O gabinete de costura
Existe muita discussão se moda é arte quando nos atemos somente ao resultado final — a obra, a roupa. As justificativas que dizem “sim” elevam o criador, a origem das marcas e o conceito que está por trás da roupa, o que ela nos comunica pessoalmente, tocando nossa sensibilidade ou dizendo se essa comunicação é sobre o retrato do espírito do tempo que vivemos.
Meu convite para você é passar esse debate sem fim entre moda e arte e irmos direto ao que ambas têm em comum: o labor da mão. O caminho que percorre o corpo passa pela intuição, pelo instinto, pelo insight, pela ideia — e chega nas mãos humanas para materializar sua composição. No caminho, encontramos estágios e processos semelhantes. É o “caminho do artista”, em um trocadilho aqui rápido com o livro de Julia Cameron.
O artista, dentro da História e nos dias atuais, passa por esses estágios dentro do seu lugar sagrado. A partir da invenção da agulha, começou-se a formar o gabinete de costura de uma senhora. Com a roca e o fuso e o tear de mãos, surgiram pequenas coisas úteis para a costura. Um decreto no século XVI, Barroco, permite que a mulher deixe de ser apenas uma remendona e passe então ao ofício principal de costureira, papel antes masculino.
É só no Rococó, no século XVIII, de Maria Antonieta, com a nossa primeira costureira oficial, Rose Bertin, que teremos tudo, até metros de fazenda em forma de tecidos, para oferecer aos clientes nos arredores de Paris. No século XIX, outros pequenos itens passaram a fazer parte do gabinete de costura das mulheres: tesouras para bordados, alfinetes de segurança e carretel de fios. Objetos pequenos, prontos para o uso das mãos, carregados em caixas de madeiras decoradas, estofadas, customizadas, portáteis.
Acontece um laborioso trabalho — daí o “exímio trabalho com as mãos” da alta-costura. O que se sucede no século seguinte é a repetição da roupa pronta para vestir, reiteração de uma peça vinculada ao consumo que não existe, desta forma, no mundo da arte.
Se faz arte, onde a ideia encontra as mãos, naquele início quando envolvido totalmente pelo processo de expressar, o gabinete do artista é o gabinete da costura, o tecido é a tela, todo fio é tinta e a agulha é o pincel.
*Matéria originalmente publicada na edição #259 da revista TOPVIEW.