ESTILO

Regina Vogue: muito além da Vó Gertrudes

A adolescente que fugiu do circo se transformou, cinco décadas depois, em uma das atrizes de maior talento de sua geração

A simpática velhinha que busca conscientizar o cidadão curitibano sobre os bons modos no trânsito é a personagem mais recente da artista radicada em Curitiba desde o início dos anos 1980. Se na televisão ela aparece, ora dirigindo um fusca vermelho, ora pilotando uma motoneta; na vida real, Regina Vogue depende dos escassos táxis da capital paranaense. As gravações com os veículos, confessa, aconteceram com a ajuda de dublês de cena.

Refém do trânsito de uma segunda-feira chuvosa, levou meia hora para percorrer um trajeto de seis quilômetros de sua casa até o teatro que leva o seu nome no Shopping Estação. Chegou usando um chapéu pequeno de feltro, cabelos rebeldes pelo corte assimétrico, uma echarpe colorida, roupas confortáveis e um sorriso fácil. A aparência logo denuncia sua vertente clown (palhaço, em inglês), gênero teatral no qual o ator exagera sua própria imagem e personalidade.

O espírito circense, mais do que uma marca dos espetáculos que assina como produtora há décadas, está intimamente ligado à atriz que atualmente estampa 400 pontos do mobiliário urbano da capital, além de estrelar quatro comerciais que rodam nas principais emissoras de TV e emprestar a voz para cinco spots de rádio que buscam passar noções de respeito e cidadania ao tão criticado trânsito curitibano. Regina Vogue sabe do contexto que fez a Prefeitura investir no tema e se desculpa pelo atraso. “O trânsito de Curitiba está um horror!”.

A incursão no mundo da publicidade é algo novo para Regina. Há pouco tempo, tendo uma carreira consolidada como atriz e produtora cultural, decidiu se colocar à disposição de uma agência que recruta atores para comerciais. Neste mercado disputado, arrebatou o primeiro filme para o qual fez teste. De cabelos vermelhos (agora estão castanhos, conselho da agência de atores), concorreu com várias velhinhas mais “prontas” para o papel, todas de madeixas brancas e cara de vovozinha. Certamente sua história como atriz fez a diferença. A maquiagem e a preparação dos cabelos da personagem a deixaram ainda mais senhorinha do que as concorrentes. A campanha tem tomado suas alfinetadas. Regina defende a proposta: “A partir do momento em que uma pessoa se incomoda, é porque a iniciativa já deu certo.”

A conversa – sem que este escriba e a entrevistada tenham planejado – se dá justamente no aniversário de 69 anos da artista. Por conta disso, no café em frente ao Regina Vogue, somos interrompidos algumas vezes para que ela receba os parabéns de alguns colaboradores do teatro que vai completar dez anos de existência em 2014.A iniciativa, conta Regina, foi do empresário Miguel Krigsner, fundador do Grupo Boticário, que depois de várias propostas, enfim patrocinaria um espetáculo da companhia da produtora, que decidiu aproveitar a porta aberta para propor mais um negócio.

Faltava para o grupo um espaço alternativo para a montagem de O Grande Rei Leão. A ideia era um local grande e alto, aos moldes dos vãos ainda desocupados do empreendimento à época comandado por Krigsner. Alguns dias depois, Regina foi convidada para ver a maquete do teatro que seria convidada a dirigir. E na fachada, uma mais do que justa homenagem: o seu nome! “Fui e voltei às nuvens”, suspira a atriz, lembrando da sensação da surpresa.

Tendo uma carreira já consolidada como produtora de espetáculos infantis, Regina contaria com um palco fixo, possibilidade de temporadas mais longas, lugar para ensaiar e guardar cenários. Nada mal para quem começara a vida de artista na rotina mambembe dos grupos circenses. Com o teatro, vieram também as dificuldades da vida de empresária. Teve que aprender a contratar e a perder colaboradores. “Sofria quando alguém pedia demissão. Achava que eles eram como familiares”, desabafa. Esse sentimento que mistura a vida profissional com a pessoal vem do passado, do espírito de família circense.

Autores do calibre de Ziraldo e Maria Clara Machado são alguns dos que tiveram textos encenados pela companhia da produtora. Em 1991, quando decidiu assinar sozinha a produção de seus espetáculos, montou Pluft, o Fantasminha. Contou com a compreensão da equipe para pagar o cachê só após a venda do espetáculo para escolas. E deu certo. Descobrira nos estudantes um filão que sustentaria suas produções por anos. Em seguida, vieram as leis de incentivo fiscal, hoje a principal forma de viabilizar as montagens da equipe.

Regina caminha pelos bastidores do teatro que ajudou a construir e aponta as fotos espalhadas pelos corredores de várias produções que assinou. Exibe com orgulho maior os registros de atores e atrizes que despontam no cenário nacional, tais como as globais Katiuscia Canoro e Fabiula Nascimento.

No giro pelos bastidores, interrompemos por alguns instantes um ensaio dirigido pelo seu filho mais velho, Mauricio Vogue, que também é ator e cantor. Regina é mãe ainda de Adriano, empresário das produções. “Até isso Deus me deu: um filho que é artista e outro que é a parte racional e prática da família”, conclui Regina, que hoje mora sozinha em um sobrado próprio, a primeira casa da vida em seu nome. Sobre o pai de Mauricio, Regina se emociona e silencia. Prefere não tocar nesse passado, apenas sinaliza o tamanho da emoção provocada pela pergunta não respondida. “Foi o grande amor da minha vida”, conclui. Adriano (que acaba de ser pai) é filho de outra relação.

A fuga com o circo

Embora tenha nascido na cidade catarinense de Caçador, a infância de Regina teve como cenário a cidade de Porto Alegre. Depois da separação dos pais, passou a morar com os avós maternos. Dona Angelina, uma legítima dona de casa sempre à volta com os netos, sendo ela a mais falante; e justamente por isso despertava olhares contrariados do avô Veridiano. Do sobrado da família, ainda lhe vêm à cabeça as memórias da Tia Maria, cabeleireira, que tomava a espirituosa sobrinha como modelo para cortes e penteados que seriam depois replicados em clientes. Como se fosse uma manequim, cobaia e miniatura, ganhou o apelido diminuto da dona do salão: Mariinha, assim mesmo, com dois “is”.

Logo, o jeito falante e o talento para representar sonhos de outrem a levaram a se interessar pelo teatro, mais ou menos quando o rock and roll ocupava as ondas da rádio Farroupilha. Dos concursos de dança da emissora, Regina arrebatou alguns. Como troféus, pacotes de macarrão, café, açúcar… Mas como nem só de comida vive uma artista, os olhos de Regina começaram a buscar palcos longe do sobrado da Rua Ijuí, 144, no bairro Petrópolis.

Logo o circo passou pela cidade e levou junto uma jovem cheia de sonhos. “Tudo o que faço no teatro hoje carrega um pouco do jeito circense”, afirma, lembrando que chegou a trabalhar como partner de mágico, dançarina e até mesmo se pendurando em cena pelos cabelos.

Aquela primeira incursão na vida itinerante terminou quando um macaco da trupe lhe mordeu o tornozelo. Como não podia mais se apresentar, o dono da companhia a largou em Itajaí, Santa Catarina. Chorando sozinha e abandonada em frente a uma igreja, foi resgatada da cena que poderia bem estar presente no filme A Estrada da Vida, de Federico Fellini. O anjo foi um homem inesperado, a quem Regina se refere como “o japonês”. Ele lhe pagou uma passagem de volta para Porto Alegre, depois de fazê-la prometer “sair daquela vida”.

Regina prometeu. Com os dedos cruzados. Logo voltou para a estrada da vida. Desta vez, com um Circo Teatro Pavilhão. A diferença desse tipo de espaço para o circo de lona está na arquitetura do empreendimento (com paredes de zinco, algo mais “fixo” em relação às lonas, que são fáceis de serem desmontadas e transportadas). Além disso, os espetáculos apresentados eram mais próximos do que hoje entendemos como teatro; ou seja, com histórias e encenações, exigindo dos artistas uma carga dramática (ou cômica) mais elaborada em relação ao picadeiro.

Para Regina, que se encantara com o drama Dois Sargentos, uma história que reforça os valores da amizade entre uma dupla de militares, era a chance de colocar sobre a ribalta seu desejo então descortinado: “Eu queria chorar em cena. Queria que o público se emocionasse comigo.”

Pediu emprego para o diretor da companhia. E conseguiu. Porém, a vaga era de cuidadora do guarda-roupa da equipe. Sem direito a salário, trabalhava pela comida. E nos primeiros tempos, dormia na casinha que abrigava os figurinos. Em uma cama? Que nada! Esticava o corpo miúdo sobre uma mala. Novamente, essa personagem felliniana da vida real tinha a sua vocação colocada à prova perante tantas privações.

ão demorou muito para que ela saísse das coxias e ganhasse papéis de destaque em dramas tradicionais do gênero, tais como O Direito de Nascer, E o Céu Uniu Dois Corações, Os Pobres de Paris, O Ébrio, dentre tantos outros que arrancavam lágrimas das plateias. “O artista de pavilhão é um diamante bruto. Ele exagera na interpretação. Eu não tenho medo de exagerar. Depois o diretor limpa.”

No jargão do teatro, isso tem um nome. É entrega. Quem já viu Regina em cena, sabe que o fenômeno se dá com muita maestria. Em 2012, ela atuou no espetáculo Satyricon Delírio, do diretor Edson Bueno, inspirado na obra cuja autoria é atribuída a Caio Petrónio Arbiter, escrita por volta dos anos 60 depois de Cristo. A montagem contou com um elenco de três dezenas de atores jovens, os quais interpretavam boa parte do tempo com figurinos mínimos ou até mesmo nus. Regina conta que tinha a liberdade de ensaiar de calcinha e sutiã. Seu figurino previa exibir os seios sob uma blusa transparente, a qual certo dia foi deixada de lado após um descuido na troca de roupas entre uma cena e outra.

Com o deslize, foi embora um fiapo de pudor de exibir o corpo sexagenário em meio à sensualidade juvenil das companheiras de cena. Dentre os atores, Mauricio, um dos dois filhos de Regina. Inevitável pensar que a singela vó Gertrudes dos comerciais politicamente corretos da Prefeitura já exibiu os seios e beijou uma adolescente na boca em um espetáculo profundamente marcado pelo espírito de Baco!

“Eu quero sempre estar em busca de alguma coisa!”, diz Regina. A nova cartilha deve ser a de algum curso de formação de condutores. A intérprete da Vó Gertrudes sinaliza que pretende dispensar os dublês nos próximos comerciais da campanha.

*Matéria escrita por Luiz Andrioli, com fotos de Daniel Katz, e publicada originalmente na edição 156 da revista TOPVIEW.

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