ESTILO CULTURA

Cotidiano em poesia: uma resenha sobre Miserere, de Adélia Prado, por Cris Lira

Cris Lira é mestre em Literatura Brasileira e estudante de doutorado na Universidade da Geórgia, nos EUA, onde dá aulas de português

Uma das angústias de alguém que ama ler é ter de categorizar suas leituras. Cada vez que ouço a pergunta: “Qual é o seu livro/autor favorito?”, confesso que sinto um leve tremor. Cada obra tem a sua própria personalidade e normalmente dialoga com o que há de intrínseco em nós de acordo com o momento em que a estamos vive(le)ndo. Há algumas semanas, fui questionada sobre o meu poema favorito. Há muitos, mas no momento me decidi por “Casamento”, da mineira Adélia Prado, composto da pureza da realidade, do desejo dos amantes despertado pelo roçar dos braços enquanto limpam peixes na cozinha.

Da memória oferecida pelo reencontro com esse poema querido, cheguei ao livro mais recente desta que é a maior poeta da literatura brasileira contemporânea. Miserere, que já carrega em seu título  o tom religioso tão presente em sua escrita, foi lançado em 2013 e é composto por 38 poemas que celebram temas que são constantes e próximos da autora.

O primeiro deles é o cotidiano, como se apresenta em “Nossa Senhora dos Prazeres”: “Não tendo mais o que fazer / a não ser esperar / que uma certa galinha vire meu almoço, / minha reza é deitar na pedra quente, / satisfeita e feliz como lagartixa no sol.” É das coisas mínimas e singelas que tecem o dia a dia que a voz lírica extrai o sumo da sua arte poética. Do cotidiano surge também o tema da religiosidade, não aquela distante, mas a que se experiencia desde uma aproximação muito particular, de dentro. Em “O Pai” esse contato com o divino aparece na delicadeza do diminutivo, “Deus não fala comigo / nem uma palavrinha das que sussurra aos santos./ (…) / Mesmo depois de velha me trata como filhinha. / De tempestades, só mostra o começo e o fim.”

Além desses, reaparece a questão da passagem do tempo, o processo de envelhecer cravado de lirismo. Há tantos poemas que abordam as tatuagens do tempo pelo corpo, “Minha mão tem manchas, / pintas marrons como ovinhos de cordona” do poema “Avós”, quanto aqueles que se debruçam na tentativa de compreender a passagem final, “A que não existe”, pois “O que chamamos morte / é máscara do que não há.” Outros diálogos reforçados com Miserere são o do erotismo e da metalinguagem. O primeiro é lembrado com “o calor do corpo [que] ainda não me deixou” no poema “Inconcluso”, após o sonho de amor que faz com que a voz lírica fique ofegante e ardente.  O segundo aparece através da antropofagia exercida pelo eu-lírico que após ter colocado um ponto final no poema começou “a lambê-lo a ponto de devorá-lo” em “Pontuação”.

De um tema a outro, Adélia Prado transforma as 24 horas do dia em matéria lírica e compartilha conosco a sua maneira de olhar a beleza da vida. Com a leitura de Miserere não só adentramos o cotidiano da poeta, mas também aprendemos a olhar o nosso dia a dia desde outra perspectiva.

“Ao minuto de gozo do que chamamos Deus,
fazer silêncio ainda é ruído.”

 

Poema “Num Jardim Japonês”, de Miserere, lançado pela Editora Record.

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