As cores de Gonçalo Ivo
O sol começa a se impor sobre a manhã quando Gonçalo Ivo chega ao Museu Oscar Niemeyer. Ele traz tranquilidade, disposição e bom humor – e greenery. Essa que foi eleita a “cor do ano”, presente nos tapetes vermelhos e revistas de moda, cobre os óculos do pintor, os que veste e o par pendurado ao redor do pescoço. Mas Gonçalo, reconhecido como grande colorista, não está ao corrente da tendência e se limita a dizer: “Bonito, né?”.
Mais de 100 obras, representantes da produção recente do pintor carioca, estão em exibição no MON (até 12/3), entre enormes telas hipnotizantes, objetos que diriam esculturas mas já chamaram de pinturas no espaço, e, ao final, dezenas de guaches cuja força surpreende mesmo após o contato com esses quadros gigantes. Gonçalo também está em Curitiba para o lançamento do livro “Métrica da cor” (Editora Contracapa), que reúne uma entrevista com o artista, imagens e outros registros de seu percurso, nesta quarta-feira (15), às 18h, no miniauditório do museu.
O interesse pelo belo, a reverência à infinidade da cor e à herança pictórica, a contemplação, as possibilidades da pintura são elementos importantes da criação do artista, que nasceu em 1958 e cresceu em ambiente culturalmente rico, visitando ateliês de nomes como Iberê Camargo. Tais características estão presentes na exposição “A pele da pintura”, bem como o diálogo com o público: “Tem gente que não conhece nada de arte e vai pela cor, a sensibilidade é tocada pelas cores”, comenta Gonçalo, cujo início de carreira foi marcado pela “incompatibilidade” com a produção de seus contemporâneos.
“Isso é a força da cor, ela salta de uma forma muito intensa e com uma harmonia extraordinária”, disse em outra ocasião o galerista Waldir Simões de Assis, sobre o trabalho do carioca que vive entre Teresópolis, Paris e Madrid. “[As obras] vão tomando vida própria, você começa a descobrir coisas e gostar.”
Em momentos, a obra do pintor pode soar convencional, desconectada da atualidade e facilmente digerível. Em primeiro lugar, Gonçalo lembra que, afinal, não haveria nada de errado com isso. Em paz, ele coloca questionamentos sobre o limite da pintura, sobre o mundo contemporâneo – mas sem se preocupar com os greenerys da vida.
A TOP VIEW esteve com Gonçalo Ivo em duas ocasiões, em 2015 e em fevereiro de 2017, e reproduz abaixo os principais trechos das conversas sobre sua obra.
Você pensava suas obras, principalmente as maiores, como espaços de contemplação. Era uma das tuas proposições para o espectador. Ainda é essa a relação que você pensa?
Continua dentro dessa perspectiva… O [Henri] Matisse costumava dizer mais ou menos assim: “Dois quilos de azul é mais azul do que um quilo”. Quer dizer, tem uma coisa do formato, do tamanho, que envolve o espectador, reage com ele. Principalmente nas pinturas grandes, essa coisa física entra no psíquico. É completamente diferente você estar numa praia e crescer aquela onda gigante na sua frente ou estar diante de uma sequoia ou de uma pequena flor. A flor chama para perto, e a onda ou a grande sequoia te transporta para outro estado de pensamento. (…) Então é um trabalho que se afasta do mundo contemporâneo, porque esse mundo é muito rápido, muito pouco reflexivo. A quantidade de cortes e planos que tem num videoclipe, por exemplo, é enorme. Aí, quando você vê um filme do Fellini, do Tarkovski, do Hitchcock, não tem corte.
Alguns de seus pontos de partida são paisagens, alguns interesses como religião, África, música. Como questões contemporâneas entram na sua obra, se é que entram, se é que você tem essa preocupação?
Não tenho, as minhas preocupações são muito, hoje em dia, mais existenciais e éticas. A gente está vivendo num mundo, quando você toma consciência dele, é um mundo muito complexo. Então como se posicionar como artista e como homem diante das coisas? Fazendo o seu trabalho. Eu acho que aqui, nessas obras, o mundo contemporâneo está completamente presente, com essa indagação sobre a existência, sobre a morte, a perenidade… Agora, te digo francamente, sou um artista muito mais ligado à contemplação, a uma poética que eu diria que é da lentidão (…) Eu acho que o mundo contemporâneo está aqui, mas de uma maneira menos evidente… Não acho meu trabalho, do ponto de vista político, alienado. Tem gente que faz arte explicitamente política.
Não te agrada esse tipo de trabalho?
Quando é boa, toda arte me agrada, sabia? (risos) Geralmente, arte feita nos anos 1960, a arte pop brasileira, com raras exceções, é muito ruim. Primeiro que é uma cópia da arte americana… E sem a gente ter vivido a revolução industrial que eles viveram e tal.
A religião é um tema recorrente…
Eu tenho uma relação forte com a espiritualidade. A cruz, por exemplo, aparece no meu trabalho desde 1982… Quer dizer, no fundo, o trabalho pode ter ficado talvez mais refinado do ponto de vista da pintura, o que é natural, mas as questões são as mesmas, ou quase as mesmas. As admirações são mais ou menos as mesmas também, de dez ou doze anos atrás, quando eu comecei a pensar profissionalmente a pintura. A palavra profissão, hoje em dia, tem um caráter muito utilitário. Mesmo no século 14, os monges copistas, isso era uma profissão – mas era uma profissão de fé. É nesse sentido que eu digo que abracei a profissão da pintura. É diferente – nada contra – de um pianista de estúdio…
Não se torna repetitivo, não cansam esses símbolos e temas?
Eles se regeneram. O trabalho vai mudando, vai ganhando outros caminhos. Tem uma certa ambiguidade (…) O trabalho muda, se enriquece com a minha vivência, com leituras…
No caso do mar de Hydra?
Me fascinou uma espécie de colorido que tem no azul do mar da Grécia. Uma gama de azuis tão impressionante. Eu ficava pensando: “Meu Deus, como é que eu vou reproduzir isso? Como vou pegar isso pra mim de forma poética?”
Conseguiu?
Não sei, não sei. [Já há sete ou oito comentários a respeito do tema.] São exercícios. Se você fizer um contraponto com a música, na obra de Bach, por exemplo, tem exercícios que ele fazia para a mulher dele ou a própria arte da fuga, um texto musical que são variações. Acho que toda arte é assim: um pouco revisitação, recriação, é especulação em cima de alguma coisa que você tem e que vai te rodando como se fosse um cão farejador. Você vai se nutrindo disso e vai criando.
E como a paisagem se transforma em pintura abstrata?
Decantação. (…) Isso serve para relativizar um pouco o ofício da arte, a gente está falando sobre o imponderável. Acho que todas as manifestações de arte são imponderáveis, não é físico, não é um pensamento racional, econômico, entendeu? O pensamento artístico tem essa aura nebulosa contornável. Daí vem a riqueza da arte, a necessidade da arte é uma associação de N opiniões, entendimentos.
Você costuma esgotar alguns modelos de pintura?
Acho que eu me alimento do meu próprio trabalho. Sou como as serpentes: eu troco de pele, mas continuo serpente. (risos) Às vezes os trabalhos mudam um pouquinho, e um puxa o outro… Braque, que é uma espécie de guru para mim, é um pensador, um filósofo da pintura, dizia duas coisas fundamentais em arte – e em vida também –: construo minhas pinturas como quem constrói um edifício: dos alicerces para cima. E a minha pintura é mais ou menos isso. Os alicerces a que ele se referia são os estudos, e depois as camadas são milhares… Outra coisa que ele dizia, às vezes chego ao estúdio e não tenho nada na cabeça, pego um quadro meu, antigo, e começo a copiar. E a partir desse exercício, a obra começa a se transformar.
Por que a série das árvores não entraram nessa exposição?
Eu não quis que entrassem. Porque elas têm outro contexto, talvez mais ligado ao romantismo… Eu não faço mais, há muitos e muitos anos. A última, acho que fiz em 2002, 2003.
Ainda gosta dessa série?
Eu gosto. Ela foi muito controversa, porque foi uma exposição no Museu de Arte Moderna, e quando o público amou, mas a crítica nem tanto. Porque a crítica brasileira às vezes demora a entender o processo criativo dos aristas. Alguns críticos, né? O Luiz Camillo Osorio, que então era crítico de O Globo, cotou a exposição como uma das três melhores do Rio na época, com a do Hélio Oiticica e da Lygia Clark. Isso foi muito engraçado. Aí senti que alguns críticos e artistas não entenderam a liberdade que eu me permito, de fazer aquilo que eu quero em pintura.
Não gostaram porque você foi para o figurativo?
É, agora você vê, eu sou mais velho e a geração que veio atrás de mim e os jovens pintores são todos figurativos.
Por volta nos anos 1980, 1990 você do Brasil porque seu trabalho não se encaixava em meio à produção artística corrente e à crítica. Que hostilidade era essa?
É uma hostilidade velada, entendeu? Não ser convidado para os museus, para as curadorias… O que não acontece mais hoje. No fundo, eu sou um sobrevivente de uma história que é de equívocos, de maneiras torpes de olhar um trabalho. Quando cheguei na Europa, eu tinha um marchand importante em Paris, que colocou meu trabalho do lado de Picasso e tal. Em Paris, eu era visto como um artista culto, falando a língua local.
Sem esse reconhecimento na Europa acha que teria tido reconhecimento no Brasil?
Não. Nunca, nunca. Tom Jobim é que dizia: “No Brasil, sucesso é ofensa pessoal”. (risos)
E por que existia essa hostilidade velada em relação ao teu trabalho?
Acho que é uma coisa geracional, inclusive. A geração que me precede é de artistas conceituais, basicamente. A pintura, que ficou muito em voga no começo dos anos 1980, logo foi substituída como produto comercial por uma série de outras coisas, como vídeo, fotografia, instalação. E a pintura não entrava – não só a minha, mas de vários pintores.
Foi uma crise da pintura?
Não, foi um fato gerado por N causas. Mas isso no mundo todo. O Brasil não tem o privilégio da ignorância. Só que quando você está andando pela Europa, pelos Estados Unidos, o ambiente é tão mais largo do que o simples eixo Rio-São Paulo, que era onde as coisas aconteciam. Eu nunca fui muito enxergado dentro da minha geração. Fui mais enxergado como um artista moderno… o que também não deixa de ser um equívoco, porque eu acho que eu sou é contemporâneo. Eu sou um homem do meu tempo. E esse fato não quer dizer que eu tenha que pintar como Keith Hering, entendeu? Ou como Basquiat.
Mas você sempre teve essa consciência?
Eu estou acostumado a apanhar, então não há problema em relação a isso.
Mesmo no início de carreira?
Mesmo. Mas tem as compensações, porque no meu início de carreira eu fui logo aceito comercialmente. Eu vivo do meu trabalho. Hoje não dou mais aula, já fui professor, mas há trinta e poucos anos que eu me dedico à pintura. Primeiro que eu não queria morar no Rio, fui morar na roça, onde é meu ateliê. Casei com a Denise, ela é bióloga, estava escrevendo a tese de mestrado, e a gente foi morar em Teresópolis. [Hoje vive entre Madrid, Paris e Teresópolis.]
Ainda sobre a crítica, você comentou que uma vez um crítico disse sobre seu trabalho: “Ele sabe pintar, mas não há nada de novo”.
Ele falou o seguinte, é mais ou menos isso: “Ele pinta muito bem, mas não está aberto a outros saberes”. Que outros saberes seriam esses? Saberes conceituais… É uma maneira de ver, e cada um vê de uma maneira.
Concorda que não há nada de novo no seu trabalho?
Eu acho que há muita coisa nova e muita coisa que é herança pictórica de tudo o que veio antes e me precedeu. Eu, no fundo, me sinto um pintor com um pé no século 13 e outro no século 21. Há na minha pintura uma metapintura, quer dizer, uma crítica e uma espécie de comentário do que me precedeu e uma reinvenção do que também me precedeu. Em arte, o tempo é quem resolve as coisas. Você produz, morre, sua obra fica e aí é reavaliada.
Mas hoje você é uma unanimidade…
Pode ser, pode ser…
Não é cansativo?
Não sei se sou unanimidade. Acho que faço um trabalho honesto e que espelha a minha personalidade. Eu sou isso que está aqui. E isso que está aqui não é construído para o outro, é uma projeção do meu ego, do meu desejo, da minha inquietude com relação às coisas, da minha fascinação por arte africana, por exemplo… Mas acho que a função da crítica é também errar (risos).
E a de vocês, artistas, também…
Exatamente (risos). O próprio impressionismo, quando ele apareceu, foi taxado pejorativamente. O meu trabalho sempre teve essa cara mais construída, mais geométrica, essa cara mais da pintura mesmo, a pintura por ela mesmo, esse aveludado, esse cuidado artesanal. E é isso que alguns criticavam: “Ah, mas é muito meticuloso, ele pensa que é um artista dos anos 1950”. Meu trabalho tem uma vinculação mesmo com os anos 1950, com os meus heróis… Mas isso nunca me deixou não gostar do Joseph Beuys. A questão geracional não os deixava ver o quanto de Lygia, o quanto de outros artistas estava impregnado no meu trabalho.
Você escolheu os versos e frases que estão na exposição?
Sim, e é um pouco síntese das últimas exposições que fiz. Todas tinham ou uma epígrafe ou um jogo… Também é um jogo conceitual. A da Marguerite Duras (“A calma do branco. O resto é o tempo”) é sobre essa impregnação, essa oração à neve, à castidade, as possibilidades dos Ns brancos. (…) Mas a questão da cor é a seguinte: a proximidade da cor é inexistente, porque a riqueza e variedade dum colorido é tão grande… Uma cor está dentro de um colorido, sempre. A cor não existe sozinha. Esse vermelho aqui só é esse vermelho porque tem essa barra branca, está nessa madeira, se relaciona com o prego… Ele está sempre dentro de um colorido, e isso me fascina desde criança. Meu pai me deu um joguinho que eram madeirinhas coloridas (de construir casinhas e cidades), era uma maravilha! E eu ficava enlouquecido com aquilo, com a possibilidade dos câmbios, das mudanças. É nesse sentido que o meu trabalho é construtivo, é por aí. E não porque ele é geométrico.
Na exposição que você fez na Galeria Simões de Assis, o Felipe Scovino tinha feito um texto um pouco mais geral sobre a sua obra, falando sobre a corporeidade da cor. E agora ele está tratando da pele da pintura. Queria que você comentasse esse aspecto que ele trouxe.
É uma ideia muito interessante dele, nunca me ocorreu. Ele acha que a pintura que eu executo, a parte física da pintura, tem esse caráter de pele, de ao mesmo tempo cobrir e encobrir, esconder. Realmente, eu não faço uma pintura matérica como o Iberê faz, mas a matéria está ali, você a sente, e até é uma matéria às vezes ilusória, porque você chega perto para olhar, sente uma vibração tátil, mas é ilusório, quer dizer, dada pela pincelada.
Você busca um equilíbrio nas suas telas?
Acho que o senso de harmonia sempre me interessou.
Porque não a desarmonia? Ela pode ser interessante, provocativa…
Acho que a provocação no meu trabalho está em outros cantos. Elas é mais sutil do que evidente. Uma coisa mais… subliminar. O meu trabalho não grita. É mais zen, mais contemplativo mesmo. (…) A ida para a Espanha, há alguns anos, mudou muito a minha cabeça. O negro passou a entrar no meu trabalho de maneira muito forte. O escuro, o profundo, o misterioso… Se eu pego meu trabalho anterior, quase não há pinturas em negro, tons muito profundos…
Por que será?
Acho que tem a ver com luto mesmo. Um amigo meu que escreve sobre meu trabalho acha que o luto apareceu quando minha mãe faleceu, em 2004. Ele acha que foi uma experiência…. forte pra mim. Minha relação com a morte é hoje em dia quase que diária. De vida com a morte. E de entender esse processo… como essa passagem se dá.
Você trabalha pensando os limites e as possibilidades da pintura. Fazendo uma análise sobre seus cerca de 40 anos de trabalho, quais são os limites e as possibilidades da pintura que você aprendeu?
Acho que a pintura, como a música, sempre vai existir. Como nos anos 1960, o próprio Helio Oiticica determinou – ele e mais 200 artistas – a morte da pintura, era só mais um equívoco a respeito dela. A pintura está aqui [aponta para os objetos de mármore, pedra e cruz]. Aí você vai dizer: não, é assemblage… Não, não é. Quando eu calcino um objeto de madeiro, eu estou pensando em pintura, mas de maneira lateral, não obviamente pintura, não é o tempo todo a pintura como a gente está habituado. Se você me perguntasse há 15 anos se eu ia fazer isso, eu falaria que não conheço esse artista. A pintura se renova também, como a serpente que troca a pele e nunca deixa de ser serpente.
E os limites dela?
Aí a gente volta para o fato de ela ser ela mesma o tempo todo. Ela é sempre a mesma coisa, mas é sempre diferente, entendeu?
Não, não entendi… (risos)
O problema da pintura, do esgotamento dela, é quando ela fica completamente repetitiva. Morandi, por exemplo: são sempre aquelas naturezas-mortas… Tem gente que acha aquilo monótono. Mas eu acho que cada uma delas é completamente diferente. Você notou que tem uma barrinha preto ali em cima? Aquilo tem um pensamento por trás. Então, esse é que é o problema da pintura, como da poesia. Fulano faz poesia rimada e metrificada – qual o problema? Por que tem que fazer verso livre? Nada tem que ser nada. Ou tem que ser. Tem é que ser bem feito. Feito com amor, dedicação. Porque eu não conheço arte que seja boa, que não seja boa.
Serviço: Gonçalo Ivo no MON
Lançamento do livro “Métrica da cor”
Quarta-feira (15), às 18 horas, no miniauditório do Museu Oscar Niemeyer. Entrada franca.
(A programação inclui a palestra “A Pintura Ampliada”, com o curador Felipe Scovino, e visita guiada à exposição.)
Sobre o livro
Gonçalo Ivo – Métrica da cor
2017, 16 x 17 cm, 192 p. Português/inglês.
Editora Contra Capa
R$ 75
Exposição A pele da pintura
Em cartaz até 12 de março no Museu Oscar Niemeyer
Visitação de terça-feira a domingo, das 10h às 18h.
Ingressos: R$ 12 e R$ 6 (meia-entrada)