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Duas vezes Gabriel Villela: uma conversa com o mineiro que assina importantes peças do Festival de Curitiba

Premiado diretor, cenógrafo e figurinista mineiro assina a direção de Hoje é Dia de Rock e Boca de Ouro, duas das peças que compõem a Mostra 2018 do Festival de Curitiba

Duas peças da Mostra principal do Festival de Curitiba de 2018 levam a assinatura de Gabriel Villela. Um dos mais prolíficos e premiados nomes que vieram à tona no teatro brasileiro dos anos 1990, o diretor, cenógrafo e figurinista mineiro estampa sua conhecida linguagem “barroca” em Hoje é Dia de Rock e Boca de Ouro.

A primeira, um texto de José Vicente (1945–2007) sobre a dissolução de uma família que deixa a zona rural de Minas Gerais rumo à cidade grande, volta no dia 28 de março ao Guairinha, onde esteve em cartaz durante um mês no fim do ano passado. Villela montou o espetáculo para o Teatro de Comédia do Paraná (TCP), do Guaíra, trabalhando com um elenco que escolheu a dedo em audições abertas para artistas do estado.

Em Boca de Ouro, de Nelson Rodrigues (1912–980), a estética inspirada pelo circo e pela cultura popular que caracteriza o trabalho de Vicente se desloca para o subúrbio carioca e embala a tragédia de um famoso bicheiro com o universo da gafieira. O espetáculo terá duas apresentações, nos dias 31 de março e 1.º de abril.

Gabriel Villela
(Foto: João Caldas)

Gabriel Villela também participa, no dia 30 de março, de uma mesa redonda no Sesc da Esquina sobre Imaginai!, livro organizado por Dib Carneiro Neto e Rodrigo Audi que apresenta toda a sua trajetória no teatro. No dia 2 de abril, o mineiro faz, ainda, um bate-papo sobre suas ideias no Paço da Liberdade.

“O teatro congrega todas as artes. É possível juntar tudo isso, dentro dessa anomalia, desse período pré-estado de sítio em que estamos vivendo, e dialogar, conversar sobre as diferenças — pelo menos tirar a película raivosa, odiosa.”

Em entrevista concedida por telefone, direto de Alpinópolis — cidade do sul de Minas, conhecida pelo antigo nome “Ventania”, de onde vem sua família e onde nasceu Zé Vicente —, Villela disse que sua presença intensa no festival deste ano é circunstancial. Mas contou que sua relação com a mostra vem de longe — mais exatamente desde a primeira edição, em 1992, quando ajudou a abrir os trabalhos na Ópera de Arame. Na entrevista a seguir, o mineiro de Carmo do Rio Claro, nascido em 1958, também fala sobre a criação dos espetáculos, a importância de Vicente e Nelson Rodrigues e o trabalho com o TCP.

Como foi voltar ao Teatro Guaíra 20 anos depois da montagem de Aurora de Minha Vida, de Naum Alves de Souza?
Voltei com quase todos os pelos do peito branquinhos, barba branca — quase um Papai Noel do Shopping Mueller [risos]. Foi uma delícia trabalhar nessa estrutura. O Guaíra não é um teatro qualquer. Tem um know-how, um conhecimento e um padrão de qualidade que antecipa algumas tendências artísticas do Brasil. Vou citar só O Grande Circo Místico [1983], que alterou o curso da dança no país — e da música, porque aquela trilha de Chico Buarque e Edu Lobo é uma bomba atômica. Nesse sentido o Guaíra sabe escolher bem o que quer. Eles têm perfeita consciência do que estão fazendo.

Gabriel Villela
(Foto: João Caldas)

Como foi a criação da estética de Hoje é Dia de Rock?
Para revestir esses personagens — que são produtos de uma literatura fantástica —, eu quis trazer de Minas toda a estética, tudo aquilo que está envolvido com o ciclo do nascimento de Jesus: o reisado de Divinópolis, do sul de Minas, de Ventania. Somando tudo, envolvendo inclusive a construção da indumentária desse espetáculo, tentei fazer um presépio interiorano. O presépio interiorano de fé é, antes de tudo, uma gramática religiosa de muita sensibilidade e amor. Aqui em Minas a gente tira um pouco de sarro de tudo isso. A gente fala: deixa a beleza interior para as nossas capelinhas. Porque elas são lindas demais. Qualquer capela de Minas aparentemente inexpressiva tem dentro um Mestre Ataíde, um Aleijadinho. Tentei fazer um oratório vulgar — [aquele] da casa de todos nós, em que cada um põe os seus santinhos. A cara dos atores é toda inspirada na safadeza dos anjinhos barrocos do Mestre Ataíde.

“O Brasil está muito maculado, muito malhado.”

Hoje é Dia de Rock fez uma temporada recente no Teatro Ipanema, no Rio de Janeiro, onde foi originalmente montada em 1971 por Rubens Corrêa. Isso estava nos planos?
Isso foi uma feliz coincidência. Quando começamos a montagem, a ideia era que o espetáculo fizesse um mês de temporada na capital e depois entrasse pelo Paraná adentro até chegar em Foz do Iguaçu. O que não sabíamos é que era uma data comemorativa aos 50 anos de fundação do Teatro Ipanema. Então fizemos esse desvio de rota para estarmos juntos novamente do Ipanema, que é um templo dos mais sagrados para o Rio de Janeiro e para o Brasil. Não podemos esquecer de Rubens Corrêa e, atrás dele, tanta gente.

É neste contexto que a peça foi um marco da contracultura?
Originalmente, a montagem foi feita para o Teatro Ipanema, com o Zé [Vicente] residente lá. Obviamente, o Rio de Janeiro foi um lugar muito importante da contracultura, dos enfrentamentos aos militares por ocasião do AI-5, em 1968. Foi nesse ápice de convulsão social que o texto nasceu — quando os artistas começaram a cifrar, a usar recursos de linguagem, metáforas e simbologias para driblar a ditadura.

Qual a importância de fazer teatro num momento em que as artes também viraram alvo de polarização ideológica?
Não há nada melhor do que o fórum teatral. A congregação dele é muito grande, muito vasta. O teatro congrega todas as artes. É possível juntar tudo isso, dentro dessa anomalia, desse período pré-estado de sítio em que estamos vivendo, e dialogar, conversar sobre as diferenças — pelo menos tirar a película raivosa, odiosa. Tem muito ódio, muita raiva, muita dor. E [Hoje é Dia de Rock] tem a capacidade de criar muito amor. Com simplicidade, os atores convocam a plateia a viver essa experiência — a jornada de uma família que vai se decompondo na medida que vai perdendo seu eixo, a sua viga mestra inaugural, que é onde ela nasceu, seu habitat natural.

Como é trabalhar com a obra de Nelson Rodrigues (Boca de Ouro)?
Principalmente nesse momento que estamos vivendo, de barbárie nacional, a dramaturgia do Nelson é o evangelho. É a grande obra que pode explicar e ao mesmo tempo expiar todas essas dores, essas chagas abertas que a gente está vivendo socialmente. O Brasil está muito maculado, muito malhado. Está muito mal, moribundo demais. E a obra do Nelson oferece as fórmulas. A farmacologia todinha está lá. Mas eu não sou doutor: não posso abrir a receita.

O figurino é um dos elementos marcantes de Hoje é Dia de Rock. Qual a importância dele em Boca de Ouro?
Você vai ver o mesmo procedimento com relação à indumentária. Para mim é muito importante falar sobre ela, porque eu considero a roupa que o ator veste a primeira pele do personagem. [Em Boca de Ouro] os personagens vestem três roupas. A roupa de gafieira, da zona suburbana, que é o cenário escolhido (o próprio Boca de Ouro é parido numa pia de gafieira); num segundo instante, você tem uma roupa de luto, trazendo já o prenúncio da morte desse personagem; e, por baixo disso tudo, o brilho, o adamascado, a luz do carnaval das escolas de samba do Rio.

Como foi repassar toda a sua obra na composição do livro Imaginai! O Teatro de Gabriel Villela, de Dib Carneiro Neto e Rodrigo Audi?
Sabe quando você vai ao açougue, pega um pedaço de carne e a sua esposa manda passar três vezes? É isso, fui moído três vezes. Uma por mim mesmo, outra pelo Dib e outra pelo Audi, na medida que cada um cuidou de um detalhe. É uma dor, uma coisa lancinante. Mexer com o passado não é legal para ninguém. Agora, ao mexer numa coisa que de alguma maneira evoca a história contemporânea do teatro brasileiro, você está lidando com muitas vontades, com pessoas de várias naturezas, de vários cantos. Como é um livro que celebra 30 anos de profissão de um artista, não sou só eu ali. É todo mundo que participou dessa jornada. É muito difícil fazer um livro. Mas ele está aí e envolve centenas de pessoas — artistas, críticos de diversas naturezas. Textos que, somados, tenho a impressão de que contam sobre o gosto específico de um artista mineiro, ligado ao nosso barroquismo e que tem um certo apreço pela literatura universal.

Que lembranças você tem da primeira edição do Festival de Curitiba, da qual participou?
Havia um momento arquitetônico forte acontecendo em Curitiba, por causa do Jaime Lerner, que era a criação da Ópera de Arame. Quem inaugurou foi Cacá Rosset, do Teatro do Ornitorrinco, com Sonhos de uma Noite de Verão [Shakespeare]. Nós entramos com A Vida É Sonho [de Calderón de la Barca], com Regina Duarte e um elenco enorme. Só que aí deu uma chuva, rapaz. Não tinha tido tempo de fechar o teto [da Ópera]. Fecharam com lona. Aquilo foi [formando] bolhas gigantes de água que uma hora começaram a explodir e cair em cima do cenário e da Regina Duarte [risos]. Foi tudo para o ralo! Mas foi uma experiência incrível, uma das mais emocionantes da minha vida. Nunca vi tanta capacidade operacional — de você ir dormir desoladamente com o cenário no ralo e acordar com tudo pronto. E a gente estreou como se nada tivesse acontecido.

Serviço

Hoje é Dia de Rock
Guairinha_R. XV de Novembro, 971. Dia 28 de março, às 21h. R$ 40 e R$ 20 (meia-entrada).
Boca de Ouro
Guairão_R. Conselheiro Laurindo, s/nº. Dia 31 de março, às 21h, e dia 1.º de abril, às 19h. R$ 70 e R$ 35 (meia-entrada).

Festival de Curitiba 2018

De 27 de março a 8 de abril. Os valores dos ingressos variam entre gratuito e R$ 70. Programação completa e vendas pelo site, pelo aplicativo “Festival de Curitiba 2018” e nas bilheterias instaladas no Shopping Mueller e no ParkShoppingBarigüi.

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