ESTILO

Expedição ao fim do mundo

por Alice Duarte, de Punta Arenas, Chile

Não há maneira mais cênica de explorar os confins do mundo. Da longínqua Punta Arenas, no Chile, até Ushuaia, na Argentina – as últimas cidades ao sul de seus países –, embarco numa das viagens mais incríveis do planeta. A bordo de um cruzeiro de expedição refaço toda a rota entre os oceanos Atlântico e Pacífico no arquipélago desbravado pelo destemido navegador português Fernão de Magalhães no século 16.

Em um fim de tarde entro num dos últimos navios da temporada. Da janela de minha cabine, perco alguns minutos tentando adivinhar as paisagens que verei através dela nos próximos dias de expedição aos lugares mais recônditos e espetaculares da Terra do Fogo. No total, navegaremos 586 milhas náuticas (o equivalente a 1.085 km). A parada final será em Ushuaia, depois de chegarmos ao dramático Cabo Horn, o ponto mais meridional da América do Sul.

Às 20h, depois do coquetel de boas-vindas e da apresentação dos oficiais, da equipe de expedição e das instruções de segurança pelo comandante Enrique Rauch, o navio zarpa. Pouco a pouco, as luzes de Punta Arenas ficam para trás. Adiante, quatro noites a bordo do Stella Australis, navio de fabricação chilena e capacidade para 210 passageiros. Foi construído em 2010 especialmente para esta expedição: possui baixo calado para permitir a navegação através do arquipélago, entre estreitos, fiordes, baías e canais. A maior parte do trajeto será feita em águas protegidas. Somente em dois momentos atravessaremos trechos de mar aberto: na saída do Canal Cockburn e no Cabo Horn.

Durante a travessia, nada de televisão, sinal de internet ou celular. Engana-se quem pensa que sentirá falta disso tudo, pois a programação é intensa. De manhã e à tarde há expedições em terra firme por florestas, morros, ilhas e glaciares. Você permanece dentro do navio somente durante os percursos entre um ponto de interesse e outro, que são pensados para coincidir com os horários de refeição, banho e descanso.

 

POR MAR

 

Toda primavera, Pinguins de Magalhães procuram a ilha para se reproduzirem.
Toda primavera, Pinguins de Magalhães procuram a ilha para se reproduzirem.

 

1º dia: baía de Ainsworth e as ilhotas Tuckers
Amanhecemos ancorados na baía de Ainsworth, cercada ao longe pelo glaciar Marinelli, uma das famosas “línguas geladas” que vem do imenso campo de gelo da Cordilheira Darwin, última manifestação da cordilheira dos Andes. Desembarcamos em botes infláveis Zodiac na grande ilha Tierra del Fuego. Já nos primeiros minutos em terra firme ouvimos sons guturais, que vêm, não do motor do bote, como pensamos inicialmente, mas sim de uma colônia de elefantes marinhos que escolheram essa região para se reproduzir – alguns pesam até 4 toneladas e têm 6 metros de comprimento.

Divididos em grupos, iniciamos uma caminhada de 2h30 por várias camadas de floresta subantártica, onde se encontram espécies de árvores e arbustos únicas no mundo, como lenga, calafate e zarzaparrilla. Ali é possível ver o solo da região ainda em formação. Com o fim da última glaciação, o derretimento das geleiras revelou as rochas da Patagônia, permitindo a colonização da superfície por liquens e musgos, os precursores da flora austral. Sobre essa fina camada verde das rochas, começaram a nascer os primeiros arbustos, que por ainda não terem solo para agarrar-se, eram derrubados ao atingirem certa altura. Com a decomposição das espécies mortas, começou a se formar o substrato vegetal necessário para outras árvores crescerem ali. Com isso, surgiram as condições para a chegada da fauna e posteriormente do homem a essa região.

Na segunda expedição do dia navegamos em botes ao redor das ilhotas Tuckers, onde uma colônia de Pinguins de Magalhães costuma se reproduzir toda primavera. A Patagônia é habitat para dezenas de espécies de aves marinhas, costeiras e terrestres. Para preservar o delicado ecossistema, não descemos da embarcação. Mas não era necessário: próximo à margem da ilha principal, chegamos bem perto dos pinguins, que nem ficaram incomodados com a nossa presença – parecem já estar acostumados com os olhares humanos curiosos. Navegamos rente aos paredões rochosos, povoados por colônias de cormorões, gaivotas austrais e chimangos. Do alto do penhasco, imensos condores observam a fauna pacientemente, esperando a oportunidade para devorar alguma carcaça.

 

O imponente Glaciar Pía, braço dos campos de gelo da Cordilheira Darwin.
O imponente Glaciar Pía, braço dos campos de gelo da Cordilheira Darwin.

 

2º dia: Pía e Avenida dos Glaciares
Já nas primeiras horas da manhã navegamos pelo canal Ballenero, na costa sul da Terra do Fogo. Logo depois do café da manhã, assisto à palestra sobre a principal atração da viagem: o majestoso glaciar Pía, outra “língua” dos campos de gelo da Cordilheira Darwin, que visitaremos logo após o almoço. Das janelas do navio dava para ver os blocos de gelo flutuando pelo mar, dando uma amostra do que nos esperava.

Às 15h desembarcamos em frente ao glaciar. Partimos para uma breve caminhada morro acima por uma vereda rochosa de onde foi possível ter uma visão panorâmica da formação. São camadas e mais camadas de neve compactada ao longo dos séculos criando verdadeiras montanhas de gelo sólido. Do lado direito, o chamado glaciar negro, que adquire essa cor devido à mistura de gelo com sedimentos de rocha desprendida pelo movimento das geleiras. Do lado esquerdo, o gigantesco glaciar azul, com várias nuances de cor – do branco intenso ao azul profundo, passando por tons de cinza. Lá, o guia nos explica que o degelo dos dois é diferente. Enquanto que no negro a água escorre por baixo do glaciar, no outro o gelo se quebra em pedaços, proporcionando os belíssimos desprendimentos. Com o calor daquele início de tarde, era possível ouvir toda a montanha de gelo estralando.

De volta ao navio, seguimos pelo braço noroeste do Canal Beagle, e por volta das 18h iniciamos a travessia pela Avenida dos Glaciares, uma sequência surpreendente de montanhas de gelo de diversos formatos, cores e tamanhos (com direito até a cachoeira despontando de uma delas).

 

Para preservar o delicado ecossistema, decks de madeira conduzem até o memorial erguido pela Irmandade dos Capitães do Cabo Horn.
Para preservar o delicado ecossistema, decks de madeira conduzem até o memorial erguido pela Irmandade dos Capitães do Cabo Horn.

 

3º dia: Cabo Horn e baía Wulaia
Saímos das águas protegidas que predominam em toda viagem para adentrarmos num trecho de mar aberto. Ainda é madrugada quando nos preparamos para descer no mítico Cabo Horn, a última porção de terra antes da Antártica e um dos maiores desafios náuticos do mundo. Antes do canal de Panamá, era rota obrigatória entre Europa e costa oeste americana. Aqui nessas águas turbulentas, onde os oceanos Atlântico e Pacífico se encontram, muitos navegadores perderam suas vidas.

Nesse trecho o capitão Rauch me contou já ter visto aurora austral e baleias jubarte. Eu não tive a mesma oportunidade, mas fui contemplada com a maré baixa e relativamente tranquila, o que deu sinal verde para o desembarque. Subimos uma falésia por uma escadaria de 160 degraus que dá acesso ao alto da ilha. De um lado está um monumento de aço na forma de albatroz feito pela Irmandade dos Capitães do Cabo Horn em homenagem aos que morreram ali. De outro, o farol e uma pequena base naval chilena.

A programação da tarde é ancorar na baía Wulaia para visitar a ilha Navarino, parte do extenso Parque Nacional Cabo Horn, declarado em 2005 Reserva Mundial da Biosfera pela Unesco. Foi ali que o naturalista Charles Darwin e o capitão inglês Fritz Roy tiveram contato com os enigmáticos índios Yamana no século 19. Difícil acreditar, mas eles viviam desnudos entre temperaturas congelantes, sob ventos de até 100 km/h. Não se cobriam com peles de animais, mas sim com gordura de baleia. Viviam dentro de barcos e sobreviviam da pesca. Eram as mulheres que mergulhavam na água para procurar caranguejos gigantes (centolla) e outras delícias do mar. Ali se encontra uma velha casa de dois andares pertencente à Marinha, agora convertida em museu arqueológico Yamana.

Caminhamos rumo ao alto da colina. Lá em cima, pausa para admirar a belíssima vista panorâmica da baía e das ilhas vizinhas. Na volta de bote para o navio, somos surpreendidos por golfinhos de Magalhães saltando ao nosso redor. Melhor despedida, impossível. Estar num lugar completamente ermo e ter uma vivência como essa é, sem dúvida, regenerador. Ao final da expedição, dava para ver no rosto dos tripulantes um estado de pleno encantamento com o mundo.

 

QUANDO IR
A melhor época é entre os meses de setembro e abril. Nesse período há mais horas de sol, permitindo aproveitar melhor os passeios. Uma curiosidade: o dia mais longo do ano, com 20 horas de sol, é 21 de dezembro. Ele nasce às 3h45 e se põe às 23h10.

COMO CHEGAR
TAM e LAN operam voos para Punta Arenas, no Chile, a partir de Guarulhos ou Galeão, geralmente com escala em Santiago ou Buenos Aires. O trajeto ida e volta custa a partir de US$ 559.

O QUE LEVAR
As temperaturas variam bastante ao longo do dia, portanto, o ideal é vestir-se em camadas, com uma jaqueta de forro polar impermeável. Leve binóculos para observar os animais e máquina fotográfica com lente de bom zoom. Para as caminhadas e passeios de bote é indispensável o uso de sapatos ou botas impermeáveis, calças e luvas impermeáveis, gorro, óculos de sol, protetor solar e labial. Você pode deixar para comprar esses itens na Zona Franca de Punta Arenas, onde os preços são bem atrativos em relação aos do Brasil.

QUEM LEVA
Cruceros Australis: (+56) 2  2442-3115
www.australis.com

 

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