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As inquietudes de Giovana Madalosso, que preferiu a literatura à gastronomia

Ela abdicou de um posto no famoso restaurante da família para escrever a própria história. Depois de um elogiado livro de contos, a escritora lança seu primeiro romance

Mais velha de quatro irmãos, Giovana Madalosso ouviu o chamado para assumir seu posto no famoso restaurante da família, em Santa Felicidade, mas preferiu começar “em branco” — ou pelo menos quase. Formada em Jornalismo, foi-se embora para São Paulo em 2000, aos 24 anos, para trabalhar com publicidade e roteiros para TV.

Eram favas contadas: 18 anos depois, lembra que foi o tipo de filha rebelde que chiou desde a primeira comunhão. Em sua vinda mais recente a Curitiba, descobriu outros indícios do caminho que seguiria longe dos salões do Madalosso: uma caixa com diários de quando tinha sete, nove anos, preenchidos com histórias cheias de dramaticidade, pretensão literária e “uns maneirismos” fora do normal.

“Todo mundo sempre fala para eu escrever a história da família. Não seria tão fácil, porque envolve muita coisa. Talvez eu faça isso um dia. Hoje, não estou pronta.”

“Eu e minha mãe nos matamos de rir lendo”, conta Giovana, no sofá da casa de seus pais, em Santa Felicidade. “Quero ser escritora desde que me alfabetizei”, diz, aos 42 anos.

Giovana esteve na cidade no último dia 13 de março para lançar seu primeiro romance, Tudo Pode Ser Roubado (editora Todavia), em um evento na Livrarias Curitiba. A história é narrada por uma garçonete que seduz clientes ricos do restaurante em que trabalha em São Paulo e furta artigos de luxo em suas casas. A rotina discreta é interrompida quando um estranho a convida para participar do roubo de um exemplar raro de O Guarani, de José de Alencar — uma edição de “mil oitocentos e sei lá quanto” que vale uma fortuna.

O romance tem lá seus traços de autoficção, como a autora conta na entrevista a seguir, mas apresenta uma faceta bem diferente do que ela já tinha publicado. O primeiro livro de Giovana é A Teta Racional (Grua, 2016), uma seleção de contos ligados a temas como a maternidade e as relações femininas que eram reflexo indireto do nascimento de sua filha, Eva — hoje com seis anos. A obra, que foi finalista do Prêmio Literário Biblioteca Nacional, vinha sob a urgência de elaborar questões pessoais. Já em Tudo Pode Ser Roubado, Giovana estava livre para contar histórias que achava legais, unindo personagens singulares e o estranho mundo dos colecionadores de edições raras que descobriu em um alfarrabista durante uma viagem à Europa. Leia os principais trechos da entrevista.

Sua protagonista é uma garçonete. Como ela surgiu?
São muitos anos de restaurante, né? Eu trabalhei no Famiglia Fadanelli [outro restaurante da família Madalosso] como hostess durante alguns anos. Inclusive fui demitida pelo meu pai, porque era péssima. Saía à noite — sempre fui muito notívaga, boêmia — e chegava atrasada, me irritava com clientes. Quando fui para Nova York estudar roteiro de longa metragem na New York University [em 1999], também trabalhei como garçonete. E também fui demitida [risos]. Em todos esses anos, aprendi muito trabalhando nesses dois empregos, mas também dentro da minha casa, ouvindo. Porque aqui só se fala disso. Então, foi muito natural chegar na garçonete.

Dá para dizer que o universo da cozinha acabou influenciando sua literatura?
Acho que assim. Todo mundo sempre fala para eu escrever a história da família. Para mim, não seria tão fácil, porque envolve muita coisa. Talvez eu faça isso um dia. Hoje, não estou pronta. Mas acho que, de alguma maneira, tinha que usar tudo isso. Porque minha vida foi aqui, dentro do Madalosso.

 

eu e meus irmãos (que suerte ter toda essa divina renca❤)

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Como resolve a relação entre as suas origens e o universo tão diferente que parece inspirar sua literatura?
Sou uma superfã do meu pai. Ele era de uma família de colonos que não tinham nada e que construíram tudo isso. Também admiro muito minha família toda no sentido de ter transformado o bairro. Empregaram muita gente, têm um trabalho social, um trabalho de urbanização junto à prefeitura. Acho que tudo isso aqui era um chamado tão grande para que eu fizesse parte dessa equipe que eu precisei me desvencilhar de uma maneira até radical em uma época, quase como uma negação: “eu não sou isso, eu vou para São Paulo, vou fazer outra coisa”. Teve um momento de afastamento, até para entender quem eu era.

Como é sua relação com Curitiba hoje?
Depois de 18 anos a relação vai ficando muito restrita. Conheço pouca gente hoje, tenho poucos amigos aqui, então diria que minha relação com Curitiba é mais pela família mesmo. E eu gosto da cidade. O que mais me chama a atenção quando venho é que aqui tem um silêncio que adoro. A cidade tem uma paz que me atrai muito até hoje. Não descarto voltar um dia. Gosto daqui.

E São Paulo, como inspirou Tudo Pode Ser Roubado?
É praticamente uma personagem desse romance. Tenho uma grande paixão por São Paulo. Acho que é uma cidade muito dura, com uma qualidade de vida baixíssima, feia, pouco amigável no sentido urbanístico quando comparamos com Curitiba. Só que tem uma coisa que acho inestimável: um capital humano poderoso. Porque você tem gente do Brasil inteiro, e gente que está disposta a aguentar essa bucha toda. Tentei retratar algumas dessas figuras que conheci nesse livro. E também um cenário de um certo desolamento. Fiz questão de usar a região central da cidade, que acho o maior retrato de São Paulo.

Uma das características que chamam a atenção no seu trabalho é a mordacidade. De onde ela vem?
Essa é a hora em que se mistura a pessoa com [a voz da autora]. Também não tem um planejamento. Não penso: “aqui vou fazer uma voz forte”. Provavelmente é a maneira como eu mesma me coloco no mundo. Tanto que isso está nos dois livros e está em todos os narradores.

Suas personagens quebram padrões de gênero. Elas foram criadas com essa intenção?
O trabalho inicial é intuitivo, porque é um trabalho muito apaixonado. Só escrevo sobre um personagem que me fascina. A ladra me apaixonou porque era uma mulher muito fora do comum. Não pensei em fazer uma personagem trans para discutir a questão trans. Essa outra personagem apareceu. Mas, uma vez que o trabalho está começando a se consolidar, paro, sim, para pensar no que estou falando com essas personagens e no que quero falar, porque tenho uma preocupação política muito grande com relação ao feminismo, à ideia de desmontar a sociedade patriarcal. Dentro do possível, não entortando minha literatura para isso, se puder discutir questões que acho interessantes serem discutidas, vou discutir.

“Tirar um pouco a mulher da esfera doméstica e das relações familiares foi uma alegria. E também quebrar essa ideia do anti-herói masculino. Por que só ele pode ter esse lugar?”

Por que uma anti-heroína?
Achei legal colocar dentro da literatura uma narradora inusitada. A gente tem a mulher ainda muito dentro de temáticas familiares, de maternidade. Nada contra: meu livro anterior, inclusive, fala muito disso. Mas tirar um pouco a mulher da esfera doméstica e das relações familiares foi uma alegria. E também quebrar essa ideia do anti-herói masculino. Por que só ele pode ter esse lugar? Está cheio de safada por aí, gente [risos]. Existe uma opção política no trabalho. Fiquei muito tempo escrevendo com narradores homens. Acho que meu trabalho deu um salto na hora que resolvi escrever sobre mulheres, porque tinha muita coisa para ser dita e porque consegui uma profundidade maior. Tenho meus personagens homens, que adorei fazer, mas tem muitas personagens mulheres que merecem um espaço dentro da literatura e que ainda não foram retratadas. Então, por um bom tempo, vou levá-las para dentro.

“Tenho meus personagens homens, que adorei fazer, mas tem muitas personagens mulheres que merecem um espaço dentro da literatura e que ainda não foram retratadas.”

Como seus dois livros se relacionam?
Acho que são dois livros que falam sobre solidão. Em A Teta Racional, é muito marcada a solidão na questão materna, ou entre amigas, o distanciamento e o isolamento urbano. É um livro que fala da solidão mesmo nas relações muito próximas. E Tudo Pode Ser Roubado, embora não seja um livro autoficcional, também fala muito de uma época da minha vida em São Paulo, anterior ao nascimento da minha filha — ainda solteira, sozinha, frequentando a noite e percebendo que a questão da solidão era muito presente. E eu levei isso para dentro do livro sem nem sentir.

Quando começou a se interessar por livros?
Minha mãe é uma grande leitora, então comecei a ler [por influência dela]. O primeiro livro mais adulto que ela me deu foi O Apanhador no Campo de Centeio [de J. D. Salinger], quando eu tinha uns 13 anos. Tinha as coisas da casa: aquelas coleções do Jorge Amado, ou mesmo Agatha Christie, que li pra caramba. Agora as pessoas falam que meu romance é meio policial. Estava pensando se não foi minha adolescência lendo Agatha Christie [risos]. Minha mãe também me mostrou coisas que até agora considero interessantíssimas, como Herman Hesse. Então, ela foi um primeiro farol literário para mim.

 

A Teta Cigana, agora em São José dos Campos

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Por que você escreve?
Para mim é um lugar para trabalhar angústias e questões que não consigo resolver. É para lá que levo as coisas que eu preciso elaborar. De um modo geral, parte de uma angústia ou de um fato que me intrigue muito. Eu diria que o Tudo Pode Ser Roubado vem de uma necessidade de trabalhar essa ideia de solidão, de dificuldade de relacionamento e vazio existencial nesses tecidos urbanos enormes. Diria que essa é a parte de angústia. A outra parte são os livros raros, um tema fascinante para mim.

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