Toda eternidade em um momento

Quantas vidas cabem dentro de um instante banal? Ao pensarmos na ideia de tempo, sobretudo no mundo contemporâneo, onde ter tempo é um luxo, imaginamos o passar deste e sua escassez. O “instante-já” do presente é matéria composta pelo passado e pelo futuro e eu ousaria dizer que quase nunca habitamos o exato momento do presente. Como este que já agora não é mais… Ao tomar um banho, por exemplo, enquanto a água escorre quente pela pele, estamos ali por um momento fugaz, mas logo a mente se põe em outro lugar: as coisas por fazer, a leve discussão de manhã sobre a toalha molhada esquecida em cima da cama, lembranças que nos assaltam: medos e desejos misturados. Dentro do instante que vivemos habitam, também, todos os outros que nos compõem, mosaico de histórias que somos.

Em O Professor, novo livro de Cristovão Tezza, a construção do presente acontece exatamente como esse encaixar/desencaixar que vai sendo montado através de um eterno pulsar da memória, para interagir com o momento do “instante-já”. Heliseu, personagem cujo monólogo interior conduz a narrativa, é um professor, “chegando aos 71 anos”, que vai receber uma homenagem pelo seu trabalho na universidade. No intervalo entre o acordar e o estar pronto para sair de casa, nós, leitores, tornamo-nos os “senhores” a quem ele se dirige mentalmente na tentativa de compor o seu discurso de agradecimento. Com isso, adentramos a mente dele e temos acesso a fragmentos históricos, que passam da ditadura a comentários sobre o governo atual, (re)visitamos as paixões e suas ruínas – tanto a que gerou o casamento com a esposa Mônica, quanto a avassaladora pela aluna Therèze –, além de tomarmos conhecimento da delicada e quase inexistente relação entre ele e o filho homossexual. Aliás, as partes mais belas do romance nascem exatamente da latência do desejo do narrador de encontrar as peças do seu passado que resultaram na incompreensão e no muro de silêncio construído entre ele e o filho.

Heliseu, no breve espaço de tempo que a história comporta, vive sua própria vida outras tantas vezes e com isso aprendemos sobre o seu passado desde o ponto de vista de alguém que já sabe as consequências de suas ações no presente. A narrativa também reserva, até pela forma como se estrutura, as incertezas de um segredo e a impossibilidade de reconstituir o momento exato no qual as ações ocorrem e sua verdade absoluta. Bem ao estilo de outros narradores consagrados, como é o exemplo de Machado de Assis com o seu conto “O Enfermeiro”, temos um suicídio que pode ser um acidente, mas que também pode ser visto como assassinato.

Belo exemplar da literatura brasileira contemporânea, O Professor de Cristovão Tezza é um romance para ser lido enquanto encaixamos suas peças – para a compreensão do personagem – ao mesmo tempo em que encontramos nossos próprios barulhos, as viagens temporais que nós mesmos fazemos enquanto o lemos, ou a que você faz agora enquanto me lê.

 

 “  …e permanecemos abraçados depois do toque de lábios que se transformou num beijo longo, agora ambos de olhos fechados, pensando na surda gravidade do que estávamos fazendo e, quem sabe, nas suas consequências pesadas, eu e ela, cada um com uma caneta mental na mão, desenhando um futuro imediato – não o que iria acontecer daqui a um ano, mas daqui a um minuto, quando teríamos enfim de abrir os olhos.”
Trecho do romance O Professor, lançado em 2014 pela Editora Record.

 

Cris Lira é mestre em Literatura Brasileira e estudante de doutorado na
Universidade da Geórgia, nos EUA, onde dá aulas de português. Email: clira@uga.edu  

 

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