Berlim mutante: você tem que conhecer esse destino inigualável!
A ideia de que cidades são organismos vivos talvez valha como verdade absoluta no caso de Berlim. Desde a queda do Muro, ela é uma experiência diferente a cada ano. Muitas tendências nascem e morrem aqui. Berlim sempre atraiu estilos de vida alternativos: artistas, designers, imigrantes, escritores, curiosos. Gente de diversas origens e propósitos vão e vêm ao longo dos anos criando um quebra-cabeça cujas peças são seus bairros em constante mudança. O pulsar desse organismo multiétnico é tão rápido e intenso que chega a confundir: ou você desiste de compreendê-la por inteiro e faz alguns passeios básicos, ou se joga na cidade sem preconceitos nem expectativas. Caso tenho optado pelo segundo, que tal então fazer essa imersão serpenteando de bike por alguns dos 900 km de ciclovia vivendo uma metamorfose mental e visual a cada mudança de bairro? O bairro, aliás, é uma parte da identidade dos berlinenses. E kiez é uma gíria local para algo entre bairro e quarteirão. Você vai ouvi-la muito por aí. Abra os olhos e ouvidos em Berlim.
Duas rodas
É muito fácil conseguir uma bike para fazer um tour. Você pode escolher desde passeios guiados que duram um dia todo (desde €10 até €21 se for com guia na Berlin on Bike, berlinonbike.de) ou apenas alugar uma em um dos pontos espalhados pela cidade. Nosso ponto de partida, a sede Berlin on Bike, fica na Kulturbrauerei, uma antiga fábrica de cerveja transformada em centro cultural e comercial. Um gostinho de como Berlim transforma tudo o que já foi algo em alguma outra coisa. A vantagem de ter um guia local é que ele te conta e aponta coisas como um apartamento qualquer da Berlim Oriental que, abandonado após a queda do muro, se tornou residência de algum grupo de artistas, criativos ou buscadores de si mesmos. Passamos pela East Side Gallery, o mais longo trecho do Muro de Berlim que ainda está de pé, com seus grafites políticos. Pela margens do Rio Spree descobrimos parques, praias improvisadas, piqueniques nos gramados, arte de rua, mercados… (tem foto dos homens molécula nessa parte) Adentramos uma área de antigos galpões ferroviários (Warschauer Straße, em Friedrichshain) convertido em uma profusão de mercadinhos, brechós, bares, exposições, espaço para projetos culturais e até uma galpão que virou piscina pública. É o RAWGelände, forrado de grafites e adorado pelos descolados.
Nada morre, tudo se transforma
Dar utilidade a algo que deixou de existir é parte do DNA criativo de Berlim. Assim a cidade vai girando sendo num dia o que nunca foi antes. Dá para ficar um pouco maluco com essa ideia quando se pedala – sim, enquanto se pedala – pelas largas pistas de pouso do colossal aeroporto Tempelhof, esse que foi a chave da salvação de Berlim Ocidental quando os soviéticos fecharam todos os acessos terrestres à cidade. Tempelhoff nasceu quando a aviação comercial mal havia começado em 1923, após a Primeira Guerra Mundial. O terreno onde foi construído pertenceu, na Idade Média, à Ordem dos Cavaleiros Templários, daí o nome. A companhia aérea Lufthansa foi fundada ali. Foi reformado no regime nazista em um dos arroubos de megalomania de Adolf Hitler. Seu complexo de prédios formando as asas da reverenciada águia preparava o Tempelhoff para ser a porta entrada da “Capital do Mundo”, a Berlim do futuro Reich, acolhendo os aviões em área coberta. Ao fim da Segunda Guerra, com Berlim dividida sob o controle dos EUA, Inglaterra, França e URRS, o Tempelhoff ficou sob controle dos norte-americanos. Quando a URSS bloqueou os acessos terrestres à cidade em 1948, foi só por causa do Tempelhoff é que a Berlim capitalista ilhada na Alemanha soviética não sucumbiu à fome: duas toneladas de mantimentos atravessaram essa tensa ponte aérea diariamente por 15 meses, representando uma das maiores proezas da história da aviação. Voos civis foram mantidos nos anos seguintes, sendo gradualmente desviados a outros aeroportos.
O lugar que salvou Berlim do isolamento ainda chegou a ser pouso de companhias aéreas low cost até deixar de existir como aeroporto. Em 30 de outubro de 2008, o último voo regular decolou de Tempelhof às 22h e à meia-noite as luzes do pátio e das pistas foram desligadas para sempre. Morria o emblemático aeroporto chave da salvação de Berlim Ocidental, nascia em 2010 no mesmo lugar uma das maiores e mais inusitadas áreas de lazer da cidade. Moradores do bairro vizinho de Schillerkiez têm ali uma horta comunitária e berlinenses em geral fazem no espaço piqueniques e churrascos, pedalam, deslizam pelas pistas com skates e pranchas de windsurfcom rodas, soltam pias e jogam bola. Chegamos lá de bicicleta também. Mas dá para ir de metrô (estações Tempelhof, Paradestr ou Platz der Luftbrücke). E que tal se do nada surgisse mais? Surgisse arte. Berlim está experimentando atualmente um boom artístico como aquele visto pela última vez na década de 1920 – quando a cidade exerceu uma grande atração sobre os artistas no período entre guerras. Está se tornando um centro de arte contemporânea e essa vibração leva colecionadores particulares a trazer peças a público. Um dos mais famosos é o magnata das comunicações Christian Boros. Ele abriu sua galeria em um bunker da Segunda Guerra Mundial. São 3 mil m² e 80 salas com obras de 1900 até agora. O telhado do bunker é hoje a residência de Boros. Para visitar é preciso reservar (Sammlung Boros Bunker, Reinhardtstrasse, 20, Mitte, www.sammlungboros.de)
História com design
Eles estão nos semáforos em quase todos os cruzamentos de pedestres em Berlim. Andando em verde, paradinhos em vermelho, os Ampelmännchen – homenzinhos de chapéu que dão a autorização pra você cruzar ou não a rua quando acesos – tornaram-se os embaixadores pop da antiga República Democrática Alemã (a RDA ou Alemanha Oriental) e um dos souvenirs berlinenes mais queridos e cultuados. Sua história está intimamente ligada à divisão e reunificação de Berlim. A trajetória desse ícone do design da RDA começou em 1961, quando o psicólogo Karl Peglau apresentou em Berlim Oriental sugestões para novos símbolos de semáforo. Sua invenção eram luzes de pedestres na forma de homenzinhos de chapéu, nariz e até barriguinha proeminente. Como psicólogo, inventor engenhoso e estrategista inteligente, Karl sabia do efeito emocional que essas figuras provocariam: estamos mais propensos a confiar em alguém que se parece conosco ou em quem gostamos. Ou seja, carismáticas figuras realmente parecidas com a gente nos fariam prestar mais atenção nos sinais de trânsito do que fariam os impessoais homenzinhos palito.
A fofura dos Ampelmännchen não era capricho, mas um plano bem pensado.As autoridades da RDA gostaram da ideia e implantaram os sinais com o desenho de Karl. Houve murmúrios de que o chapéu do Ampelmann fosse apenas um agradinho ao regime, uma vez que era acessório bastante usado pelos representantes da RDA. Será? Nos anos seguintes, a queda do Muro de Berlim trouxe à tona uma mentalidade de se livrar dos símbolos retrógrados do regime comunista. Veio a eliminação progressiva de várias instituições da Alemanha Oriental, mas os queridos Ampelmännchen cativaram o Ocidente e tornaram-se figuras cultuadas. As autoridades renderam-se àquela fofuras e viram nelas mais razões para apresentá-las no Ocidente do que para destruí-las. Teve até estudo acadêmico: uma pesquisa feita na Universidade Jacobs em Bremen (Alemanha) compara a eficácia visual dos sinais do Leste e do Oeste e registra que os Ampelmännchen não são apenas um ícone da nostalgia da RDA, mas realmente têm vantagem visual sobre os sinais utilizados na Alemanha Ocidental. Com o país reunificado e a eficácia dos Ampelmännchen comprovada, pareceu boa ideia instalá-los por toda a nova Berlim. Mais do que uma atitude eficaz para a segurança do cidadão, era uma atitude em prol do grande passo que a humanidade dava unindo o que a Guerra Fria havia separado.
Era algo de bom que sobrava da República Democrática Alemã. Na loja Ampelmann (www.ampelmannshop.com) – especialmente aquela na rua onde os símbolos começaram a ser usados há décadas, a Unter den Linden – é possível comprar, entre toda a sorte de souvenirs berlinenses, qualquer coisa com um desses homenzinhos fofos ou na forma deles. Tem lâmpadas, bala de goma, moldes para cubos de gelo, esponja, clips, peso para papel, decalque, talheres…ufa! Um capacho para a porta, por exemplo, custa € 20. Os padrões de decoração da Alemanha Oriental estampados num apartamento modelo mostram como era a vida na comunista República Democrática Alemã. E que roupa os cidadãos, proibidos de viajar a países capitalistas, usavam? Que música ouviam? O que comiam e o que compravam com seus salários controlados pelo governo? Como eram suas casas? A “ostalgie” (um neologismo alemão criado a partir das palavras ost, de leste, e nostalgie, de nostalgia) é a atração do DDR Museum (Museu da República Democrática Alemã – RDA, www.ddr-museum.de). Lá, um enorme acervo de produtos poder ser tocado e sentido literalmente. Desde o apartamento mobiliado até uma sala de interrogatórios de uma prisão para suspeitos de não colaborar com o regime de retenção, passando por guarda-roupas e produtos alimentícios até o famoso carro popular Trabant, tudo pode ser manuseado. As peças, originais, foram doadas ao museu por famílias que viveram na RDA. Muita gente vai se surpreender com a moda colorida (apesar dos tecidos de pouca qualidade e da escassez de produtos que frequentemente abatia os países do regime). Estão lá até os famosos pepinos em conversa da RDA (os Spreewald Gurken) na mesma embalagem antiquada com que se apresentavam nas prateleiras quase vazias dos supermercados de Berlim Oriental nos anos 80 – e que aparecem no filme Adeus, Lênin. Reserve pelo menos 2 horas para mexer em tudo. A visita custa € 9,50. Com Berlin Card: € 6