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Dupla personalidade: os encantos de Cannes – beeem além do festival

A repórter se surpreende com mais uma faceta do país ao descobrir o lado simpático da mais famosa e glamourosa cidade de Riviera Francesa

Cannes é o tipo de lugar que se conhece quando ninguém está lá. Quer dizer, durante o período fora da temporada de férias e festivais. É nessas condições que essa pequena cidade de 74 mil habitantes, na costa sul da França, à beira do muito azul Mediterrâneo, mostra o seu melhor. Esse seu lado bom não tem nada do famoso glamour atribuído ao local: é feito de carne e osso, sorrisos e piadas dos seus felizardos moradores. Sem dúvida, um dos tipos franceses mais simpáticos que eu já encontrei.

Falantes, curiosos e, vejam só, otimistas, os cannois não se privam de expressar seu contentamento em viver ali. “Cannes é mesmo uma das melhores cidades francesas”, eles responderão a qualquer exclamação vinda de um turista.  Bem diferentes dos parisienses, os quais respondem a um “Paris é magnífica” com um barulhento “pffff”, acompanhado de um peculiar vibrar de lábios cujo significado, complexo e vasto, vai do desprezo ao tédio.

Foi um carregador de malas do Hotel Majestic Barrière quem primeiro me mostrou do que é feita a vida por lá. Irritada com o atraso do trem que me roubou 60 minutos de vida à beira-mar, eu desembarquei imaginando encontrar um motorista à minha espera, pronto para abrir as portas de um automóvel preto qualquer. Mas não. Para minha surpresa, Grégory Tack vestia o uniforme bege do hotel. Em suas mãos, uma folha A4 mostrava meu nome impresso. Em seu rosto, vi um sincero sorriso de boas-vindas. Rapidamente, desculpei-me por sua longa espera e, sem carro algum à vista, eu e meu marido o seguimos a pé. Da estação ao hotel, são pouco mais de quatro quadras. Distância que percorremos calmamente, conversando os três como se já nos conhecêssemos.

Foto: Flickr/Juliet_earth

Depois de uma acalorada recepção pelos funcionários do hotel e de degustar um suntuoso café, servido na varanda do quarto, saímos para explorar a verdadeira Cannes. Enquanto deixávamos o Boulevard de la Croisette para trás, as vitrines das lojas barateavam, as fachadas envelheciam e o mar ganhava o horizonte. Um vai e vem de roupas coloridas, brincos dourados e cabelos não muito bem cortados tomou a paisagem. Uma brisa de familiaridade também.

Um café/tabac/brasserie, ou seja, boteco, de frente para o mar (Le Madrigal, 24 Boulevard du Midi Jean Hibert) chamou a nossa atenção. Mesas de plástico protegidas por uma cobertura do mesmo material nos deram indícios de que aquele seria um bom lugar para tomar uma cerveja gelada. O primeiro pint (550 ml) desceu fácil. O cenário e a visão de um pôr do sol cor-de-rosa ajudaram bastante. Ao sinal da segunda rodada, o garçom atrás do balcão, Pierre, protestou: “Para a mulher também? Vocês têm certeza?”.

Dois outros copos cheios à mesa depois, e ele, incrédulo, veio nos perguntar de onde nós éramos. “Eu sinto pena da minha filha, que mora em Paris. A cidade cria uma dependência ao estresse e dá a falsa impressão de ser o centro do mundo e o reflexo de toda a França, o que não pode ser mais errado”, analisou, certo de que todos os parisienses, coitados, sofrem. Despedimos-nos com dois beijos no rosto e a indicação do seu restaurante preferido na memória.

Foto: Flickr/@yakobusan Jacob Montrasio

Chegando ao Astoux & Brun (27, rue Felix Faure) entendemos o porquê. Os frutos do mar frescos, servidos em porções que deixariam até Obelix satisfeito, a preços inversamente pequeninos, são sonoramente devorados pelos comensais, em sua maioria, locais. Enquanto nos deliciávamos com três entradas (berbigões, mariscos e camarões), para nós pratos principais, nossos vizinhos de mesa deram conta do mesmo número de pratos iniciais que nós e mais três andares de um combo de camarões, ostras e mariscos. Pagamos a conta e saímos no mesmo momento em que o garçom trazia o créme brulèe.

Quando o séquito das estrelas de cinema ou veranistas em busca do luxo ocupam todos os quartos disponíveis na cidade e apressam os garçons com seus pedidos de saladas, nem mesmo lugares como esse resistem: o clima de afetação faz o estilo de vida tranquilo e o espírito bonachão cannois bater em retirada – talvez para passar férias em algum outro lugar.

Foto: Flickr/Juliet_earth

DE MONASTÉRIO À PRAIA

Fundada pelos romanos, esquecida no tempo, redescoberta como vila de pescadores, então promovida ao posto de estância balneária em 1915 por um decreto ministerial graças aos inegáveis atrativos de sua paisagem e entorno, a cidade de Cannes se tornou o endereço cinematográfico que é há apenas 67 anos, com a criação do festival que leva o seu nome. O Vieux Port (porto velho), instalado no centro, é uma espécie de fronteira entre a cidade antiga, chamada Suquet, e a Croisette, a ala luxuosa e mais nova, à sua esquerda, onde enfileiram-se os grandes hotéis (ou palácios, como os locais gostam de nomear os cinco estrelas).

Hoje transformado em uma grande marina, o porto ainda guarda seu charme. Caminhar por entre os píeres que conduzem às embarcações é um passeio comum por ali. E realmente agradável. No alto do Mont-Chevalier, o Suquet preserva os vestígios de sua fundação romana. O forte foi convertido em monastério no ano 1000. A presença dos monges, aliás, foi o que impulsionou o crescimento da região. Em 1447, a aldeia transformou-se em município e, cem anos depois, ganhou sua catedral. Construída em estilo gótico, ela oferece um excelente ponto de observação. Ladeiras povoadas por comércios de comida, restaurantes e lojas de bugigangas abaixo vão de encontro ao cais Saint-Pierre, a parte mais urbanizada e badalada do porto velho.

Foto: Flickr/Juliet_earth

QUANDO IR

Se badalação é tudo o que você quer, melhor seguir para a cidade durante os meses do verão europeu, de junho a agosto, ou quando o circo está montado para os maiores eventos mundiais do cinema e da publicidade (nos meses de maio e junho). Se, ao contrário, o seu foco é a natureza e a exuberância humana local, o período entre os meses de novembro a março é o ideal para desbravar as ilhas Sainte-Marguerite e Saint-Honorat (foto), há seis quilômetros do velho porto, e os endereços históricos da cidade, incluindo o Suquet. Sem a multidão de turistas, não só os monumentos ficam mais acessíveis como o humor dos moradores também.

Foto: Studio Harcourt Paris

Foto: Studio Harcourt Paris

SIMPLESMENTE MAJESTOSO

O Hotel Majestic Barrière é um entre os seis hotéis cinco estrelas da cidade que povoam o imaginário nacional. Se glamour é o que você espera ver em Cannes, é diretamente para lá que deve seguir. Inaugurado em 1926, destaca-se neste seleto grupo pela vista: das janelas de boa parte de seus 350 quartos, é possível ver o Palais du Festival e os 24 degraus forrados com o espesso tapete vermelho por onde circulam as estrelas do cinema atual. Nas paredes dos corredores e por todos os lados, o registro da passagem delas pelo hotel é exibido e confirmado por fotos em preto e branco.

No sétimo andar, imperam as duas grandes pérolas do lugar: a suíte Majestic, com 650 m, incluindo um terraço privativo de 150 m onde se pode nadar em uma piscina de 11 metros de comprimento com borda infinita; e a Christian Dior (450 m), que leva esse nome por conta de sua decoração fashionista, assinada pela maison e transformada em espaço de eventos e encontros de estrelas durante os agitados dias do festival.

Mordomos e cozinheiros atendem as duas coberturas dia e noite. Não é de estranhar, portanto, que tantas estrelas, príncipes e magnatas árabes e russos fiquem por ali. O preço, claro, também justifica a presença dessa elite mundial: as diárias de cada uma delas superam facilmente a cifra de 30 mil euros.

*Matéria publicada originalmente por Fernanda Peruzzo, de Cannes, na edição 160 da revista TOPVIEW.

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