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Iguarias da nossa terra

por Érika Busani  fotos Walter Morgenthaler

 

Pergunte a qualquer chef de cozinha e a resposta há de ser a mesma: um dos principais segredos da boa comida são os ingredientes frescos. Para obtê-los, não existe melhor forma do que apostar na cadeia de produção mais próxima possível. Esse é um dos principais motivos da atual valorização dos produtos regionais na culinária. A tendência gastronômica tem atraído tantos adeptos que quem a segue já ganhou até uma definição específica: locavore, palavra que designa uma pessoa consciente ecologicamente e interessada em alimentos produzidos na região.

A chef Manu Buffara, do MB Brasserie e do Restaurante Manu, é o maior exemplo de locavore em Curitiba. Manu tem um trabalho intenso de pesquisa de novos ingredientes paranaenses. Nascida em Maringá, filha de um agrônomo e agricultor, há um ano e meio ela decidiu ir atrás de produtos locais específicos para servir em seu restaurante. “Queríamos descobrir o melhor tomate, a melhor carne, o melhor porco… Além disso, no Ceasa você não consegue uma cenoura de 2 cm ou um rabanete bem pequeno”, conta, exemplificando produtos que gostaria de encontrar.

A solução? Estabelecer parcerias com pequenos produtores para receber exatamente o que queria. Claro que levou tempo e muita saliva. Hoje são diversos parceiros, em locais como Ilha Rasa e Itaqui (litoral) e Bocaiúva do Sul e Adrianópolis (região metropolitana) que produzem algumas mercadorias exclusivas para o Manu. O cordeiro de leite é um deles. “O mais importante é a troca com o agricultor. A gente leva conhecimento para eles e traz muito também”, afirma a chef, que ainda emenda: “É muito legal esse conceito de saber de onde vêm os produtos, prezo muito essa parte.”

Duas vezes por semana, Manu vai a Paranaguá fazer compras diretamente com os pescadores. Nessa busca, ela descobriu itens nativos pouco aproveitados pela alta gastronomia, como a batata fissura e frutas como o cará amarelo (veja abaixo). Um dos mais festejados, no entanto, é o mel nativo que encontrou no litoral. Produzido por abelhas nativas sem ferrão, é uma iguaria que pode ser comparada às trufas por sua raridade. “A abelha produz superpouco, tem um aroma delicioso, é maravilhoso”, diz Manu (veja abaixo).

 

Qualidade
A chef Joy Perine, do restaurante curitibano Zea Maïs, também apoia o uso dos ingredientes locais. “Todos os chefs se voltaram para pensar nisso. É prático e sustentável. E, quanto mais próximo, maior qualidade vai ter o produto”, afirma. Ela costuma usar farinha de mandioca de Morretes, pupunha, abóbora e cevadinha produzidas na região. Para aproveitar ainda mais esses ingredientes regionais, decidiu mudar o jeito de olhar para determinados itens. “Eu uso o cominho cultivado próximo daqui, que geralmente vai só no barreado, em outros pratos.”

 

Cardápio de época
A alguns quilômetros de Curitiba, em Antonina, o casal de chefs André e Gleisi Furlaneto também tem feito um interessante trabalho com produtos regionais. Há nove anos, quando chegou à cidade, André iniciou sua pesquisa sobre o assunto. Delimitou um raio de 30 quilômetros, dentro dos quais foi visitar os moradores. Começou a comer em suas casas e a conhecer seus hábitos de alimentação, disposto a descobrir que produtos locais não podiam faltar em suas mesas. Há três anos, o trabalho rendeu frutos: o casal abriu a Cantina Casa Verde, restaurante que tem uma proposta singular: “Tudo que é servido é daqui, até o arroz. Menos a carne de boi”, orgulha-se.

O restaurante não tem cardápio fixo. Nem poderia, já que o respeito às fases dos alimentos leva à variedade. “Tenho um cronograma de frutas que vão entrando a cada mês. A região é muito rica”, explica. Para ele, a comida regional tem muito a ver com o orgulho de quem mora no local. “A gente é um povo, tem uma maneira de falar, de vestir, de comer. A comida ajuda a contar a história da região”, diz. “Para mim, o produto local é uma maneira de estar inserido na comunidade”, completa o chef.

“Não tem como essa tendência dar errado”, endossa a chef Joy. Ao analisar os benefícios para todas as partes envolvidas, parece que não tem mesmo: para os produtores, a venda de produtos locais é a garantia de uma renda a mais. Para o meio ambiente, um alívio, pois a produção é feita de maneira sustentável, com itens naturais da região, e não precisa ser transportada para longe. Para o consumidor, é uma oportunidade de experimentar novos sabores. Trata-se de uma iniciativa rara em que todo mundo sai ganhando.

 

INGREDIENTES PARANAENSES

Natural do Norte, o maná-cubiu se adaptou facilmente ao litoral paranaense. Foto: Marcelo Elias
Natural do Norte, o maná-cubiu se adaptou facilmente ao litoral paranaense. Foto: Marcelo Elias

Veja quais são os principais produtos regionais que estão sendo utilizados pela chef Manu Buffara:

• Abacaxi rosado: usado in natura, tem um surpreendente sabor salgado.

• Batata fissura: nasce pregada em troncos de árvores. Tem um pouco de acidez e é dura. Usada para fazer farinha.

• Cará amarelo: típico das ilhas do litoral, é a raiz de uma planta que nasce na areia, junto ao manguezal. Tem muita água. No Manu, normalmente é assado.

• Erva-doce nativa: mais forte do que a versão popularmente conhecida, segundo Manu a raiz cheira a Vick Vaporub. A chef costuma servi-la com peixes e frutos do mar.

• Guaiá de pedra: tipo de caranguejo que fica entre as pedras, acima do mangue. Pequeno, Manu usa para fazer caldo.

• Jabuticaba branca: seu gosto é muito parecido ao da jabuticaba preta, mas é mais ácido.

• Maná-cubiu: fruta amazônica que se adaptou muito bem à região de Antonina. De sabor mais ácido, é bastante versátil, sendo usada em preparações doces e salgadas.

• Maracujá nativo: é vermelho, tem pouco suco e muita polpa. Facilmente encontrado em Morretes.

• Ovas de bagre: grandes, parecem bolinhas de gude. Dá para servir puras, fazer picles, farinha ou usar o líquido em marinadas de peixe.

• Pitanga ninja: fruta nativa do litoral, é ácida, mas tem toque de doçura no final. Empresta uma coloração linda a molhos para carne.

• Porrudo: espécie de fruto do mar, é difícil achá-lo. No Manu, é servido cozido com legumes, fatiado em uma salada de abobrinhas.

• Pé de cobra: erva extremamente amarga, mas o amargor não fica na boca. No final, lembra um pouco de especiaria.

 

DOS DEUSES

O mel das abelhas nativas é considerado uma iguaria rara. Foto: Marcelo Elias
O mel das abelhas nativas é considerado uma iguaria rara. Foto: Marcelo Elias


Esqueça tudo o que você sabe sobre mel. Uma das mais recentes “descobertas” em termos de produtos regionais é o mel de abelhas nativas. Algumas características bem peculiares tornam o produto uma iguaria muito rara. Por exemplo: não é a florada da época que determina seu sabor e aroma. Como a pequena colheita é feita apenas uma vez por ano, ao fim do verão, o mel contém o néctar acumulado de diversas floradas. Cada uma das 300 espécies existentes no país produz um mel com características próprias, o que torna o sabor ainda mais raro.

Jataí, tubuna, tujumirim, uruçu, guaraipo, mandaçaia, manduri e borá são algumas das espécies presentes no litoral paranaense e que já estão sendo criadas para extração do mel. Néctar nativo é como está sendo chamado o nobre produto. “Vai ser o meu tartufo. Quando se entender que isso só se tem por aqui, vai ter gente do mundo inteiro querendo comer”, prevê o chef André Furlaneto, da Cantina Casa Verde. “O néctar tem o gosto da Mata Atlântica”, completa.

 

Alex Atala: porta-voz da regionalidade
Proprietário do paulistano D.O.M., sexto melhor restaurante do mundo e o melhor da América do Sul conforme a lista World’s 50 Best Restaurants de 2013, o chef brasileiro Alex Atala é um entusiasta dos produtos regionais brasileiros e o maior responsável por divulgar nossas riquezas gastronômicas ao mundo.

Foto: divulgação
Foto: divulgação

Para ajudar os brasileiros na tarefa de identificar os produtos locais em um país tão grande, o chef lançou os livros Alex Atala – Por uma Gastronomia Brasileira (2003); Com Unhas, Dentes e Cuca – Prática Culinária e Papo Cabeça ao Alcance de Todos (2008), com o sociólogo Carlos Alberto Dória; e Escoffianas Brasileiras (2008), com a jornalista Carolina Chagas. Sua mais recente publicação, D.O.M. – Redescobrindo Ingredientes Brasileiros, vem sendo apontada como um dos principais lançamentos de livros de gastronomia de 2013.

Em abril do ano passado, Atala ainda lançou, com outros nove profissionais de diferentes áreas, o Instituto Atá, que vai trabalhar em projetos para a valorização dos produtores, na pesquisa de novos ingredientes e na regulamentação dos que já são usados informalmente. Nesta semana, o Atá lançou uma campanha para arrecadar assinaturas com o objetivo de pressionar o Congresso a aprovar um projeto que inclui a gastronomia na Lei Rouanet.

O chef costuma viajar pelos quatro cantos do país – com uma predileção pela Amazônia – para descobrir novas iguarias. No cardápio de seu premiado restaurante, nada de caviar ou trufas.

O que o levou a tamanho sucesso foram ingredientes genuinamente brasileiros como o tucupi, o jambu, a pimenta-de-cheiro, a pupunha, a carne de queixada (uma espécie de javali nativo das Américas) e a priprioca, raiz amazônica que antes era usada apenas na indústria de cosméticos. Atraído pela planta, Atala pesquisou e descobriu seu uso culinário: a raiz dá um sabor exótico a doces.

 

* Matéria originalmente publicada em março de 2014

 

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