A revolução do habitar: o surgimento das ecovilas
No calor seco de quase 40ºC de Pirenópolis (GO), a 140 km de Brasília, erguem-se casas coloridas de uma vila fincada em um oásis verde no meio do cerrado brasileiro. Elas têm um “quê” psicodélico, formas arredondadas, abóbodas, ladrilhos coloridos a la Parc Güell. Os bancos e mesas do jardim, assim como os salões de convivência, seguem o mesmo princípio. Apesar de inusitado e divertido, o cenário não é de brincadeira. Isso é uma ecovila, espécie de condomínio adequado aos princípios da bioarquitetura e da permacultura – método que visa criar ambientes sustentáveis embasado na filosofia de trabalhar com, e não contra a natureza. Diferentes de condomínios convencionais, as ecovilas usam técnicas ecológicas de geração de energia, de uso da água, de construção de casas, de cultivo de alimentos, e as decisões são tomadas em grupo pelos moradores. Sempre procurando conforto, porque vida sustentável nada tem a ver com vida primitiva. Coisa de hippie, de bicho-grilo, de “ecochato”? Não. A vila goiana é parte de um universo de 15 mil comunidades que formam a Rede Mundial de Ecovilas (GEN, da sigla em inglês Global Ecovillage Network). A rede surgiu em 1996 depois que comunidades sustentáveis do mundo inteiro se reuniram para trocar ideias na ecovila escocesa de Findhorn, uma das mais antigas do mundo, famosa por suas casas feitas com barris de uísque inutilizados, entre outras soluções inovadoras. Uma das funções da GEN é divulgar a experiência das ecovilas tanto para a sociedade civil quanto para planejadores de políticas públicas que buscam melhorar as condições de assentamento humano em seus países. Em 1998, as ecovilas foram reconhecidas pela ONU como modelos excelentes de vida sustentável, ganharam status consultivo na organização e passaram a ser responsabilizadas pelo que especialistas chamam de “a revolução do habitar”.
Terra, pedra, palha, vidro, pet…
Além de moradia, a vila em Pirenópolis funciona como um centro de cursos e laboratório onde tecnologias para uma vida sustentável e mais confortável são testadas e demonstradas. Lá fica o Instituto de Permacultura e Ecovilas do Cerrado (Ipec), referência para brasileiros e estrangeiros. Aliás, as casas com jeito maluco feitas com técnicas de bioconstrução vistas ali podem ser tão ou mais eficientes que aquelas da construção civil convencional. “Geralmente são mais resilientes aos acontecimentos naturais que as casas convencionais”, diz Giuliana Capello, jornalista autora do recém-lançado livro Meio Ambiente & Ecovilas, que tem prefácio da ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva. Giuliana é moradora da ecovila Clareando (sim, há outras no Brasil) a apenas 100 km de São Paulo. Casas feitas de barro e palha com telhados que abrigam grandes painéis fotovoltaicos para a geração de energia solar ou turbinas eólicas compondo o visual de habitações sustentadas por varas de bambu são figurinhas comuns em ecovilas. A lógica é a seguinte: enquanto em uma construção convencional o arquiteto mobiliza grande quantidade de materiais, energia e recursos humanos utilizando fornecedores que podem estar a quilômetros de distância, nas ecovilas a arquitetura foca no meio ambiente mais próximo para reduzir impactos. Para isso são observados os materiais mais facilmente encontrados na região. Só depois é que se pensa na estética e no design das construções. Nessa lista de materiais entram até os itens não naturais, mas reaproveitáveis como vidros, garrafas pet, madeira de demolição… Não se trata de renegar novas tecnologias, mas de resgatar práticas e saberes antigos aprimorando-os com novas tecnologias.
Eco prêmios nacionais
No Brasil o movimento das ecovilas ainda é muito recente e pouco difundido, segundo Giuliana. A Clareando é uma das mais conhecidas e além de área residencial, com lotes particulares, tem uma comunitária e outra de reflorestamento de Mata Atlântica. Reunindo dez famílias moradoras, tem várias casas em fase de construção e uma delas ganhou ano passado o Prêmio Planeta Casa, da revista Casa Claudia, como melhor projeto arquitetônico sustentável do país. Batizada de Casa do Tatu, foi construída com sacos de polipropileno preenchidos com solo do próprio terreno e rebocados com terra, esterco e cal. É a técnica conhecida como superadobe, que, além de aproveitar a disponibilidade de terra, é boa para climas frios. As portas e janelas vieram de uma casa centenária demolida na cidade mais próxima. O telhado verde compensou a retirada de vegetação da área e impermeabilizou o teto. Cisternas armazenam a água da chuva para irrigar o jardim e um sistema de zona de raízes trata o esgoto doméstico. Pouquíssimo cimento foi usado e quase nenhum entulho foi gerado nessa casa construída em apenas 11 meses de forma ecologicamente correta e barata. Em Pirenópolis também há casas construídas em superadobe e adobe – este último não leva cimento, é um tijolo feito de barro cru e palha e que não gasta energia para ser queimado e, se feito no local da construção, não gasta combustível de transporte. Mas a vedete do local são os banheiros secos, que utilizam serragem no lugar de água na descarga sanitária. O trunfo está no design inteligente, que oferece conforto e evita mau cheiro. Após o uso, em vez de água, joga-se no sanitário apenas um punhado de serragem. Fecha-se e pronto. Ali, nas câmaras de compostagem, os resíduos se transformam em poucos meses em adubo natural e sem cheiro. Quando isso acontece, são levados ao minhocário, onde viram húmus para adubar os jardins, os pomares e as áreas de reflorestamento do lugar. A solução rendeu ao Ipec o Prêmio Finep de Inovação Tecnológica na categoria Inovação Social.
QUANTO CUSTA SER ECO?
Não há resposta pronta. Segundo dados do Instituto de Permacultura da Mata Atlântica (IPEMA) estima-se que casas bioconstruídas custem em média 50% menos que as convencionais. Mas são tantas as variáveis que ainda fica difícil fazer a comparação. “Construções mais naturais e artesanais têm custo menor de materiais, mas em compensação pagam mais pela mão de obra, que é também mais artesanal”, opina Giuliana Capello. “No fim das contas, acaba saindo ‘elas por elas’.” Ela lembra que casas que incorporam tecnologias verdes, como aquecimento solar de água, captação de água de chuva, painéis fotovoltaicos, entre outros, podem custar mais em um primeiro momento, mas oferecerão, ao longo da vida útil do prédio, uma economia para os moradores e para o planeta – em termos de água e energia, principalmente. “Além disso, materiais de construção convencionais, muitas vezes, custam menos porque o preço não internaliza a conta dos impactos ambientais gerados no ciclo de vida dos produtos.”
Meu barril de uísque, minha casa
Se no Brasil a Casa do Tatu utilizou a demo lição mais próxima para conseguir suas portas e janelas, a ecovila Findhorn, na Escócia, fez uma escolha ainda mais impressionante. Localizada em uma região conhecida pela produção de uísque, utilizou a madeira de antigos tonéis para compor suas casas. Material nobre e disponível na área e que seria descartado. Com diversas obras que fogem totalmente do padrão convencional, Findhorn talvez seja a mais famosa das ecovilas no mundo. É uma das comunidades fundadoras da GEN e Meca da bioconstrução. E não é à toa. Como acontece numa boa ecovila, Findhorn passou a dispor de ótimos especialistas no assunto dentro da própria comunidade à medida que, ao longo dos anos, foi pesquisando soluções “ecoinovadoras” como a do uísque. Aliás, quem morou durante anos onde antes eram estocados 600 litros de bebida alcoólica é May East, uma brasileira que chegou em Findhorn nos anos 90 e hoje é a ponte entre a comunidade, a GEN e a ONU. “Foi estabelecido há 51 anos que Findhorn teria dois princípios fundamentais: escutar a natureza e uns aos outros [os moradores]” diz. May se refere aos valores em comum que seus habitantes precisam ter para que uma ecovila funcione. “Nossas casas usam recursos solares passivos. A seis graus do Polo Norte usamos o calor do sol e da luz para ajudar a aquecer e iluminar as casas.” Mas há outras soluções. As mais de 60 casas de Findhorn são feitas com pedra, fardos de palha, contêi-neres, telhados cobertos com plantas nativas e madeira de bosques manejados na própria área da comunidade. As paredes, por exemplo, possuem isolamento feito com celulose a partir de papel reciclado e com lã de ovelha. A conservação da água é feita na própria comunidade com a Living Machine, uma estação de tratamento de esgoto que não usa nenhum produto químico e reproduz em escala intensiva o processo de depuração que ocorre normalmente na natureza. Numa sequência de tanques desemboca o encanamento do esgoto de toda a comunidade. Em cada tanque há um ecossistema diferente composto por bactérias, algas, micro-organismos, plantas, caracóis e peixes que se alimentam da sujeira, quebrando suas moléculas e limpando a água, que é devolvida ao mar ou reutilizada para regar plantas, lavar roupa e diversas outras finalidades. Consegue servir a 500 pessoas.
Earthships e o guerreiro do lixo
O arquiteto norte-americano Michael Reynolds é um exemplo emblemático nesse mundo de casas curiosas. Na década de 70, ele começou a construir no Novo México (EUA) casas experimentais autossuficientes em água, energia e saneamento básico. Erguidas com materiais reciclados e recicláveis (latas de alumínio, garrafas plásticas e de vidro, pneus, etc.), foram apelidadas de Earthships, algo como naves terrenas, devido aos seus formatos inusitados. Michael é considerado um grande humanista querendo divulgar soluções para problemas de habitação que o mundo enfrenta hoje, mas já foi contestado várias vezes por associações de arquitetos e pelas leis que estabelecem padrões de arquitetura nos EUA. Já foi com sua equipe a diversos lugares atingidos par catástrofes naturais para ajudar a reerguer casas usando restos de materiais disponíveis nas regiões. O documentário Garbage Warrior, do diretor Oliver Hodge, conta essa história.
Sem abdicar das cidades
Tudo isso não significa que o mundo deva se transformar em uma ecovila. “Elas são laboratórios”, explica May East, de Findhorn. Os princípios das ecovilas podem ser levados a qualquer assentamento humano nos mais diversos estágios de desenvolvimento. O Gaia Education, programa vinculado à ONU e do qual May é diretora, dissemina em encontros comunitários o conceito de urbanismo sustentável, em países dos mais variados níveis de desenvolvimento. Já ajudou a criar “ecobairros” em cidades como São Paulo e Salvador, uma enorme rede de ecovilas em países com problemas de habitação como o Senegal. “Não é preciso abdicar das cidades”, diz Giuliana Capello. Ela lembra dos prédios públicos revitalizados sob princípios sustentáveis, como o caso da comunidade Ufa Fabrik, instalada em uma antiga fábrica em plena Berlim. “É bom lembrar que muitos pioneiros no movimento das ecovilas, hoje viraram consultores de design urbano.”
Para saber mais
Para quem tem vontade de conhecer de perto uma ecovila há possibilidades no mundo todo. Umas recebem visitantes para um fim de semana ou temporadas maiores, outras oferecem cursos e vivências. No Brasil, vale visitar e conhecer os programas do Instituto de Permacultura e Ecovilas da Mata Atlântica (Ipema), que fica ao lado da ecovila Corcovado em Ubatuba (SP); o Ecocentro Ipec, em Pirenópolis; e a ecovila Terra Una, na Serra da Mantiqueira, em Liberdade, Minas Gerais. No exterior, Findhorn aceita visitantes para longas e curtas temporadas e tem programas em português. Para ir mais longe, os sites de Rede Mundial de Ecovilas (gen.ecovillage.org) e da Gaia Education (www.gaiaeducation.net) são fundamentais. O livro Meio Ambiente & Ecovilas, de Giuliana Capello, laçamento da Editora SENAC, é uma eficiente introdução a esse mundo, enquanto o Ministério do Meio Ambiente tem online uma cartilha minuciosa de técnicas de bioconstrução.