(Outros) olhares sobre o Carnaval de Curitiba
pesquisa e curadoria Camila Gino, Angelica Buch e Melina Correia
fotos Eduardo Macarios; Julio Garrido; Nicola Iannuzzi; Acervo da Casa da Memória*
Sim, existe Carnaval em Curitiba. E as pessoas da cidade, em suas diversas facetas e histórias, estão aí para mostrar os vários modos de viver esta festa, seja com os desfiles das escolas de samba ou com os blocos de rua, como o emblemático Garibaldis e Sacis, seja no festival de rock Psycho Carnival ou na passeata Zombie Walk.
Essas são as faces de Curitiba – uma nova cidade, mais moderna, criativa, multicultural e menos engessada. Trata-se de uma questão de (re)identidade. De uma Curitiba metrópole, e não mais (só) província, que vem encontrando sua voz e seu espaço, como aponta o cineasta Luciano Coelho, que lançou em 2010 o documentário Caras de um Carnaval. “A intensidade com que as pessoas vivem esse Carnaval foi para mim uma surpresa. Claro que eu acreditava que existe, mas estar presente ali, ter vivido o cotidiano, foi muito impactante”, conta ele em entrevista exclusiva à TOP VIEW (leia a íntegra e assista ao documentário no nosso site).
Dentro dessas reconfigurações de identidade, a TOP VIEW traz um ensaio artístico com pontos de vista sobre o Carnaval, lançados por escritores convidados. A maioria com textos inéditos para esta edição, e fotografias cedidas por alguns dos principais nomes da cidade, além do acervo da Casa da Memória.
*Gentilmente cedidas à TOP VIEW para esta edição especial sobre Carnaval.
CARNAVAL EM CURITIBA
Cristovão Tezza (2004)
Lembro Jamil Snege, atrás da mesa, cigarro entre os dedos: “Carnaval em Curitiba? Não dá. O sujeito pula na rua, alegrinho, vem o guarda e prende!” (…)
Tudo bem: não temos carnaval. Mas vejamos de outro modo: em vez de defeito, não seria esse um capital respeitável a ser mais bem-aproveitado? Uma importante cidade brasileira substancialmente avessa ao carnaval! São quatro ou cinco dias de silêncio, de grandes espaços vazios para caminhar – e toda a infraestrutura de lazer subaproveitada, teatros fechados, cinemas às moscas. (…).
Quanta coisa poderia ser programada nesse período! Desde a versão hard – digamos, um Festival Internacional de Música Sacra ou um Concurso Nacional de Canto Gregoriano —, até opções mais suaves, como, quem sabe, Encontros de Jazz Instrumental, algo assim, ou uma boa Mostra do Cinema Escandinavo, etc. São muitas opções. O único cuidado deverá ser vetar expressamente manifestações de MPB, porque atrás delas sempre há o risco de um trio elétrico aparecer e aí, bem, aí sai todo mundo correndo, acabou o carnaval curitibano e voltamos à estaca zero.
Cristovão Tezza nasceu em Lages, Santa Catarina, em 1952, e é radicado em Curitiba. É considerado um dos mais importantes autores da literatura brasileira contemporânea. É autor, entre outros, de livros como Breve espaço entre cor e sombra (Record, reedição; Prêmio Machado de Assis/Biblioteca Nacional de melhor romance), O fotógrafo (Record, reedição; prêmios da Academia Brasileira de Letras e Bravo! de melhor romance) e O filho eterno (Record, 2007; prêmios Portugal Telecom de Literatura em Língua Portuguesa, Bravo! e Jabuti de melhor romance). www.cristovaotezza.com.br
Texto publicado originalmente no “Caderno de Idéias”, nº 8, Curitiba, fevereiro de 2004. Adaptado para esta edição da Top View com autorização do autor.
DEPOIS DA CHUVA
Assionara Souza (2015)
Tirou os fones de ouvido e viu que a percussão dos pingos no vidro da janela havia parado. Chutou o edredom pra longe do corpo e caiu dentro de uma sandália azul, que arrastou pela casa enquanto vestia os shorts e corria ao espelho marcar de vermelho os lábios – um sorriso que há muito tempo não pousava naquele rosto abriu-se em brilho e fantasia. Seu rosto. Só seu.
Desceu as escadas a ponto de cair, conferindo o desfile de mensagens que não paravam de chegar. “Venha! Estamos aqui!”
Na pressa, quase quebrou um raio da bicicleta quando puxou-a da fileira triste que jazia naquele canto de garagem. Aliás, aquele espaço dizia muito do que acontecia nas ruas. Todo o privilégio para os automóveis. Era tempo de reinventar tudo de novo. Declarar uma nova revolução. Duas rodas: bom. Quatro rodas: bad!
Os pedais eram um carrossel veloz gravando serpentinas provisórias no asfalto úmido. Assim é a vida. Rápida e intensa. O vento vem e apaga os rastros do que já passou. Olhar pra frente. Ir adiante.
Pegou a ciclovia na altura da Mariano e seguiu por dentro do Passeio Público. Quando alcançou a trilha que ladeava o MON, o coração reverberava a marcação poderosa dos tambores de maracatu. Com as mãos firmes nos guidons, impulsionou o corpo pra frente, erguendo-se e acelerando a marcha até seu destino. Desceu. Estacionou. E abriu alas entre os que já se misturavam ao grupo com seus tambores, gonguês, agbês e etecéteras sonoros.
Seu amigo estava lá. E quando a avistou, desferiu uma sequência de batuques intensos girando com o tambor enlaçado ao corpo e trazendo ela pra roda.
Estava enfim livre daquele amor que prendia seus pés no chão; que cobria seus olhos com uma neblina de medo e ansiedade; e que em dias de sol a fazia refém em um apartamento mínimo cercada de chocolates e seriados de tevê.
Agora finalmente conseguia respirar melhor.
Era carnaval. Os galhos dos pinheiros e araucárias sambavam ao vento do entardecer. E lá no alto, a despeito de todas as previsões contrárias, o céu explodia de um azul magnífico.
Assionara Souza nasceu em Caicó (RN) e vive em Curitiba. Autora dos livros Cecília não é um cachimbo (7 Letras, 2005); Amanhã. Com Sorvete (7 Letras, 2010); Os hábitos e os monges (Kafka, 2011). Prepara para breve o livro Na rua: a caminho do circo, contemplado com a Bolsa Petrobras de criação literária (2013). A obra Amanhã. Com sorvete (Mañana. Con helado) foi traduzida no México pela editora Calygramma. www.facebook.com/NNaraAA
Texto inédito, criado pela autora a convite da TOP VIEW para esta edição especial sobre Carnaval.
SÓ PARA OS RAROS
Marcio Renato dos Santos (2015)
Os ponteiros dos relógios param durante um único dia no ano em Curitiba. É no sábado de Carnaval, em 2015, dia 14 de fevereiro. O tempo, então, abre espaço para algo acontecer, e algo acontece.
No início da noite, o asfalto da Marechal Deodoro vira mar e, naquelas águas, surgem caravelas. Acadêmicos da Realeza, Embaixadores da Alegria, Os Internautas e Unidos do Bairro Alto são alguns dos barcos tripulados.
Quem segue nas calçadas, em terra firme, nem lembra que aquela região, nos outros 364 dias, é palco de trocas e vai e vem que não para.
Cidadãos que se cumprimentam, conversam em voz alta e dão as mãos, para o mundo seguir, são os personagens da Curitiba atual, apresentada a todos, ali, naquelas horas, naquele cenário.
E, no domingo, antes dos primeiros raios de sol, o mar volta a ser asfalto, os relógios marcam novamente a passagem do tempo, o sonho – um longa-metragem – termina e poucos lembram o que passou. Mas o Carnaval de rua na cidade existiu, existe sim. É para poucos: só para os raros.
Marcio Renato dos Santos é escritor, autor, entre outros, do Dicionário amoroso de Curitiba (Casarão de Verbo, 2014) e de 2,99, livro de contos publicado pela Tulipas Negras no ano passado. Nasceu e vive em Curitiba. Acompanha o Carnaval de rua, atualmente na Marechal Deodoro, há sete anos. www.facebook.com/marciorenatodos.santos
Texto inédito, criado pelo autor a convite da TOP VIEW para esta edição especial sobre Carnaval.
O MILAGRE DOS PÉS
Rogério Pereira (2015)
O som escorre entre os prédios. Vem em minha direção. Estou às margens da avenida. A poucas quadras, desponta o pequeno exército colorido. O ruído atiça meus pés analfabetos. Não sei sambar, nem dançar a valsa preguiçosa no salão vazio. Sou péssimo quando alguma música tenta, de maneira desesperada, tirar-me do estático lugar onde apoio o corpo magro e desajeitado. Vim ao carnaval pelas mãos de uma namorada. A bateria se aproxima na penumbra da noite de fevereiro. Tudo é muito colorido. O daltonismo e a falta de sincronia com o som da cuíca me transformam num intruso. De repente, a surpresa.
Ele surge em meio à rala escola de samba. Está elegantemente trajado. Corteja uma mulata de vestido de plumas azuis (ou verdes, não sei). Faz-lhe a reverência do pequeno vassalo diante da rainha. Rodopia com adereços espetados na roupa cuja explosão cromática me cega. Usa chapéu e um pequeno bastão na mão direita. Como seus pés flutuam no piche esburacado do asfalto! Ambos sorriem muito. Os dentes brancos no rosto negro. O mestre-sala e a porta-bandeira.
Quando se aproximam da esquina, o susto. Sim, é ele — o menino tímido de canelas finas que nos encanta com dribles improváveis na várzea do Pilarzinho. Está diante de mim. Talvez me reconheça. Sorri ainda mais. Seduz com volúpia sua rainha. O público aplaude. Estático, vejo o casal se afastar em direção ao fim da avenida. Logo, o desfile vira uma réstia sob a iluminação improvisada. As silhuetas coloridas desaparecem. Permaneço imóvel na calçada de petit-pavé. Meus pés são incapazes de inventar um milagre.
Rogério Pereira é editor e fundador do Jornal Rascunho; cronista do site Vida Breve; diretor da Biblioteca Pública do Paraná e autor do livro Na escuridão, amanhã (Cosac Naify, 2013). www.vidabreve.com.br
Texto inédito, criado pelo autor a convite da TOP VIEW para esta edição especial sobre Carnaval.
*Fotos gentilmente cedidas à TOP VIEW para a edição especial de Carnaval
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Entrevista com Vlad Urban, organizador do Psycho Carnival
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