Colecionismo que (nos) reverbera
Por que guardamos? Além de um instinto de preservação do objeto, guardar algo é também um ato de autopreservação que nos ajuda a definir quem somos. Os objetos emanam sentidos, ressignificam o presente, trazem à tona memórias e carregam experiências em potencial. Possibilitam, portanto, um elo entre o presente, o passado e o futuro. Obras de arte são, talvez, o objeto dotado de maior significado. Colecioná-las nos situa individual e coletivamente. É como estarmos cercados de nós mesmos, nos faz lembrar quem somos culturalmente e o que nos une como civilização. E assim foi com Ernst Beyeler, marchand e colecionador suíço que, após uma vida dedicada à arte de seu tempo, idealizou a Fundação Beyeler, uma das mais instigantes do mundo, próxima a Basel, na Suíça. Lidar com obras de arte, principalmente colecioná-las, permitiu que Ernst e sua esposa, Hildy, interpretassem a história ao mesmo tempo em que ela acontecia.
O começo de tudo
Em 1955, G. David Thompson, industrial, magnata americano e um dos mais respeitados colecionadores da época, tem o primeiro contato com o então galerista Ernst Beyeler em Basel. Ele solicita que Beyeler o visite nos Estados Unidos para avaliar sua coleção. Thompson gostaria de vendê-la por motivos de saúde. Essa primeira visita renderia mais de 1 milhão de francos suíços (R$ 3,3 milhões na cotação atual) em obras da Thompson Collection para a Galerie Beyeler. Quatro anos depois, o suíço recebe outro telefonema de Thompson disponibilizando um segundo conjunto de obras. A negociação renderia a Beyeler mais de 100 trabalhos de Paul Klee, o suíço de nacionalidade alemã considerado um dos grandes pintores europeus do início do século 20. ‘Acredito que o comprador seja o verdadeiro vencedor.
O vendedor recebe o dinheiro apenas uma vez. O comprador recebe um dividendo espiritual todos os dias em que possuir a obra de arte. Esse sentimento de bem-estar não pode ser criado por uma conta bancária, não importa o quão grande’, disse G. David Thompson na exposição de parte da sua coleção no Museu Guggenheim, em 1961. Em 1962, Beyeler adquiriu de Thompson 88 trabalhos de Alberto Giacometti – artista ítalo-suíço considerado um dos escultores mais originais do século 20, famoso por suas figuras isoladas que, para muitos, representam um espírito de tragédia existencialista. Depois de anos de negociações entre o poder público e o setor privado, Beyeler conseguiu criar, em 1965, a Fundação Giacometti em Zurique.
A Fundação Beyeler
Em janeiro de 1991, Ernst Beyeler levou o arquiteto italiano Renzo Piano à Villa Berower. Ali se iniciou a construção da Fundação Beyeler, pronta em 1997 para receber a coleção particular de Ernst e muitas outras exposições. O museu que Beyeler imaginou deveria ser a construção do que disse Charles Baudelaire: ‘Luxe, calme, et volupté’ – ou seja, luxo, calma e volúpia. A ideia inicial era que o teto do museu fosse de vidro, como em uma estufa, mas não poderiam haver colunas para que os espaços expositivos não fossem interrompidos. Depois de muitos meses e algumas tentativas frustradas, o arquiteto chegou a uma levíssima estrutura de metal que suportaria as longas chapas de vidro.
Combinadas a determinados ângulos, elas permitem que a luz natural entre de maneira homogênea no espaço – e sem risco para as obras de arte. ‘A busca pela pedra correta é uma história divertida que simultaneamente exemplifica o perfeccionismo de Beyeler’, explicou Renzo Piano. ‘Ernst Beyeler era um homem com uma sensibilidade incrível para as artes visuais. Ele tinha a capacidade de entender a beleza – nas pinturas, nas esculturas, na arquitetura e nos materiais. Ele adorou os grãos, a superfície da pedra. Ele a tratava não só como uma parte da construção, mas como um objeto de arte’, concluiu Piano, responsável pelo lugar que abriga o legado do suíço.
Uma visão particular
“O que caracteriza o artista é sua obsessão, sua consciência de ter a missão de passar uma mensagem. Um toque de megalomania – apesar de esse termo não ser o mais apropriado – está sempre envolvido (…) Fosse ele ter dúvidas, e estaria perdido, porque já havia queimado todas as pontes. Não pode haver uma resposta arbitrária à questão ‘Eu farei isso, ou não?’. Klee e Kandinsky estavam convencidos que estavam fazendo algo único. Cézanne e Monet estavam cientes de quem eram e quais descobertas perpetuariam através de sua arte (…)
Mas em última análise é o artista que sabe o que é qualidade. Algumas criações incríveis sobrevivem ao teste do tempo – e servem de exemplo para tudo o que vier depois. Quebras de paradigmas estão a caminho. Começam com o trabalho intelectual, que é então condensado, assume uma forma, e forja um caminho para si mesmo (…)”, Ernst Beyeler em 1999, explicando por que venerava certos artistas.
Ernst
Fondation Beyeler_
Baselstrasse, 101, Riehen/ Basileia, Suíça. Entrada a partir de 20 francos suíços (R$ 60). www.fondationbeyeler.ch
*Matéria originalmente publicada na edição 191 da revista TOPVIEW