba fosse a população de São Paulo, com esse percentual, teríamos entre 6 e 8 milhões de visitantes em museus, o que seria uma barbaridade. Primeiro, que não ia caber; segundo que passaria para uma outra questão, que é: as maiores instituições do mundo não têm tudo isso [de visitas]. Acho o resultado de Curitiba excelente, um retorno de interesse por arte e cultura. Acabei de passear aqui embaixo [no Museu Oscar Niemeyer] e fiquei impressionado com a qualidade daquilo que está exposto e a profusão de coisas acontecendo ao mesmo tempo. É uma oferta muito generosa, vocês têm que levantar as mãos para o céu e agradecer. Para ter uma ideia, só 2% dos frequentadores do Louvre são franceses, o restante são turistas. É preciso lembrar disso, Curitiba não é um destino de turismo, então estamos falando da visita de cidadãos de fato.

“Interatividade não é apertar botão. Ela é a inclusão do espectador na equação da obra.”

Qual é o principal desafio dos museus para conquistar mais público?
O maior desafio da arte como um todo – incluindo artes visuais, teatro, literatura, cinema – é conseguir renovar a linguagem para conseguir atingir uma nova geração. O desafio é construir público – fidelizar público é um problema menor, se dá pelo próprio amor, é afetivo, não tem como ter uma gerência sobre isso. Mas é preciso trazer gente que não está dentro disso. Como se faz isso? Educando o olho, com certeza. Mas esse educar o olho passa por um processo de ser capaz de atualizar a linguagem para uma a que as pessoas sejam sensíveis. Todo mundo precisa ceder um pouquinho – a arte precisa ceder, a curadoria tem que ser generosa e o público tem que estar disposto a navegar, a experimentar algo novo. Aí a mágica ocorre.

“Eu uso sim a tecnologia porque acho que ela é uma linguagem contemporânea. É impossível falar com o público de hoje sem usar isso.”

Qual o papel dos museus hoje?
Os museus são as catedrais do nosso tempo. São os lugares onde a sociedade consegue convergir de forma mais plural, diagonal e dinâmica. Onde é possível ter uma criança de escola pública andando junto com um executivo de multinacional, ao lado de uma madame da alta sociedade e de um estudante universitário. A beleza desse processo é que o museu nivela as pessoas pelo interesse e pela vontade de aprender. E, na realidade, é a grande dívida brasileira, que é a dívida de educação. E essa educação, diferente da fórmula química e matemática, é uma que fica com você – quando você educa seus olhos para ver uma coisa, você vai levar aquilo para o seu processo de trabalho, para as relações humanas, para seu convívio cidadão. O museu é a catedral possível do nosso tempo. É o lugar onde a gente professa a ideia de que a vida pode ser melhor do que apenas trabalho, dureza, comer e consumir – que a vida pode ter uma outra dimensão. Todo mundo quer essa aspiração para um outro lugar.

Você acha que a experiência do museu é elitista?
Não, não acho. Se fosse não teria 360 mil pessoas nesse museu por ano, porque não tem toda essa gente na elite em Curitiba. Inclusive, a elite brasileira sofre de um mal: adora ser membro do MoMa [Museum of Modern Art], doar para a reconstrução da Notre Dame, mas não participa da cultura brasileira com o mesmo vínculo. Isso aqui é feito de gente normal. O museu é feito de gente como todo mundo.

“O maior desafio da arte como um todo é conseguir renovar a linguagem para conseguir atingir uma nova geração.”

O Museu Afro Brasil, em São Paulo, pode fechar por falta de investimento. O Museu Nacional, no Rio de Janeiro, estava em condições precárias antes do incêndio. Quais as perspectivas para a cultura nos próximos anos, diante dessa queda no incentivo e do próprio fim do Ministério da Cultura?
É bem sombrio. A gente que construiu coisas muito importantes como essas e outras vê isso perdendo protagonismo e importância e um governo que não entende o que é cultura. O governo é tão míope que não consegue distinguir que cultura não é apenas um musical ou um projeto de show, é muito mais profundo e intangível.

Houve intensos boicotes a museus e exposições no ano passado, como o caso da Queermuseu. Como isso impacta o cenário artístico atual?
Isso só fortificou o meio artístico. Essas manifestações de censura mostraram que a gente consegue se articular e provar que isso é uma estupidez total. Foram atos profundamente oportunistas, não eram atos de verdade. Na realidade, isso foi uma técnica eleitoreira tola de grupos muito fracos com o intuito de ganhar visibilidade. A cultura é um ponto de ressonância muito forte, tem muita resistência nisso. Então, eles descobriram que esse vespeiro valia a pena para colocar uma agenda conservadora e começaram a dizer que tudo era um absurdo, a levar as coisas totalmente para fora do contexto. Aquele post horroroso do Bolsonaro no Carnaval, como se aquilo fosse a síntese do Carnaval. Eu sinto muito, senhor Bolsonaro, por não ter ido conhecer o que é o Carnaval de verdade. Assim como sinto muito por todas as pessoas por não terem ido ver como eram essas exposições. O caso da Queermuseu tem uma coisa muito sutil: nada justifica você censurar aquilo, porque a razão de ser é uma pintura da Adriana Varejão que é sublime e retrata coisas do Brasil colonial, assim como a tradição japonesa do shunga mostrava o Japão imperial. Sim, são cenas de sodomia, por exemplo, mas como entender a história da sociedade sem isso? Como se nada tivesse acontecido? São histórias que precisam ser contadas até para não repeti-las. A tristeza é que é um debate burro. Queria saber quando foi a última vez que essas pessoas botaram o pé dentro de um museu para ter algum nível de propriedade do que está falando. Aí entra a importância da inclusão – precisamos começar a trazer o exército para ver as exposições dos museus, os funcionários públicos, os políticos. Precisamos educar essa turma urgentemente, em especial para que essa geração não estrague as próximas.

“A arte precisa ceder, a curadoria tem que ser generosa e o público tem que estar disposto a navegar, a experimentar algo novo. Aí a mágica ocorre.”

Sobre a exposição Raiz, de Ai Weiwei. Essa é a primeira e maior mostra do artista no Brasil, como foi fazer a curadoria do projeto?
Houve uma exposição sobre ele no Museu da Imagem e do Som, mas tinha só fotografias, então não contaria como uma mostra dele de fato – até porque a fotografia nunca foi um suporte expressivo dele. Fazer a curadoria [desta mostra] foi um desafio grande de criar um método para viabilizar um projeto impossível – uma mostra desse porte, com o custo envolvido, a produção de obras originais no Brasil, fazendo contato entre culturas, trazendo vários chineses para cá, isso foi muito ambicioso. Vejo um resultado muito inspirador. Foram muitos anos desejando fazer isso e poucos artistas têm um processo que cabe em uma iniciativa como essa. O Weiwei foi um deles, que abraçou a causa.

“[Os museus] são os lugares onde a sociedade consegue convergir de forma mais plural, diagonal e dinâmica.”

Como a estadia no Brasil impactou a obra de Weiwei? Você já comentou em outras entrevistas do processo de “mutuofagia” que envolveu esse período. Como foi isso?
A cultura brasileira é famosa pelo seu aspecto antropofágico: a gente pega qualquer influência externa e canibaliza, consome. O Weiwei é, também, antropofágico, ele pega algo e transforma em outra coisa. Só que nesse processo tanto o Brasil foi comendo o Weiwei, quanto o Weiwei foi comendo o Brasil. Isso resultou nessa nova palavra, a mutuofagia, ou seja, eu como você enquanto você me come. A perda e o ganho é proporcional. Isso se traduz na imagem lá embaixo, que é ele nu deitado no meio das melancias, abacaxis e cacaus, como um porco, com o filho do lado. Uma imagem super forte e icônica desse momento que a gente está. Ele chegou precisamente no momento em que o Brasil precisava receber uma porrada dessa, no intervalo entre as eleições. A discussão disso é a de que mundo é esse que estamos vivendo.

“O museu é a catedral possível do nosso tempo. É o lugar onde a gente professa a ideia de que a vida pode ser melhor do que apenas trabalho, dureza, comer e consumir – que a vida pode ter uma outra dimensão.”

Por mais que seu país de origem seja a China, onde há repressão por parte do governo, ele é conhecido por ser um ativista e questionar os valores da vida contemporânea em suas obras. Ele, inclusive, já teve blogs tirados do ar por conta das críticas que desagradaram o governo. Ainda assim, mantém esse caráter combativo, de oposição às estruturas políticas e culturais já consolidadas. Como a política permeia as obras de Weiwei?
Está lá o dia inteiro. Ele passa o dia inteiro no Twitter e Instagram consumindo informação. Ele está sempre ativamente observando as manifestações do nosso tempo. Nesse aspecto, acho que a obra dele é urgentemente contemporânea. Ela reflete aquilo que está doendo na gente agora.

O que os curitibanos podem esperar da mostra?
[pausa] Uma certa urgência.

Ai Weiwei. (Foto: divulgação.)

Você viajou 1 milhão e 70 mil milhas ano passado. Como é a sua rotina e como você concilia projetos em tantos lugares diferentes?
Fazemos em torno de 20 a 25 projetos por ano. Se for pensar que a maioria são em cidades diferente, eu preciso me deslocar praticamente duas vezes por semana para algum lugar do mundo, às vezes perto, às vezes longe. Isso faz com que eu durma no máximo duas noites por semana em casa, em São Paulo. Tem uma coisa básica: se você quer ser jogador de basquete, tem que ter no mínimo 1,80m de altura; se você quiser ser lutador de sumô, tem que pesar no mínimo 150 quilos. Agora, se você quer ser curador, precisa conseguir dormir em avião. Se você não dorme em avião, não vai conseguir. O avião está decolando e eu já estou dormindo. Você tem que estar de bem com a vida de se deslocar o tempo todo, de que nunca vai desfazer sua mala. Tem que entender que as relações vão ter que acontecer nesse contexto também. Tem que aceitar isso, a viagem é parte do processo. A vantagem é que não tem tédio nenhum.

Ai Weiwei and Ai Qing
Ai Weiwei e seu pai, Ai Qing, um dos melhores poetas chineses modernos, em 1994. (Foto: divulgação.)

JOGO RÁPIDO:

Exposição dos sonhos
A que ainda não fiz.
Um livro
The Language Instinct, de Steven Pinker.
Uma ou um artista
Chris Burden e Cildo Meireles no Brasil.
Melhor museu
Museum of Old and New Art (MONA). Um museu sobre as únicas coisas que importam no mundo: sexo e a morte.
Uma obra do Ai Weiwei
Sunflower Seeds. Pelo aspecto de transformação social que está embutido na obra [mobilizar uma comunidade para fabricar as sementes e tratar da questão da produção massificada], ela é mais importante em seu fazer do que em sua realização. Se todo artista pensasse nisso, a arte poderia ser ainda mais transformadora.

SERVIÇO:

EXPOSIÇÃO RAIZ
De 3 de maio a 28 de julho
Museu Oscar Niemeyer (R. Marechal Hermes, 999)
Terça-feira a domingo, das 10h às 18h
Preço: R$ 20 e R$ 10 (meia-entrada)  *venda de ingressos até 17h30

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