Entre o esporte e as periferias, a moda se rende às camisas de futebol
O esporte sempre esteve presente na moda: inspirações no tênis, golfe, hipismo e outros esportes da alta sociedade permeiam a moda há muito tempo. Mas o futebol, o mais popular nos esportes, nunca esteve tão em alta como agora – vale lembrar que em dezembro tem Copa do Mundo. Por muito tempo, a alta moda torceu o nariz para a cultura popular, mas as estéticas periféricas e populares têm se tornado impossíveis de ignorar.
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É o caso das camisetas de jersey de times de futebol, que eram tratadas com desdém enquanto eram usadas somente pelos torcedores e silenciosamente ganhavam cada vez mais espaço nas periferias até, mais recentemente, chegarem na alta moda.
O esporte e o luxo
Ainda em 2020, a Balenciaga lançou um modelo de chuteiras por U$725 dólares, bem como uma camiseta inspirada nas camisas de futebol, por US$780 dólares, na coleção de Outono Inverno 20, inspirada no modelo usado pelo goleiro do Manchester United em 2002. Ambas peças foram recebidas com muitas críticas, à época, tanto pelo alto valor, quanto por se inspirar nos designs dos uniformes de futebol. Demna é conhecido por seu sendo irônico e satírico na moda, muita vezes usando exageros para nos fazer refletir de forma bastante metalinguística sobre os nossos arredores. Outro designer do leste europeu que colocou a estética das camisas de futebol na passarela foi o russo Gosha Rubischinskiy em sua coleção de verão 18.
Agora, dois anos depois, vemos a consolidação das camisas de time como itens de moda. Na temporada de Outono Inverno 2022, a Gucci apresentou luvas de goleiro, em sua colaboração com a Adidas. Já David Koma, com sua coleção muito inspirada no sportswear, desfilou uma jersey de futebol combinada também com as luvas de goleiro.
Mas a recíproca também é verdadeira, o futebol tem cada vez mais se aproximado da moda, com maior diversidade de modelos de camisetas com design mais apurado e imagens de moda mais significativas. Hoje é comum um time ter a camisa principal, a de jogo, mais tradicional, a camisa 2, de visitante – quando se joga no estádio do adversário – e uma terceira camisa, normalmente é mais diferente, que foge da estética tradicional e se tornou um item de design/comercial, afirma Mariana Spinelli, jornalista esportiva e apresentadora do Sportscenter, na ESPN.
“Além de ter uma preocupação de atingir um público cada vez maior, existe uma expectativa dos torcedores pro lançamento das camisas e, caso seja bem feito, o número de vendas é absurdo. é uma receita enorme pro clube. Se ele consegue ultrapassar o consumidor óbvio – que é o torcedor ou torcedora – melhor ainda. O futebol cada vez mais entende a necessidade de receita, de espalhar a imagem, de ser uma marca global.” continua Mariana Spinelli “O Paris Saint-Germain é um exemplo disso. Muita gente tem a camisa do clube simplesmente pela beleza dos materiais, é um clube que atingiu o mundo inteiro sem necessariamente ter torcedores fieis”.
O Paris Saint-German, ou PSG, tem uma das estampas mais conhecidas das camisetas de futebol, que se tornou bastante icônica. O clube abriu recentemente, em NY, sua 16ª flagship própria, sinalizando a intenção de tornar o clube e a marca um verdadeiro negócio de moda.
A adidas recentemente anunciou mais uma linha da Y-3, colaboração com Yohji Yamamoto, em parceria com o Real Madrid para criar os uniformes do time e outras peças esportivas. A linha da adidas em colaboração com Stella McCartney também ganhou um novo lançamento: o uniforme do time feminino Arsenal. Por sua vez, o Spotify também firmou uma parceria com o Barcelona, e irá divulgar alguns dos principais álbuns da plataforma nas camisetas dos times, começando pelo Motomami, de Rosalía.
A Nike também redesenhou o uniforme do Corinthians na última temporada, com a campanha Vai na Alma, e uma imagem de moda bastante fashionista, incluindo influenciadores de moda e streetwear.
“De fato, no passado, existia certa ‘resistência’ em relação as camisas que trazem detalhes e estética inovadores. Porém, atualmente, as camisas de futebol viraram peças-chave, podendo ser usadas no dia a dia, videoclipes, figurinos e em campanhas de moda. É um item, que sem dúvidas, está sendo mais valorizado e se tornando referência de moda, por isso a Nike tem apostado na ‘Jersey Culture’ ” afirma Gustavo Viana, Diretor de Marketing da FISIA, distribuidora oficial da Nike no Brasil “Há algum tempo já servimos como ponte entre o esporte e a moda. Podemos dizer que antigamente, o perfil do consumidor era apenas daquele torcedor fiel, porém, com o passar dos anos, isso foi mudando. É uma tendência que promete dominar cada vez mais o streetwear.”
“Atualmente, as camisas de futebol viraram peças-chave, podendo ser usadas no dia a dia, videoclipes, figurinos e em campanhas de moda. ” Gustavo Viana
Se para os torcedores as camisetas de time inicialmente são um emblema de sua paixão e, bem literalmente, de seu clubismo, antes de um item de design, talvez o elo perdido que tenha tornado as peças itens de moda seja a periferia.
A camisa de time e a periferia
Bem como o “Nike nos pés”, a camisa da Lacoste e as lupas da Oakley, as camisas de time também são reverenciadas nas periferias como itens de luxo e de muito estilo. Antes de serem aceitas pela moda, rappers e trappers da periferia já cantavam sobre seu estilo que, necessariamente, incluía uma camisa de time. Enquanto essas manifestações estéticas são muito fortes por aqui, no País do Futebol, nas periferias europeias, principalmente parisienses, as camisas de time também são figura carimbada dos mais hype das quebradas.
Neguinho de Favela, como é conhecido por seu trabalho com estéticas periféricas, afirma: “Acredito que as camisas de time são um grande marco principalmente quando se pensa em país do futebol, o futebol na periferia é muito forte e por isso acaba que os elementos que estão em seu entorno ganham ênfase no cotidiano periférico”
“Lembro que no meu bairro sempre foi comum avistar pessoas usando a camiseta de time no dia a dia, ela diz muito sobre particularidades e códigos, é um manto, desempenhando um papel importante no discurso de quem vive e criou aquilo, mesmo sofrendo julgamentos por quem considera “desleixando” o uso.” corrobora Juliana Santos, stylist que frequentemente emprega as camisas de time em seus trabalhos para diversas marcas e revistas “Com essa provocação de empregar e valorizar peças do cotidiano na moda (ambiente extremamente restrito a camadas superiores) , esse item foi transformado em artigo de luxo pela alta cúpula da sociedade e usado também por não-torcedores.”
Nas quebradas, as camisas de time se tornaram quase artigos de luxo, verdadeiros itens de colecionador que refletem tanto a torcida, quanto o estilo de quem os usa. Quanto mais rara ou difícil de encontrar a camisa de time, mais estilosa ela se torna e define se vai ser usada no dia a dia ou “para sair”. Para Neguinho de Favela, as camisetas de time ocupam ao mesmo tempo o lugar de uma peça cotidiana e de uma peça quase de luxo ou de colecionador, dependendo de sua importância e representação nas comunidades.
“Apesar de camiseta de time ser algo cultural no Brasil, foi a periferia que transformou elas em “itens de moda”, nós que demos vida pra cultura de “moda” em volta delas.” Samir Bertoli.
Com a efervescência do rap e dos ritmos derivados do hip-hop, que se tornaram os mais ouvidos desde os anos 2000 e grandes catalisadores da cultura pop, as periferias ao redor do globo também passaram a exercer grande influência sobre a moda e, inclusive, as passarelas da alta moda. Se tornou impossível ignorar o estilo dos rappers, trappers e influencers periféricos, quando grande parte dos jovens para quem as marcas querem vender querem se portar como eles.
“Com a ascensão do sportswear/streetwear e da cena musical Grime, surgida no início dos anos 2000 nas periferias de Londres e popularizada pelas rádios piratas, esse item [a camisa de time] se tornou hype, sendo usado por influências como o Skepta (importante rapper). No Brasil , rappers como Fleezus e Febem, com o álbum BRIME! em que a capa é uma foto do ex-zagueiro do Corinthians, Chicão, dando carrinho em Hazard, do Chelsea, no Mundial de 2012, é uma das variáveis imagens nacionais sobre esse movimento.” conta Juliana Santos.
“Camisa de time é inclusive o nosso maior argumento de que nós lançamos tendência. Mas é aquilo, né ? Vira tendência e fica conceituado com determinados corpos e pra determinados espaços” Fernanda Souza
No entanto, esses itens ainda são alvo de muito preconceito, principalmente quando vestidas por corpos pretos ou periféricos. “Camisa de time é inclusive o nosso maior argumento de que nós lançamos tendência. Mas é aquilo, né ? Vira tendência e fica conceituado com determinados corpos e pra determinados espaços” conta Fernanda Souza “Um dia desses fui desproduzir no (Shopping) Cidade Jardim, de camisa de time, e ouvi piada da vendedora bem baixinho. Pra mim eu estava arrumadíssima com minha blusa da seleção. Quer dizer, às vezes pra gente de quebrada em determinados lugar camisa de time não é pra sair”.
Quando falamos de estéticas que derivam, em grande parte da periferia, ou de lugares menos eruditos da cultura e da moda, é sempre importante tomar o cuidado com como essas peças são representadas ou não. Não é um problema que a alta moda absorva tendências de outros lugares, mas a situação é mais complicada quando isso esvazia ou apaga a origem dessas tendências de forma a higienizar uma peça ou tendência.
“Eu vejo isso de duas formas, positiva e negativa. Positiva porque de certa formas pessoas periféricas que trabalham com moda tem espaço e conseguem afirmar através dessas tendências que a moda periférica posso e influência na moda em geral, porém a negativa é quem geralmente essas tendências somente são somente absorvidas
e apropriadas sem espaço para dizer de onde vem.” conclui Neguinho de Favela.