René e Rogéria Dotti: juntos em caminhos diferentes
Via de regra, René e Rogéria Dotti não dão entrevistas juntos. O mesmo vale para a participação em eventos jurídicos e afins: quando um dos dois está em destaque, o outro assume um papel mais discreto. Há um cuidado de pai e filha para evitar que a trajetória dele pese demais sobre o trabalho dela.
É compreensível: o Professor René Dotti, 83, é uma espécie de papa no Direito brasileiro. Sua carreira começou ainda no fim dos anos 1950 e inclui uma passagem brilhante pela Universidade Federal do Paraná, onde lecionou de 1962 a 2004. O nome do jurista, referência em Direito Penal, é um daqueles que aparecem no meio dos complicados votos de ministros nos julgamentos do Supremo. Com passagens pelo teatro e pela imprensa, o advogado também entrou para a história defendendo perseguidos políticos durante a ditadura militar.
Rogéria Dotti, 47, se juntou ao escritório do pai já em 1991, ainda como estagiária. A advogada seguiu um caminho diferente de René, se especializando em Direito Processual Civil e estabelecendo seus próprios marcos: doutoranda em Direito pela UFPR, ela tem livros publicados e foi a primeira advogada mulher a presidir o Instituto dos Advogados do Paraná, entre 2009 e 2011. Ainda é preciso algum esforço, no entanto, para evitar comparações com o pai, que todo mundo que é do ramo conhece. Daí o cuidado em separar as coisas.
O dia a dia no escritório, no entanto, é outra história. Os dois advogados trocam ideias o tempo todo — com direito até a retoques de Rogéria nos textos e discursos com potencial incendiário de René, conforme eles revelam na entrevista a seguir, concedida no dia 21 de março. Em uma ocasião incomum, pai e filha se reuniram na elegante biblioteca do Escritório Professor René Dotti — que ocupa três andares de um prédio na Rua Marechal Deodoro — para contar sobre suas rotinas, relação no trabalho, causas importantes e o futuro. Leia os principais trechos:
Com é a relação de vocês no trabalho?
Rogéria: Essa dinâmica é constante. Nós temos muito diálogo sobre o escritório nas reuniões formais. Mas, além disso, há essa troca entre nós dois, pai e filha. Nos momentos aqui, nos intervalos de atendimentos, isso acontece espontaneamente. E também muito fora do horário de expediente, em casa. Às vezes ele me liga no final de semana: “Vem aqui, preciso conversar com você”.
As conversas sobre o escritório acabam invadindo os almoços de família?
Rogéria: Eu sou casada com um engenheiro. Minha irmã [a médica veterinária Claudia, 45] é casada com um médico. Então, nossos almoços de família, hoje, têm muitos assuntos. Não é só o escritório. Às vezes, há uma tendência de monopolizar. Os outros reclamam e a gente para. A gente gosta muito do que faz, se realiza na advocacia ao ajudar o outro, ao reverter uma situação difícil. Então, naturalmente, acaba comentando. Faz parte da gente.
Como é misturar relação entre pai e filha com trabalho?
Rogéria: Digo sempre para a Clau que a vida dela é muito melhor, porque ela é mais filha do que eu [risos]. Na medida em que a relação dela com meu pai é uma relação exclusivamente de afeto, e a minha relação com ele tem muita cobrança também. Tem muito embate, muita discussão. A gente talvez não brigue muito na frente dos outros. Mas brigamos muito quando estamos sozinhos. [risos]
Como um influencia o outro com suas diferenças?
René: Ela exerce um controle de moderação em relação a certa exaltação em alguns discursos e artigos. Peço para ela ler antes. Ela diz: “Pai, isso aqui você pode mudar, não precisa ser tão agressivo”. É uma relação fundamental para vários textos que eu escrevo. Eu peço a opinião dela — não necessariamente jurídica, da minha área, mas quanto a relações humanas. [Ela diz:] “Olha, você poderia dizer isso diferente”. É um controle de pacificação de palavras e frases. [risos]
Rogéria: Eu aprendi muito com ele a questão da coragem, do enfrentamento da causa que é injusta — enfrentar inclusive autoridades. Ele me ensinou muito a enfrentar situações difíceis. Eu sempre fui mais tímida, então essa é uma influência importante do meu pai na minha carreira. Por outro lado, acho que eu o influencio no sentido de, às vezes, diminuir o impacto desse enfrentamento — quando a gente consegue fazer de uma forma mais moderada, mais ponderada, diplomática.
Como essa diferença de estilos entre vocês vem à tona quando estão em audiências?
René: Procuramos participar da audiência sem alterações, tanto quanto possível.
Rogéria: Isso, com a calma que a causa exige, a técnica e a ponderação necessária. Mas, às vezes, é natural que, em um ambiente de audiência, os ânimos se exaltem. Temos conversado com os colegas do escritório de que tem que haver uma resistência respeitosa.
René: Essa moderação, de minha parte, foi quebrada há um tempo atrás na minha intervenção durante o interrogatório do Lula. Foi uma exceção. O interrogatório levou cinco horas. [Havia] duas horas que eu estava ouvindo o advogado. Ele não deixava o juiz perguntar. Eu percebi o objetivo dele: era se submeter até a uma ordem de prisão por desacato, que traria grande publicidade para o advogado. E, o que é importante, não terminaria o interrogatório. [Eu pensei:] “Não, chega.” Resolvi interferir de uma maneira que não é habitual. Tanto que saíram alguns comentários [dizendo] que eu fiquei enlouquecido. [risos]
“Essa moderação [em audiências], de minha parte, foi quebrada há um tempo atrás na minha intervenção durante o interrogatório do Lula.” René Dotti
Esta bronca do professor René durante o interrogatório do ex-presidente Lula teve grande repercussão na internet. Como foi para vocês?
Rogéria: Nós não contribuímos em nada para que houvesse essa viralização. Ninguém do escritório compartilhou. Mas ganhou visibilidade. Acho que as pessoas, naturalmente, têm interesse quando veem duas pessoas discutindo. Mas acho que esses embates em audiências são naturais na advocacia.
René: Mas eu tirei muita “selfie”. Por onde ando, ainda hoje, tiro selfie, fotografia. [risos] Para mim, a Petrobras é a causa de maior importância da minha carreira. É a causa que me dá maior alegria. Quando eu entrei na faculdade, em 1954, estava no auge a campanha de defesa da nacionalização do petróleo. O jargão era “o petróleo é nosso”. Passados os anos desde aquela fermentação cívica dos anos 1950, tive a oportunidade de atender a Petrobras. Digo que devolveu meus verdes anos.
Como é defender uma causa de tamanha visibilidade como a da Petrobras na Lava Jato?
René: É a consagração [risos]. É total apoio ao advogado. Por isso, é a causa mais importante da minha vida.
Rogéria: A causa da Petrobras, acima de tudo, tem esse lado de combate à corrupção. Essas causas de combate à corrupção são um estímulo para o nosso trabalho na advocacia. A advocacia lida com o Estado Democrático de Direito. Na medida em que a corrupção inverte os valores, impede a Justiça de agir, nós, como advogados, temos um estímulo muito grande nessas causas.
“É a consagração [defender a Petrobras na Lava Jato]. É total apoio ao advogado. Por isso, é a causa mais importante da minha vida.” René Dotti
O que puderam perceber sobre o sistema de corrupção ao acompanhar o processo de perto? Como combater isso?
Rogéria: Era um sistema tão forte que era impossível mesmo para um bom administrador perceber o que estava acontecendo. Porque eram em escalas tão altas de poder que um administrador normal da empresa não teria como combater aquilo e sequer como perceber certas situações. Ao mesmo tempo que é triste a gente ver a corrupção tão bem estruturada, por outro lado é um desafio, e os desafios sempre nos estimulam no escritório. Acho que essa causa é uma mudança, como já foi o Mensalão. A Lava Jato é uma mudança em termos de combate à corrupção no país.
“A Lava Jato é uma mudança em termos de combate à corrupção no país.” Rogéria Dotti
Professor René, a causa da Petrobras na Lava Jato atrai muito apoio popular. Por outro lado, o senhor já falou sobre também não se subtrair à defesa das causas impopulares. Qual é sua postura sobre isso?
René: Eu acho que, dependendo da convicção do caso, você não pode deixar de atender. Eu fui advogado do [ex-deputado Luiz Fernando Ribas] Carli Filho. Eu já era advogado da família em matéria eleitoral. Disse que ia atender o caso dele, mas não o júri.
Por que pegou a causa?
René: [Em uma folha de papel, Dotti desenha um esquema da colisão que matou Gilmar Rafael de Souza Yared e de Carlos Murilo de Souza, em 2009, e argumenta que o ex-deputado estava em uma via preferencial quando bateu no carro das vítimas, que teriam entrado na via “de mau jeito”.] Ele não quis matar nem assumir o risco. Isso é um crime culposo. E não poderia ser acusado [com] uma pena de 12 a 30 anos de prisão. Então, assumi o caso, apesar da onda contrária. Eu iria me arrepender se não tomasse essa iniciativa e ele fosse condenado a 20 anos de prisão, sendo eu o advogado de confiança da família. Como eu poderia dizer não?
“Eu iria me arrepender se não tomasse essa iniciativa [de atuar no caso de Carli Filho] e ele fosse condenado a 20 anos de prisão, sendo eu o advogado de confiança da família. Como eu poderia dizer não?” René Dotti
Imaginavam que a causa traria desgaste?
Rogéria: Desde o começo. Mas a pessoa que te procura está com um drama. E tem um lado dela que tem que ser mostrado: a questão da via preferencial e a questão de não ter o dolo [intenção]. Alguém tem que ser uma voz na defesa da pessoa. Mesmo que, às vezes, haja preconceito. O advogado é muitas vezes confundido com a figura do cliente, com o ilícito, o crime praticado. E isso é um erro.
Você considera que este caso chegou a ofuscar sua trajetória, Professor?
René: Eu fiquei preocupado com a repercussão intensa contra a minha defesa, contra a minha pessoa. Durante algum tempo fiquei preocupado com aquilo. Mas aconteceu algo interessantíssimo, sem que eu pedisse. O Positivo me convidou para fazer um curso lá. Tiraram minha fotografia, com beca e tudo, fizeram enormes cartazes de propaganda do curso e encheram a cidade com elas. Depois, tive inúmeros convites para palestras e tudo mais. Porque reconheceram que o advogado não pode, digamos assim, deixar que haja [uma acusação injusta]. Aquilo não era para absolvê-lo. [Era para que se aplicasse] uma pena que ele teria para crime culposo. Foi um crime de trânsito.
“O advogado é muitas vezes confundido com a figura do cliente, com o ilícito, o crime praticado. E isso é um erro.” Rogéria Dotti
Em 2018, o escritório completa 57 anos em atividade. A que vocês atribuem que atribuem esta longevidade?
Rogéria: Acho que advém da forma como nós trabalhamos no sentido de valorizar tanto a ética quanto a solidariedade ao cliente. O cliente se sente acolhido quando vem ao escritório. Nós sabemos que, além da questão técnica — da competência que temos de ter em relação ao conhecimento jurídico —, todo o processo normalmente encerra um drama humano também. Esse lado humano é muito visto por nós. E isso não é tão comum.
René: Um dos períodos mais importantes do escritório, do ponto de vista de seu trabalho humano e de sua repercussão, ocorreram durante o tempo do regime militar. De 1964 a 1985 eu atendi perseguidos políticos, defendi presos. Eram estudantes, sindicalistas, jornalistas, professores, advogados que, acusados por um regime autoritário, nada mais faziam senão difundir ideias. Considero esse um período que trouxe para o escritório uma projeção e um reconhecimento. Porque, é preciso destacar, eu não cobrava honorários. Achava que era uma forma de contribuir pacificamente com um tipo de resistência na defesa dos acusados e perseguidos.
Que papel a universidade teve na sua história até aqui?
René: Foi uma carreira com quatro concursos, de 44 anos. Uma carreira a que me dediquei profundamente, sem fazer diversionismos. Cuidava só de Direito Penal. Nunca me dei a intimidade do ponto de vista de influenciar, fazer apologia política com os alunos. Nunca fiz isso, porque é um universo plural.
“(…) eu não cobrava honorários [de perseguidos políticos na ditadura militar]. Achava que era uma forma de contribuir pacificamente com um tipo de resistência na defesa dos acusados e perseguidos.” René Dotti
Quais casos consideram os mais significativos de suas carreiras?
René: Durante o tempo da ditadura militar, foi a defesa de acusados que eram senadores, ex-deputados federais, deputados estaduais. No processo contra eles, havia uma publicidade muito grande, naturalmente. Então, alguns casos se tornaram muito conhecidos na época. Nos tempos atuais, posso dizer que é a defesa da Petrobras. Desde a instauração de inquérito pela Polícia Federal, procuramos demonstrar que a Petrobras era vítima de maus administradores. Ao ser reconhecida como vítima por parte do dr. [Sérgio] Moro nos processos, estabelece-se que todo produto de crime contra a Petrobras se reverta para ela.
Rogéria: Nós tivemos a oportunidade de trabalhar numa causa na época em que ainda não havia o reconhecimento das uniões homoafetivas. A companheira de uma cliente havia falecido. A família da companheira não reconhecia a união e a tinha afastado da chácara onde elas moravam. Na época, ainda não havia lei ou decisão judicial amparando o direito daquela senhora. Mas eu achei que tinha uma questão justa ali. Ingressamos com uma ação para obter esse reconhecimento do efeito jurídico dessa união. Foi uma causa bastante bonita, porque não havia base legal, mas havia uma base não só moral como do ponto de vista da justiça na situação. E uma coisa que eu sempre aprendi com o meu pai é que, mesmo que não haja lei, se a causa é justa, o trabalho do advogado é construir um caminho através da decisão dos tribunais. [Após perder em primeira e segunda instância, a causa foi beneficiada pelo reconhecimento da união homoafetiva pelo Supremo Tribunal Federal, em 2011].
Rogéria, como você encontrou sua própria voz mesmo seguindo a profissão de seu pai e trabalhando no escritório dele, tão conhecido?
Rogéria: Porque somos bastante diferentes, isso naturalmente faz com que eu tenha o meu caminho diferente do dele. Embora, claro, com as lições e os valores. Isso tudo auxilia muito e me ajudou muito. Mas já na faculdade eu fiz uma opção pelo processo civil. Meu pai é professor de direito penal e processo penal. Então, já fui para uma área muito diferente. E aí, naturalmente, cada um traça o seu caminho. A forma de advogar é diferente.
René: Quando, por exemplo, algum juiz ou desembargador me cumprimenta pela capacidade e pela educação da Rogéria e diz que o fruto sempre cai perto da árvore, eu digo não. Ela estudava mais do que eu na idade dela. E estudava com mais concentração. Ela teve voo solo, independente quanto a isso — o que, para mim, é muita alegria. O caminho jurídico dela foi bem diferente do meu. E quando elogiam querendo associá-la a mim, eu digo não. Ela é muito superior a mim com as nossas idades. Quando eu tinha a idade dela, não tinha a dedicação e o cuidado que ela tem.
O fato de o Professor René ser uma referência no Direito também foi uma fonte de pressão?
Rogéria: Muita. Tem muita cobrança, muita comparação — o que acho que é sempre muito injusto. São pessoas diferentes, com caminhos diferentes. Sempre teve esse lado da pressão. Mas eu sempre procurei traçar o meu caminho com as boas lições do meu pai. Até porque eu nunca quis me valer do prestígio dele, de uma influência. Sempre achei isso muito ruim.
Você foi a primeira mulher a ocupar a presidência do Instituto dos Advogados do Paraná. Esse ainda é um meio predominantemente masculino?
Rogéria: Bastante. Eu sempre procurei não estimular esta questão do sexismo, de disputa entre os sexos. Existe preconceito, discriminação, mas acho que as mulheres, pelo seu próprio trabalho, podem conquistar seus espaços. Claro, [deve-se] denunciar quando existe uma situação grave de discriminação e preconceito. Mas não é só denunciar. É mostrar o trabalho.
Professor, como espera que a Dra. Rogéria continue a história do escritório?
René: Tenho convicção absoluta de que o escritório vai continuar, porque ele está com fundações muito fortes. É como aqueles edifícios que duram muitos anos porque tem as fundações que suportam o tempo, que suportam a chuva, o vento — assim como a advocacia tem que suportar as forças negativas da inveja, maldade, etc. Ao longo desse ano, Rogéria demonstrou uma liderança muito grande em relação aos colegas — uma liderança com sensibilidade, inteligência e carinho. Isso foi a argamassa dessas fundações. Por isso acredito que as coisas vão continuar. Mas já disse para eles — e vou repetir agora para ela, perante duas testemunhas: não quero que criem fundações com meu nome. E outra coisa fundamental: não quero meu nome em penitenciária. Acho uma coisa horrível! Não quero esse tipo de homenagem. Nada de nostalgia.