O retorno da erva-mate
Em abril de 2016, três bares e seis drinques depois, os jurados do World Class, principal campeonato de bartenders no Brasil, foram surpreendidos por um último coquetel, à base de erva-mate e uísque. A criação de Rogério Coelho Barroso parecia se encaixar na valorização de ingredientes locais, então em voga na gastronomia curitibana. Se revelou, porém, um projeto muito mais ambicioso: o Tapii’Tea, bar cuja carta de coquetéis tem no mate um elemento onipresente.
O inusitado da erva poderia se perder na monotonia do ingrediente repetido, mas Rabbit, como é conhecido, prova justamente a riqueza do “ouro verde”: o chá pode vir maturado em barril de madeiras brasileiras e adoçado com licor de pinhão, servido com espumante rosé e perfumado com mimosa, marcado por especiarias e combinado com pisco ou aguardente…
Além da possibilidade de combinações, trata-se de um ingrediente rico por si só (pense no café especial), com características que mudam segundo as condições climáticas, o terreno onde é cultivado, o beneficiamento, a espécie, sem falar em tempo e temperatura de infusão.
Porém, ao mesmo tempo em que se mostra encantado, Rabbit não esconde a indignação quanto a sua linha de pesquisa ser exceção, até mesmo considerada “inovadora”, num estado em que a erva-mate tem importância histórica, econômica e cultural, e que é o maior produtor no Brasil, responsável por mais de 50% das 935 mil toneladas produzidas, segundo o IBGE, em 2015. “Você fala em chai, na hora a pessoa se lembra da Índia e que já tomou. Mas ela não sabe por que não bebe chá mate, não sabe nada sobre ele”, pondera. “A gente tem o melhor chá do mundo, só que não sabe disso.”
Rabbit fez uma prova-cega com a reportagem, e o resultado foi mesmo surpreendente. Em comparação ao chá preto, é uma bebida mais macia e adocicada (propriedades que se perdem no chá de “saquinho”), e cujo sabor, cor e aroma possuem uma nuance impressionante, variando até segundo a cidade proveniente.
O nome da empreitada (uma fusão de “Tapii’ti”, que significa coelho em tupi, e “tea”, chá) dá pista para os objetivos do bartender, neto de indígenas que está resgatando e valorizando suas origens – e pretende fazer o mesmo com o mate, erva considerada sagrada para seus antepassados e consumida por eles desde que se há registro.
Já em 2015 Rabbit havia criado três drinques com o elemento, mas se frustrou com a reação (ou falta de) do público. “As pessoas não achavam muito interessante”, lembra. “Mas eu levava à mesa como cortesia, e o garçom voltava pedindo mais. Eu percebi que quando bebiam, as pessoas gostavam: não havia nada errado, faltava experimentar.”
Giuliano Hahn, do Armazém Santo Antonio, restaurante que dá um toque contemporâneo à culinária local e onde o bartender instalou seu Tapii’Tea, aderiu recentemente à planta, sobretudo em molhos e finalizações. “É algo inusitado, ninguém usa erva-mate”, observa o chef. “Mas é um ingrediente riquíssimo. Você faz um milhão de coisas com a batata – a mesma coisa com a erva-mate”, garante, destacando sua propriedade de conferir aroma, sabor e cor.
O ingrediente também foi estrela de todo um menu elaborado pelo coletivo Slow Food Coré Etuba, em 2016. “O interessante é que não existe regra definida”, comenta Gladson Rafael, chef e membro do coletivo. Como tempero para o azeite, vinagrete para o carpaccio, sabor na carne maturada ou massa artesanal, ele ensina que as opções são várias.
Volta, então, a questão: por que essas iniciativas são exceções? “Acho que a gente se acostumou tanto com o uso como chá e chimarrão que não pensa como ingrediente na gastronomia”, arrisca a chef Rosane Radecki, que ainda não utiliza o ingrediente no seu Girassol, com argumentos semelhantes aos de outros cozinheiros consultados pela Top View. Para Rosane, algumas dificuldades na sua adoção são trabalhá-la de forma que não domine totalmente o prato, já que a erva é bastante marcante, e o tempo necessário para testar receitas, visto que não há muitos modelos.
E enquanto o fator cultural é fundamental para a manutenção do hábito de consumir chimarrão, sobretudo no Rio Grande do Sul, ao mesmo tempo, contribui para limitar os usos da erva-mate. Essa é a teoria de Ives Goulart, técnico da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, vinculada ao Ministério da Agricultura) que estuda sua produção. “É uma barreira para o consumo da erva fora do sul do Brasil”, comenta, chamando a atenção para o volume da colheita no país: 90% são destinados à cuia e, do restante, cerca de 80% vão para a produção de chá.
“Sobra uma fatia muito pequena para ser usada de outras formas, e isso é uma situação histórica”, explica Ives, em referência aos diversos outros usos que a matéria-prima pode ter: cosméticos, energéticos e outras bebidas, produtos de limpeza e fármacos, devido à composição nutricional e propriedades benéficas ao organismo. Nesse momento, inclusive, do outro lado do mundo, alguém deve estar bebendo Latin Biorythms, versão da Coca-Cola para o chá mate que invadiu o Japão.