ESTILO CULTURA

Tom Zé em busca da lógica do Tropicalismo

Em seu novo álbum, Tropicália Lixo Lógico, o cantor usa elementos de história, literatura, antropologia e até neurociência para rever o movimento musical dos anos 80

Acompanhar o ritmo de Antonio José Santana Martins é um desafio extramusical. O artista – que completou 77 anos no último dia 11 de outubro – tem uma das mentes mais irrequietas da música brasileira. Isso se não for a mais irrequieta. Conseguir uma entrevista com ele é sempre uma tarefa difícil, talvez pelas reminiscências da mágoa que – segundo dizem – ele e a esposa Neusa, que também é sua empresária, têm da imprensa, devido ao período no qual o músico ficou no obscurantismo, nos anos 70 e 80.

Sua peculiar linha de raciocínio sempre vai longe. A disposição também. “Eu não sou um gênio, sou um carpidor de tirar sangue da pedra. Trabalho 16 horas por dia para tirar meia dúzia de compassos. Esse trabalho é feito dessa maneira e agora ainda com a responsabilidade de tentar fazer canções que tenham também a beleza como parte de sua estrutura”, emenda.

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Prestes a completar 80 anos, o cantor brinca que nasceu na Idade Média e chama sua região natal, a cidade de Irará, na Bahia, de “pré-gutemberguiana”.

Por causa de toda essa disposição para criar – embora tenha tantos afazeres, como o de ser o jardineiro do prédio onde mora, em São Paulo – Tom Zé parece manter infinita sua capacidade de fazer discos. Nos últimos 15 anos ele já lançou 15 títulos diferentes, entre álbuns de carreira e alguns EPs. Sua mais nova invencionice chegou em setembro do ano passado (2012) e chama-se Tropicália Lixo Lógico, sua versão sobre o movimento liderado por Gilberto Gil e Caetano Veloso.Trata-se do álbum mais independente já feito por ele, pois não saiu com o rótulo de um selo fonográfico e ainda está disponível para ser adquirido no site oficial do cantor e compositor (www.tomze.com.br). “Todos os meus últimos discos têm tido temas que são trabalhados, desenvolvidos no decorrer deles”, explica. “Então, a Tropicália é mais um desses temas.” E é justamente por isso que Tom Zé já começa surpreendendo. Muito já se falou de toda a ebulição artística e cultural vivida no Brasil do final da década de 60. Depois de muitos livros, documentários, depoimentos e relançamentos fonográficos, o que haveria de novo para ser explorado a respeito do Tropicalismo?

No que depender deste que foi um dos baianos que se tornaram vértices do movimento em sua facção musical, ainda há muita coisa para ser descoberta e dita. Nem que, para tal, seja preciso navegar entre diversas áreas, como história, literatura, antropologia e – acredite – neurociência.

Prestes a completar 80 anos, o cantor brinca que nasceu na Idade Média e chama sua região natal, a cidade de Irará, na Bahia, de “pré-gutenberguiana”. Foto: André Conti

São cinco as faixas que compõem a coluna vertebral temática de Tropicália Lixo Lógico. Apocalipsom A (O Fim no Palco do Começo) e Apocalipsom B (O Começo no Palco do Fim) servem de introdução e encerramento do trabalho. Na abertura, Tom Zé apresenta uma espécie de nascimento mitológico. Quanto à vinheta final, ele mesmo assume. “Faço plágio de um poema chamado The Second Coming, no qual [o famoso poeta e dramaturgo irlandês] Yeats trata da necessidade que o mundo tem de uma segunda encarnação de Cristo.”

Tropicalea Jacta Est é uma ode a alguns dos principais estandartes das artes e ideias tropicalistas naquela São Paulo da segunda metade dos anos 60. José Celso Martinez Corrêa, Décio Pignatari, os irmãos Haroldo e Augusto de Campos e Torquato Neto aparecem na letra. Embora não cite nominalmente a dupla Gilberto Gil e Caetano Veloso, Tom Zé usa os dois como exemplo para explicar a faixa. “Ela se refere a Caetano e Gil tirando o Brasil daquela idade média emperrada que o país vivia no fim dos anos 60, injetando energia na mentalidade dos jovens para o país encontrar logo depois a segunda revolução industrial”.

Marcha-Enredo da Creche Tropical, e a faixa que dá título ao álbum, amarram-se em uma dobradinha que discorre sobre as ideias centrais por trás da formação artística e intelectual de alguns dos grandes tropicalistas – mais precisamente ele próprio. “Na primeira, eu faço um gráfico explicativo que conta o que era a creche tropical. A nossa educação antes de, na escola primária, entrar em contato com a concepção aristotélica [que afirma, a grosso modo, que todo ser humano pode decidir se conformar ou não com alguma coisa] que predomina em todo o pensamento ocidental”. Já deu para perceber que para entender – e explicar – Tropicália Lixo Lógico, é preciso muitos minutos de conversa com Tom Zé (na verdade, seria melhor descrever como assistir a uma aula).

Número zero

Curioso é ver os caminhos que a mente do tropicalista percorreu para desenvolver o conceito do novo álbum. A complexa tese tem início em um livro de ficção científica e no ano em que o homem chegou à lua. Naquela ocasião, ele – e quase toda a humanidade – estava no frisson e na excitação com aquela que vinha sendo anunciada como “a mais audaciosa aventura humana de todos os tempos”. “Foi quando eu li uma coisa que aguçou muito a minha curiosidade: a novela de ficção científica O Fim da Infância, de Arthur Clarke.” O cantor mergulhou profundamente nas páginas desse livro escrito pelo autor mais conhecido por outro romance, 2001 – Uma Odisséia no Espaço (que acabou sendo adaptado para o cinema pelo diretor Stanley Kubrick e até hoje é um dos filmes mais cultuados de toda a história do cinema). “Tomei conhecimento dessa coisa que me tirou do chão e despertou a minha curiosidade. Pela letra de 2001, que eu fiz e a Rita Lee veio a musicar, você pode imaginar como aquele assunto me interessava”, relembra.

Em O Fim da Infância, Clarke diz que os árabes, que já haviam invadido a Península Ibérica no século 8, desejavam entrar em toda a Europa. E, se o rei da França, Charles Martel, não tivesse impedido que os exércitos árabes expandissem a sua invasão, nós estaríamos indo às estrelas mais próximas e não simplesmente ao nosso satélite. “Nossa! Quando eu li isso, acompanhando como eu acompanhava com toda curiosidade cada passo que aproximava o momento do homem chegar à lua, me admirei com o fato de o homem ir às estrelas mais próximas.”

Naquele mesmo século 8, segundo Clarke, os árabes eram o povo com as ciências mais desenvolvidas da Terra. Eles haviam acabado de inventar o número zero e estavam divulgando esse novo recurso de operações aritméticas e matemáticas. Combustível suficiente, aliás, para alavancar a estupefação de Tom Zé. “Como é que a civilização da Babilônia se pôs em pé? A civilização egípcia, a greco-romana, que é, enfim, a base de toda a nossa cultura… Pensava que o zero tinha sido concebido desde que o mundo é mundo, lá na Arca de Noé, e depois saber que esse zerinho tão esquivo, retardado e preguiçoso foi pensado apenas em uma época tão próxima de nós?”

A explanação continua agora com Tom Zé lançando um olhar sobre o que acontecia na Europa naquele século. Segundo o cantor, a Península Ibérica (Portugal e Espanha) era civilizada pela mais sofisticada cultura do momento. Se na Idade Média esses conhecimentos científicos estivessem na mão de todos os povos da Europa, o desenvolvimento das ciências estaria muito mais sofisticado.

Do hipotálamo ao córtex

A empolgada explicação não só continua como também ganha ligações com a história do nosso país. “Imagine minha admiração quando eu percebi que toda essa história da inteligência no planeta Terra tinha a ver com a vida no Nordeste.” Logo quando os árabes se retiraram da Península Ibérica, os portugueses saíram para as suas grandes navegações e o Brasil foi descoberto. “A mentalidade do povo português estava contaminada com aquele amor pelas ciências e as primeiras bandeiras que foram para o sertão em 1576 levaram essa mente carregada de curiosidade especulativa.”

Tom Zé lembra que o caboclo – a primeira sub-raça brasileira a habitar o Nordeste do país, e que é fruto da miscigenação de portugueses, índios e negros – vivia em situação de pobreza e analfabetismo. Mesmo assim, fazia questão de preservar suas raízes culturais, principalmente o culto da palavra: “A palavra, no Nordeste, é a moeda mais forte, mais valorosa que circula e energiza a vida mental das populações. Como a cultura moçárabe estava como uma constante no sertão e em parte do recôncavo, acabávamos sendo educados até os oito anos de idade com ela. Só vínhamos a tomar contato com a concepção de mundo aristotélica no momento em que entrávamos na escola primária.”

O baiano de Irará, então, volta os olhos para o raciocínio que veio a desencadear a ideia do tal “lixo lógico” que faz parte do título do álbum e de uma das faixas. “Enquanto o professor resolvia as questões e os raciocínios de uma maneira aristotélica, nós imaginávamos ‘e se eu pensasse isso com o tipo de avaliação e pensamento com os quais eu fui criado?’.” No final das contas, o problema também poderia ser resolvido. “A verdade é que dava um restinho, uma ligeira diferença.” Só que essa “pequena diferença” nunca acaba sendo descartada. E, para o artista, é acumulada durante a vida. “O cérebro humano desde os tempos das cavernas não joga absolutamente nada fora. O conhecimento que deixa de ser usado é acumulado no hipotálamo. Durante toda a escola primária, lá vai o hipotálamo sendo carregado com uma espécie do que vim a chamar de ‘lixo lógico’. No ginásio, isso aumenta imensamente. E tome-lhe lixo lógico no hipotálamo. Na universidade, então, é lixo lógico que não acaba mais”, exclama.

Tom Zé finaliza sua aula desembocando na formação do movimento do qual ele fez parte e agora revê de maneira singular. Ele relembra que dois gênios como Gilberto Gil e Caetano Veloso estavam em São Paulo na época em que houve a redescoberta da poesia de Oswald de Andrade e que, no final dos anos 60, havia uma grande animação com Helio Oiticica e seus parangolés, sem falar do encontro com [o maestro] Rogério Duprat, Rita Lee e os Mutantes. “Toda aquela agitação cultural acabava criando uma espécie de necessidade iminente de pensar um Brasil diferente. E aí eu digo que isso serviu como uma espécie de gatilho disparador, que fez o lixo lógico vazar do hipotálamo para o córtex de Gilberto Gil e Caetano Veloso. A consequência disso, por fim, teria sido o desencadeamento do Tropicalismo.”

Passado, presente e futuro nas telas

No final de 2012, para marcar o ano de celebração do 35° aniversário da Tropicália, dois documentários ganharam as telas de cinemas alternativos de todo o país.

Em Tropicália (da Paris Filmes, que acaba de lançar o documentário em DVD), o diretor Marcelo Machado preserva imagens da época e adiciona o depoimento de pessoas envolvidas com os olhos e sentimentos do presente, sem poupar as dores provocadas pelas atitudes políticas de artistas e militares do regime ditatorial da década de 1960.

Já a dupla Ninho Moreas e Francisco César Filho se preocupa em olhar, sob a ótica do século 21, um dos momentos culturais mais ricos do Brasil. Futuro do Pretérito: Tropicalismo Now! (Vitrine Filmes) traz esquetes protagonizados por atores e um show com músicos como André Abujamra, Luiz Caldas e Alexandre Nero fazendo releituras contemporâneas de clássicos e pérolas perdidas naquele tempo. Também há espaço para pitadas de politização, como a inclusão da primeira presidenta brasileira, Dilma, e o depoimento de Gil, o tropicalista que recentemente ocupou o cargo de Ministro da Cultura no governo Lula.

Os convidados especiais de Tom Zé

• Mallu Magalhães foi convidada para participar das faixas Tropicalea Jacta Est e O Motobói e Maria Clara. Ela, que já tinha a admiração do cantor, trouxe jovialidade ao álbum.

• Rodrigo Amarante participa de NYC Subway Poetry Department, uma canção que Tom Zé fez depois de observar o metrô em Nova Iorque. “Na hora em que o trem vai partir e as portas vão se fechar, uma voz grave repete: ‘Stand clear of the closing doors’, que quer dizer ‘Afastem-se das portas, pois elas irão fechar’. A frase é tão bonita, tem duas linhas aliterativas, parece um verso”, diz o cantor.

• O rapper Emicida aparece nas faixas Apocalipsom A (O Fim no Palco do Começo) e Apocalipsom B (O Começo no Palco do Fim). “Ele, que é um poeta das coisas da cidade, cantor das coisas urbanas, interpretou algo que é profundamente nordestino e relativamente distante da linguagem dele.”

*Matéria publicada por Abonico R. Smith originalmente na edição 148 da revista TOPVIEW.

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