ESTILO

La dolce vita

por Fernanda Peruzzo, de Florença

É verdade que com seus 10 milhões de turistas anuais, Florença não é nenhum paraíso inédito ou um destino a ser descoberto. Com pouco mais de 100 km2 de área (Curitiba, por exemplo, é três vezes maior) e 370 mil habitantes, a cidade reúne simplesmente a metade de todas as obras de arte italianas. Boa parte delas representada pelo patrimônio arquitetônico e pelas pinturas e esculturas que se espalham pelos principais palazzos, galerias e igrejas da cidade. Um legado que faz do seu centro urbano uma espécie de museu a céu aberto tão disputado quanto o Louvre.

Por onde quer que se ande, multidões de visitantes tomam conta de suas vielas, fotografando tudo que encontram pela frente sem prestar muita atenção em nada. Ainda assim, a terra de Dante, Michelangelo, Giotto e tantos outros gênios reserva surpresas. Ruas que, de passarelas dos últimos modelos de câmeras e filmadoras, transformam-se em refúgios boêmios. Praças pitorescas metamorfoseadas ao cair da noite no mais perfeito retrato do italian way of life, onde os moradores se reúnem para degustar pratos de massa, sorvetes ou simplesmente sorver uma cervejinha gelada sem aparecer como figurantes na foto de ninguém. E até mesmo bairros inteiros nos quais os guias parecem jamais ter colocado os pés.

Aluguei um apartamento num desses redutos. Ironicamente instalado a poucas quadras da ferroviária, o bairro San Lorenzo é pouco conhecido pelos turistas. Ali, encontra-se o maior mercado fechado da cidade. Parecido com o Mercadão de São Paulo, o Mercato di San Lorenzo reúne estandes de frutas e verduras, açougues, vendedores de queijos e frios, bebidas e outras guloseimas. Produtos toscanos, fabricados nas pequenas vilas que circundam a cidade. Algumas das lojas funcionam também como lanchonetes, onde se pode escolher os ingredientes  em exposição para rechear sanduíches no pão italiano. Tudo por menos de 5 euros.

ROTA BOÊMIA
Às sombras da torre de Brunelleschi se estende a Via dei Neri, uma rua tortuosa e repleta de restaurantes, onde se encontram pequenos oásis para quem não dispensa uns bons nacos de comida. Atraída pela promessa do melhor sorvete da cidade, acabei encontrando o melhor panino e um curioso circuito de bares secretos, onde só é bem-vindo quem conhece os códigos de entrada.

Instalado em uma esquina sem grandes atrações, a sanduicheria All’Antico Vinaio é a versão fiorentina do nosso boteco. Balcão, azulejos nas paredes, banquetas, comida e bebida baratas, o lugar é o ponto de encontro dos jovens habitantes da cidade. Seu panino feito de focaccia recheada com prosciutto, alcachofras, berinjela marinada, burrata (espécie de muçarela, só que mais leve) e tomates é, de longe, o melhor sanduíche que já comi na vida. E, eu garanto a vocês, foram vários. Os vinhos da Toscana, Chiantis e Brunellos, dois euros a taça, ficam em uma bacia com gelo à disposição dos clientes, que são os responsáveis por abastecer seus copos e dizer quanto consumiram.

Poucos passos à frente, uma sequência de bares abre suas portas ao cair da noite. São pubs que vendem cervejas italianas em pints (medida inglesa correspondente a 550 ml), tocam rock americano, mas onde os clientes, a maioria locais, parecem se divertir com a ideia de viverem em uma cidade tão turística. Piada recorrente entre eles é dizer que não existem fiorentinos em Florença, mesmo sendo todos os nossos interlocutores benditos frutos dessa cidade. Uma noite (sim, viramos habitués), fomos conduzidos a um dos tesouros boêmios da área. A boate, sem placa de identificação, apenas uma porta de metal guardada por dois porteiros truculentos que as abrem mediante senha, é o exemplo perfeito do senso de preservação antiturística que toma conta de uma parte dos habitantes dali. E a casa não é a única.

O outro lado do rio
Aberta e luminosa, a Piazza di Santo Spirito é o oposto deste cenário. Lugar para ver e ser visto, ela é endereço certo dos fashionistas e o epicentro da Florença descolada. Conhecida como Oltrarno, literalmente a região do outro lado do rio Arno, todo esse lado de lá da Catedral Duomo concentra uma dezena de bares, cafés e restaurantes com decoração caprichada e atmosfera cool. Caffe Ricchi, Cabiria Bar e Volume são os mais badalados. Já o Gusto Panino e o Borgo Antico são opções certeiras para quem prefere degustar as taças de vinho acompanhadas de uma massa.

Para quem segue as passadas da moda, o Palazzo Pitti e seu acervo de obras renascentistas é outro ponto de referência. Por sediar a semana de moda masculina italiana, a área em torno do palácio reúne várias lojas e ateliês de sapateiros. Ali, eles trabalham criando pares exclusivos e sob medida para os homens de bom gosto (e bolso cheio). Stefano Bemer é um dos estúdios de criação mais respeitados e dono de uma agenda de clientes que inclui estrelas de Hollywood, como Daniel Day-Lewis e Andy Garcia.

Na Gelateria dei Neri, alguns dos melhores sorvetes da cidade. Foto: Bananabuzzbomb.com
Na Gelateria dei Neri, alguns dos melhores sorvetes da cidade. Foto: Bananabuzzbomb.com

Gastrocool
No número 22 da Via dei Neri, a Gelateria dei Neri faz jus à fama de melhor sorvete da cidade. Seus sorvetes cremosos somam 56 sabores. Alguns exóticos, como nozes com gorgonzola. Outros sabores tradicionais, como stracciatella (flocos) e ciocolatto fondente (chocolate meio-amargo).

Mas à parte esta instituição nacional que é o sorvete, a gastronomia de Florença é marcada por sua culinária densa, no sentido mais pesado do termo. Estômago, tripas, carne de caça e bisteca compõem o quarteto de ouro das mesas fiorentinas.

O primeiro é ingrediente do mais típico prato local, o lampredotto. Preparado com feijões brancos e cebolas caramelizadas, ele é um prato da chamada cozinha de casa, aquela prepara pela mamma e, por isso, é encontrado em poucos lugares. Neste quesito, a osteria Tripperia Il Magazzino, na Piazza della Passera, 2-3, é uma das maiores especialistas.

A buchada feita com tripas também é bastante apreciada por lá.A receita, parecida com a da nossa buchada, é mais perfumada e leva uma boa dose de vinho local. A carne de coelho aparece triturada em uma versão mais potente do molho bolonhesa, enquanto a bisteca grelhada, opção número um dos restaurantes turísticos, ganha temperos suaves e sempre chega suculenta à mesa, pouco importando a aparência da casa e o preço marcado no cardápio.

Opção menos radical, o gnudi também só é conhecido (e consumido) ali. Essa massa sem massa é na verdade uma espécie de bolinho de espinafre e parmesão empanado na farinha de trigo e cozido em água fervente como se fosse um nhoque. Servido com molho vermelho carregado no alho, cada bocada dele faz até o mais carnívoro comensal se converter a uma dieta vegetariana.

 

 

SÍNDROME DO BELO
Antes de partir rumo a Florença, contate seu psicólogo e agende algumas sessões. Você vai precisar. Diferente de todas as cidades italianas em que a visão de suas paisagens urbanas deslumbrantes são transformadas em memórias saudosas, a menor lembrança de Florença provoca calafrios que não estão relacionados a medo ou desprazer. São calafrios existenciais. Filosóficos mesmo.

É que a beleza da cidade, sua paisagem natural emoldurada pelo seu conjunto arquitetônico único, demora a ser compreendida pela nossa razão. Pior, coloca-a em parafuso, provocando uma desorientação espaço-temporal que costuma ser seguida por sintomas como vertigem, calor, náuseas e em alguns casos, choro compulsivo. Sintomas semelhantes a uma crise de pânico, mas que a ciência nomeia como Síndrome de Stendhal, uma espécie de surto nervoso, oficialmente reconhecida pela medicina em 1979 e cuja origem está ligada ao mal-estar sentido e descrito pelo escritor francês após uma viagem à cidade.

O impacto da história somado ao excesso de obras da genialidade humana são os responsáveis. Tecnicamente, eles oferecem uma experiência do sentimento de sublime, um conceito filosófico pensado pelo alemão Immanuel Kant e que pode ser explicado como aquele momento em que a nossa razão tenta, mas não consegue abarcar por inteiro o objeto da experiência, ou porque ele é muito vasto ou muito potente (ou ambas as coisas), despertando um enorme mal-estar.

 

SERVIÇO
Tripperia Il Magazzino: Piazza della Passera, 2-3
Caffe Ricchi: Piazza di Santo Spirito, 9
Cabiria Bar: Piazza di Santo Spirito, 4
Volume: Piazza di Santo Spirito, 5
Gusto Panino: Via de’ Michelozzi, 13
Borgo Antico: Piazza di Santo Spirito, 6
Gelateria dei Neri: Via dei Neri, 22
All’Antico Vinaio: Via dei Neri, 74
Stefano Bemer: Via di Camaldoli, 10

 

* Matéria publicada originalmente em 10 de agosto de 2013

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