Raphael Zanette: dos bastidores, ele elevou o paladar curitibano
O empresário começou como franqueado de uma distribuidora de vinhos e, 15 anos depois, é consagrado o grande nome da gastronomia em 2017. Raphael Zanette, que acaba de ser eleito o melhor restauranteur do ano pelo Prêmio TOPVIEW Gastronomia, está à frente de alguns dos melhores estabelecimentos da cidade – e expande para São Paulo e Joinville. São nove empreendimentos, mais precisamente, de perfis diversos: além de restaurantes de alto nível como C’ La Vie e Terra Madre, a importadora e distribuidora Magnum, um bar de vinhos (eleito a melhor novidade do ano pelo prêmio de gastronomia) e um de tapas, que estreia em breve, são exemplares da versatilidade do curitibano – bem como de seu espírito inovador, em busca de excelência e inquieto. Nessa conversa no C’ La Vie, onde Zanette chegou acompanhado pelos filhos Arthur, 8, e Davi, 6, o empresário com formação em Direito e Administração falou com paixão sobre restaurantes, vinho e o mercado de gastronomia.
TOPVIEW: Você possui vários empreendimentos e segue buscando novos projetos. O que o motiva?
Raphael Zanette: Sou um pouco inquieto… Claro que tem motivações comerciais, você percebe que há potencial para expansão ou uma nova unidade. Mas tem a ver com personalidade. Não consigo ficar só no feijão com arroz durante muito tempo.
Os chefs dos seus restaurantes estão entre os melhores. Como os encontra? É uma decisão que eu não delego. Mas procuro, na medida do possível, aproveitar quem está na equipe, como Giuliano Secco (chef do C’ La Vie), Lênin Palhano (atual chef do Nomade) e Ivan Lopes (hoje chef do Mukeka). Em Curitiba, no nosso estilo de gastronomia, é muito difícil que um chef fique 10, 20 anos com você. Eles têm outras aspirações e projetos próprios.
Grupo Vino!
Engloba os restaurantes C’ La Vie, Terra Madre (prestes a inaugurar em São Paulo), Vino! São Paulo, Olivença e os bares Vino! e Olivença (em breve em Joinville e na Mercadoteca, em Curitiba, respectivamente).
Importadora e distribuidora Magnum
O restauranteur viaja o mundo em busca de pequenos produtores de vinho e suas histórias. A Magnum trabalha hoje com cerca de 250 rótulos de dez países.
TV: Quais características valoriza num chef?
RZ: Tem uma confusão muito grande sobre essa figura, porque criou-se, até pelos programas de televisão e cursos, uma figura com certo glamour, que não condiz muito com a realidade. Chef não é uma profissão, você não estuda para isso. É uma posição que se conquista. Estuda-se para ser cozinheiro e, se tiver aspectos como liderança, organização, visão mais ampla do negócio, pode-se ter a oportunidade de chefiar uma equipe. Ele faz muita diferença na sustentabilidade do negócio. Seu papel não é só fazer comida boa, mas também usar os ingredientes com racionalidade, de forma que o negócio seja rentável.
TV: E as características de um bom restauranteur?
RZ: Precisa gostar muito, porque tem um monte de coisa legal, sou apaixonado, mas tem uma dose de sacrifício de vida pessoal. Muitos dos momentos em que as pessoas estão confraternizando é a hora em que a gente trabalha. E o mercado mudou muito. Nos primeiros anos, a gente mexia em dois, três pratos, duas vezes por ano no Terra Madre. Agora não dá, a concorrência é muito forte e tem o aspecto macroeconômico do país, então tem que o tempo todo inventar moda: fazer evento, promoção, degustação… É fundamental hoje ser inquieto.
TV: Ano passado foi realmente difícil para o segmento?
RZ: Sem dúvida. Afetou em dois aspectos: o movimento em si e o tíquete médio. As pessoas continuam saindo, mas com menos frequência, e tomam vinho de outro padrão ou não tomam. Ano passado foi o mais difícil [dos últimos 15 anos]. Até porque foi um conjunto: vinha de anos de aumento de custo e de repente a receita muito rapidamente caiu. Foi um ano de muito trabalho interno, de lição de casa: diminuição de equipe, carta de vinho e cardápio para reduzir o estoque.
TV: Em que pontos o segmento se fortaleceu nessa crise?
RZ: Vamos sair mais eficientes. Por incrível que pareça, [o segmento] continuou com muitas opções, as coisas não pararam de abrir. Curitiba tem hoje uma diversidade tremenda e com qualidade. Muitas vezes as pessoas não valorizam. E em muitas cidades maiores eu não vejo a variedade que tem aqui.
TV: Fizeram mudanças no cardápio?
RZ: A gente fez um trabalho com tamanho de estoque de alimentos, e o que determina isso é o cardápio. Qual é a moda hoje em restaurantes em São Paulo? É cardápio pequeno. Esse é um problema em Curitiba, o consumidor não aceita. Temos no Terra Madre 21 pratos e a principal reclamação é cardápio pequeno. E esses restaurantes em São Paulo têm seis, oito [pratos]. Claro, mudam com muita frequência. Esse ainda é um processo que vai chegar a Curitiba. Não se pode ter um nível de exigência do Fasano e querer pagar… Aqui o cliente quer um serviço, ambiente, taça de cristal, toalha, talher assim… Mas acha o restaurante caro. Não tem mágica! Não se paga o prato, isso você compra a comida e faz em casa; é todo o pacote. Está difícil fechar essa conta.
TV: Quais são outras peculiaridades do curitibano?
RZ: [Em geral, prefere] pratos maiores… Quando a gente abriu o C’ La Vie, quem fez o cardápio foi o Erick Jacquin, e ele tem um prato clássico que é um robalo no vapor só com aspargos. Um prato lindo, mas muito leve. Em 15 dias, a gente teve que transformar o aspargo em risoto de aspargos (risos). Porque as pessoas achavam muito pouca comida. Isso é natural, cada cidade tem as suas características. O que Curitiba impressiona mais, para mim, é uma obsessão pelo mignon. É impressionante (risos). [No C’ La Vie] acho que 70% dos pratos pedidos são com mignon.
TV: Além dos pequenos ajustes que mencionou, observa grandes erros na sua trajetória?
RZ: O que hoje acho um grande erro é que eu poderia ter aproveitado os tempos bons, do ponto de vista de rentabilidade, se tivesse trabalhado melhor da porta para dentro, nesse aspecto de controle, estoque… Descobrindo vários dos erros que aconteceram no período e a gente corrigiu, fico imaginando quanto dinheiro se perdeu.
TV: E consegue sair para jantar? Gosta?
RZ: (Risos) Em Curitiba eu saio muito pouco. Acabo indo nos meus [estabelecimentos]… E quando tenho um pouco de tempo, não é bem esse tipo de comida que quero… Prefiro um cheeseburguer, ficar em casa. Mas viajo muito e aí me obrigo a ir a restaurantes, para ter referências.
TV: Algum desses destinos te surpreendeu, em termos gastronômicos?
RZ: Para sair do básico, porque não adianta falar Paris ou Nova York, acho que a grande surpresa, evolução dos últimos anos é Lisboa. É um espetáculo atualmente para comer, em todos os aspectos: criatividade, ingredientes, projetos novos…
Pelo uso de ingredientes diferentes ou por dar uma nova forma a eles? Os dois. Tem muito a valorização de ingredientes próprios, há frutos do mar que somente eles têm, e muita carne de porco, em diversos formatos. Mas isso é o clássico. Hoje se vê essa característica de Lisboa, os clássicos portugueses revisitados, com novas leituras, apresentações, mas mantendo sempre a linha da comida local.
TV: É algo que busca para seus cardápios?
RZ: Sempre. Agora vem um amigo de São Paulo passar o fim de semana aqui para ajudar nas três casas principais, sobretudo na criatividade, inovação, dar uma oxigenada, em conjunto com os chefs.
TV: E até que ponto é possível inovar sem ficar demais?
RZ: É um desafio. Não é o momento da gastronomia, nem a mundial, muito rebuscada, com excesso de criatividade. É muito mais a valorização do simples, mas muito bem feito. Agora, o grande desafio é como comunicar e fazer as pessoas quererem descobrir essas coisas.
TV: Fica bastante nos restaurantes?
RZ: Toda noite, praticamente. Exceto segunda-feira, quando jogo futebol, em todas estou neles.
TV: Imagino que faça toda a diferença você estar presente.
RZ: Quando não é fast food ou algo mais rápido, a presença do dono é fundamental. Aquele negócio foi pensado por você, tanto do ponto de vista da gastronomia quanto ambiente, serviço… Quem melhor sabe a experiência que deseja que o cliente tenha é você. Um exemplo: muita gente vai no Olivença e pede o prato principal, janta e vai embora. Tudo bem, acho ótimo. Mas o que acho o mais legal do Olivença é as pessoas pedirem as tapas, compartilharem, pedirem coisas diferentes. O bacana é ficar lá duas horas pedindo coisinhas. Não vai ficar mais caro do que comer um prato. E você faz um programa que sai do comum. Quando estou lá, falo “Por que não pega isso de entrada?” ou mando para conhecerem.
TV: Para dar um jeito nisso, está fazendo um Olivença só de tapas [em breve na Mercadoteca, em Curitiba].
RZ: (Risos) Daí as pessoas serão obrigadas a pedir as tapas.
TV: É um trabalho de educação, também, do consumidor…
RZ: É. A mesma coisa aqui [C’ La Vie]. A gente fez dois sistemas de som diferentes e à noite a ideia é que aquelas cortinas fiquem fechadas e aqui [no espaço do bar] tenha música mais alta, animada, e as pessoas tomem um drinque antes ou após o jantar. E quem quer jantar vai [no ambiente] atrás da cortina. Na prática, pouca gente o faz. Eu entrei em gastronomia porque sou apaixonado por restaurantes. Qualquer viagem a gente [Raphael e a esposa, Karina] vai já sabendo onde almoçar e jantar. Quando era criança, jantava fora uma vez por semana com meus pais e na época eu pegava a parte de restaurantes da Veja Curitiba semanal, lia as resenhas e escolhia aonde a gente ia. Para mim, o jantar não é sair para comer, é o programa.
TV: Será que as pessoas ficam intimidadas?
RZ: Não sei… Ou são hábitos. Mas os que eu posso influenciar… Às quartas, a cada quinze dias, a gente faz um pocket show neste cantinho. E ontem [uma quarta-feira de julho] estava muito legal: tinha lareira, música e bastante gente com drinques e tal. Era isso o que eu pensava. Fico feliz vendo acontecer.
TV: E você cozinha?
RZ: Nada.
TV: Nem um ovo frito?
RZ: Nada, nada. Se precisar fazer um ovo, eu faço, mas vai sair…
TV: E não se animou a aprender? Vinho você estudou e hoje domina o assunto.
RZ: Até fiz cursos, mas primeiro que achei que não levava muito jeito, as coisas não estavam ficando muito boas (risos), e segundo que começou a não dar mais tempo.
TV: Nas viagens, como seleciona os restaurantes que vai conhecer?
RZ: Muitas vezes são indicações de amigos e procuro, leio, faço pesquisa mesmo. Em grande parte dessas viagens, o melhor é essa preparação. Vou tirar férias com minha mulher em setembro e já estou há mais de um mês pesquisando, definindo reservas. E não é todo dia para comer foie gras, tem dia de hambúrguer, comida indiana. Gosto da comida mais elaborada até o sanduíche da esquina.
TV: O gosto pela gastronomia veio dos seus pais?
RZ: Minha mãe cozinha bem, a mãe dela sempre cozinhou muito bem, mas é esse gostar de comer. Esse gosto por descobrir, provar coisas diferentes não tem muito na família, fui aprendendo.
TV: E como entrou no ramo?
RZ: Veio por causa do vinho. Eu queria montar uma coisa própria e tinha um amigo em São Paulo que me levou às primeiras degustações de vinho. Gostei do assunto, comecei a ler. E a empresa que na época era a maior importadora de vinhos do Brasil [Expand] fez um projeto de franquias. Casou as duas coisas.
TV: Nesse primeiro momento, quais eram os seus objetivos, ambições?
RZ: As coisas foram muito rápidas. Quando procurei a Expand, eles já tinham decidido fazer uma loja em Curitiba, tinham começado a obra. Então em três, quatro meses a loja estava aberta. Eu nem pretendia, naquele momento, sair da empresa de seguros [onde trabalhava], fazia as duas coisas. Mas fui gostando e vi rapidamente que não ia ficar muito tempo como franqueado.
TV: Era limitador?
RZ: Exato. Falei sobre errar e acertar, na franquia você não erra, mas também não acerta, faz o que te falam para fazer. Foi espetacular, me deu contato com as pessoas, conhecimento. Só que eu queria mais, queria escolher qual vinho vender.
TV: Gosta de todas as fases, desde procurar o vinho, fazer degustações e vender?
RZ: Procurar é espetacular porque você conhece pessoas extraordinárias, lugares… É fascinante. Como a gente não trabalha com produtores grandes, industriais, não fala com executivos, fala com o agricultor. É importante conhecê-los porque você não está vendendo só um vinho, a bebida, mas toda essa parte: a história, a região, as pessoas que fazem. Gosto de todo esse processo, exceto a parte de pagar impostos.
TV: Falando em impostos, quais as dificuldades em empreender nessa área em Curitiba?
RZ: São as dificuldades do segmento. O Brasil não é um país para o empreendedor, é um país que dificulta acesso a capital, tem burocracia para tudo (licença, importação), [altos] custos de importação, principalmente de vinho. Dá tristeza olhar o potencial que existe nesse mercado no Brasil, e não vende porque é caro. As pessoas querem tomar vinho. O Vino! Batel está provando. Tem público ali de 20 anos, 23 anos que quer conhecer. A gente vende taça barato e as pessoas bebem, trocam a cerveja pelo vinho. (…) Confunde-se 1% dos vinhos que custam uma fortuna e se toma nas grandes rodas do mundo, mas isso é o que menos se produz e vende. A visão de que o vinho é um produto de glamour e status, para a elite, é deturpada, não é um retrato do vinho no mundo. Nos países produtores, sobretudo, faz parte da alimentação diária, não se tem um dia especial para tomar vinho. A Expand mesmo era uma loja como a “H.Stern do vinho”. Aí realmente inibe. Tem que ser aberto, acessível, casual.
TV: Tem algum chef de Curitiba que seja o seu sonho de consumo, digamos?
RZ: Não… Os dois de quem gosto mais já trabalharam comigo, o Ivan [Lopes] e o Lênin [Palhano].
TV: E o que admira no Lênin [eleito chef do ano pelo Prêmio TOPVIEW Gastronomia 2017], além das características que já comentou?
RZ: É essa vontade de aprender, descobrir coisas novas. Ele não é acomodado. O Giuliano [Secco, chef do C’ La Vie] tem isso também. É uma coisa de que eu gosto nas pessoas que trabalham comigo.
TV: A tal inquietação?
RZ: Isso.
[texto publicado originalmente na edição impressa número 2 do TOPVIEW Journal, agosto de 2017]