ESTILO

Tudo começa no prato

Há muitas outras implicações na escolha do que comer todos os dias do que a quantidade energética dos alimentos

Um prato de arroz, feijão, bife, batata e ovo tem cerca de metade da necessidade calórica diária de um homem adulto e 60% de uma mulher adulta*. O tradicional PF brasileiro também representa a cultura alimentar do país, a história das práticas de preparo e cultivo, a saúde e até questões econômicas, como o debate recente sobre o aumento do preço do arroz. “A gastronomia vem mudando o mundo desde que o mundo é mundo”, reflete a chef Paola Carosella, em uma entrevista para o Nexo Jornal. A empresária é conhecida por suscitar discussões em defesa de uma maior conscientização nas escolhas do que entra (ou não) na cozinha – e no estômago – da população. Isso porque comida não é só comida, ela implica questões éticas, econômicas, históricas, sociais e, claro, fisiológicas.

Em outras épocas, o “simples” aumento de preço de um alimento já causou revoltas e derrubou líderes pelo mundo. Um desses casos foi no Japão, em 1918, quando o valor abusivo do arroz, alimento amplamente consumido pelos japoneses, gerou fome e originou protestos contra o governo. A crise culminou na renúncia do então primeiro-ministro do país. Foi, inclusive, uma das motivações do início da imigração japonesa no Brasil. Neste ano, o Prêmio Nobel da Paz foi concedido ao Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas, em reconhecimento ao trabalho de combate à fome e, com isso, a melhora nas condições de paz, com a prevenção do uso da fome como arma de guerra. O presidente do comitê lembrou que “a fome é uma das armas mais antigas de conflito no mundo”. Outros especialistas apontam que o chamado “terrorismo alimentar” tem papel central em diversos conflitos contemporâneos.

“O tradicional PF brasileiro também representa a cultura alimentar do país (…)”

Por aqui, não vivemos uma situação tão semelhante, mas recentemente, em setembro, o tema do comer voltou ao debate público. Foi quando o Mapa (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento) enviou uma nota técnica ao Ministério da Saúde que visava reformular o Guia Alimentar para a População Brasileira, publicação que orienta, entre outras coisas, a redução do consumo de ultraprocessados.

(Foto: Shutterstock)

A orientação do guia é que a escolha de alimentos seja feita a partir da classificação NOVA, que os organiza por nível de processamento. Ou seja, os mais processados devem ser os mais evitados. A nota do Mapa sugeria a “retirada imediata das menções à classificação”. Cientistas internacionais renomados de universidades como Harvard, Yale e Cambridge assinaram uma carta em que afirmam que a nota não tem fundamentação válida. No Brasil, pesquisadores e chefs também se manifestaram contra a medida, que não chegou a ser implementada.

“O guia, hoje, pode ser considerado um patrimônio da população brasileira. Ele leva como princípio a promoção de um sistema alimentar saudável e sustentável. Leva em conta o comer como um ato político, então mostra, nas recomendações, que a alimentação é mais do que a ingestão de nutrientes”, analisa Kamila Tiemann Gabe, nutricionista e pesquisadora do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo.

Para a especialista, a resposta da sociedade foi muito forte e extrapolou a bolha das pessoas que trabalham diretamente com comida. “Isso nos faz pensar que pelo menos uma parcela da população está mais atenta a um conceito de alimentação saudável mais ampliado, que não diz respeito apenas ao impacto da alimentação na saúde, mas a um impacto sistêmico da alimentação: no meio ambiente, na nossa cultura e na sociedade como um todo”, observa.

Comida “de verdade”
Por mais que o conceito seja recente, os ultraprocessados estão relacionados a malefícios à saúde e ao planeta. “Têm sido cada vez mais consistentes os estudos que demonstram que os ultraprocessados têm impactos muito negativos na saúde. Entre os problemas associados ao consumo desses alimentos,  estão o desenvolvimento de doenças cardiovasculares e cerebrovasculares (como AVC), câncer, sobrepeso, obesidade e até mesmo depressão e outras doenças de saúde mental”, ressalta.

Nesse cenário, segundo Kamila, aumenta a importância de reforçarmos o consumo de comida “de verdade”, ou seja, alimentos in natura ou minimamente processados. “A primeira razão para consumi-la é que faz bem para a saúde. Refeições que são ricas em comida ‘de verdade’ de diferentes grupos, como frutas, legumes e verduras, protegem as pessoas de doenças crônicas, mas, também, há outros aspectos, como o impacto ambiental causado pela alimentação”, examina. “Tem um dado da Austrália por exemplo, que estima que o ultraprocessamento de alimentos contribua com mais de um terço do total do impacto ambiental causado pela dieta, então é muita coisa.”

O marketing da grande indústria favorece a expansão das vendas. Uma vasta reportagem produzida pelo jornal estadunidense New York Times narrou detalhes de como a indústria viciou o Brasil em junk food. Outro aspecto que precisa ser avaliado é como os produtos são criados para agradar ao paladar. “A indústria capturou, de certa forma, o paladar das pessoas, porque se trata de alimentos feitos para terem um sabor muito intenso e viciante. Então é preciso, também, uma política de educação alimentar e nutricional para reverter esse quadro”, aponta Kamila.

O papel do governo na alimentação
“É um impacto em todo o sistema e não só no consumo em si. Impacta na convivência das famílias, porque esses produtos são consumidos de uma forma mais rápida e, muitas vezes, não exigem um preparo compartilhado, podendo ser consumidos na frente da televisão. É toda uma cadeia o que é movida: do consumo de alimentos e tudo que envolve isso – a produção, o preparo, a aquisição”, resume. 

A pesquisadora ainda acredita que o país precisa avançar em políticas públicas que desestimulem o consumo de ultraprocessados. Um dos exemplos é a mudança na rotulagem dos produtos. A Anvisa aprovou, em outubro, uma medida que “melhora a clareza e a legibilidade das informações nutricionais” e “visa auxiliar o consumidor a realizar escolhas alimentares mais conscientes”, de acordo com o Ministério da Saúde.

(Foto: Cayla l Unsplash)

O chef Felipe Bronze, que conta com duas estrelas Michelin, tem outra visão sobre o papel do governo quanto ao que se deve ou não comer. “É claro que, quanto mais fresco for qualquer produto, melhor. Só penso que, às vezes, a alimentação, para chegar a uma parte considerável da população, necessita, sim, passar pela indústria. Cabe ao consumidor final a escolha do que vai pôr no seu prato. Acho apenas que as informações devem ser claras”, pondera.

Programas como Top Chef Brasil, da Record TV, que Felipe comanda, são importantes para que os chefs sejam vistos e a população entenda mais sobre gastronomia. “O público aprende mais sobre comida e pode se deliciar com pratos novos e, também, com as emoções da disputa. É entretenimento com conteúdo – melhor, impossível”, opina.

Um olhar mais amplo
A consciência de onde vêm – e como são feitos – os insumos é cotidiano no trabalho da chef Vânia Krekniski, proprietária do Limoeiro Restaurante, que prioriza alimentos de origem paranaense produzidos de forma sustentável e por pequenos produtores locais. “Nós, cozinheiros, temos o dever de mostrar esses produtos [locais]. É muito legal a troca entre os cozinheiros e os produtores também, sobre a melhor maneira de usar aquele produto”, observa. “Quando eu escolho um fornecedor, primeiro vou até o local, vejo toda a preocupação do produtor com a água, com o solo, com o ar, com o alimento e com o bioma como um todo.”

Vânia trabalha com associações de produtores locais, grupos que têm cuidado com toda a cadeia da produção dos insumos. “Há todo o ciclo da sustentabilidade, de como as coisas vão voltar para a mata”, conta. No restaurante, todas as sobras são reutilizadas: viram caldo, servem de alimento para as galinhas ou são compostadas. O objetivo é gerar o mínimo de lixo possível. A chef pensa, também, na versatilidade de cada ingrediente: “com uma abóbora, por exemplo, eu faço doce, risoto – e sempre avalio integralmente, então, com a casca, posso fazer tijolinho. Praticamente não perdemos nada.”

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(Foto: Divulgação)

Identidade cultural 
O Brasil tem uma rica e diversa cultura alimentar. Os padrões de alimentação foram construídos ao longo de muitos anos, acompanhando o desenvolvimento da sociedade. Kamila explica que a base da nossa alimentação reúne práticas de cultivo, preparo e consumo de povos nativos com outras práticas trazidas pelos europeus depois da colonização. “Cada coisa que a gente foi constituindo – e que a gente não percebe quando consome os alimentos – está escrita na nossa identidade cultural, de compartilhamento das refeições”, ressalta. A mandioca é um bom exemplo, pois é conhecida por diferentes nomes ao redor do país e consumida de várias maneiras.

Era essa valorização das tradições e iguarias locais que Jeferson Jess tinha em mente ao criar o Caixa Colonial Club, um clube de produtos regionais e artesanais. Todos os meses, os assinantes recebem uma curadoria de artigos de diferentes regiões do Brasil. “Queremos valorizar a cultura alimentar, aqueles produtos tradicionais típicos, feitos como antigamente, que remetem à questão da comida de verdade ou da memória afetiva, lembranças de infância, cheirinho de casa de vó, lembranças dos antepassados”, conta.

“Cada coisa que a gente foi constituindo – e que a gente não percebe quando consome os alimentos – está escrita na nossa identidade cultural, de compartilhamento das refeições”

A parte mais importante para Jeferson, além da visibilidade, é gerar renda para os produtores e, com isso, estimular o desenvolvimento das comunidades. “Vemos o potencial de cada região, entramos em contato com os sindicatos, a prefeitura e as pessoas locais. Fazemos visitas, onde descobrimos mais da metade dos produtos que fazem parte dos kits. Conhecemos os pequenos produtores que moram no sítio e vendem só na comunidade.”

Para Kamila, essa diversidade, investir em alimentos pouco processados e em produtos locais ajuda, também, a preservar a nossa identidade. “Essa indústria [de processados] vem para homogeneizar, não só no país, mas no mundo todo, e para tirar essa identidade, que é uma coisa da cultura, algo muito rico nosso, um traço da nossa história.”

*A parte brasileira do estudo internacional publicado em dezembro de 2018 no British Medical Journal foi realizada por pesquisadores da USP.

**Matéria originalmente publicada na edição #242 da revista TOPVIEW.

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