Há vida além do brigadeiro

Na confeitaria brasileira existe um ingrediente que comanda lá do alto. Não sabemos fazer mais nada sem ele. É a base do brigadeiro, do pudim de leite, do manjar, da cocada e de todos os doces que conhecemos muito bem e cujas receitas começam com “uma lata”.

A tal da latinha surgiu no século 19, uma época em que não existiam geladeiras para preservar o leite, um produto necessário para a alimentação das pessoas. Nutritivo e de vida curta, o leite começou sendo evaporado e guardado na latinha. Depois, foi adoçado. E foi assim que surgiu o leite condensado.

A lata chegou em nosso país nas asas de uma empresa que passou décadas dizendo à dona de casa brasileira que o leite condensado era a solução de todos os problemas. Todas as sobremesas possíveis estavam dentro da tal latinha. Isso foi muito bom – deu um impulso muito grande na criação de novos doces já que, até então, nossa doçaria devia quase tudo à herança europeia.

Mas nos 120 anos seguintes, nos tornamos totalmente dependentes dessa latinha. Somos o país que mais consome leite condensado no mundo – quase 1 kg por pessoa ao ano. Pesquisadores dizem que uma combinação de 50% açúcar e 50% gordura é viciante e faz disparar nossos níveis cerebrais de dopamina. Qualquer coisa doce e gordurosa nos deixa felizes – e isso não é surpresa.

O açúcar é o sol da alma – um doce é uma celebração de algo bom, uma recompensa, uma demonstração de amor, um grand finale para as refeições. Mas somos uma população de paladar achatado e mimado pelo leite condensado. Nem imaginamos que existe outro mundo sem ele. Qualquer outro sabor que queira aparecer precisa jogar no mesmo time – ser gorduroso e muito intenso, como o chocolate, o coco, o doce de leite e a banana.

Permanece desconhecido o universo de ganaches, cremes, frutas, castanhas, coberturas, mousses, caldas, merengues e outras maravilhas que parecem sem graça e sem sabor perto da latinha. O leite condensado é uma delícia, mas ele não precisa mais reinar absoluto. A riqueza da confeitaria mundial está ao nosso alcance. Uma confeitaria verdadeiramente brasileira precisa ser mais rica e mais interessante do que o conteúdo pronto de uma lata.

Pelo bem da futura riqueza gastronômica precisa existir vida além do brigadeiro. Acreditem, será uma vida saborosa, rica, diversa e surpreendente.

 

Carolina Garofani é pâtissière e proprietária da descolada Caramelodrama Confeitaria, uma casa de doces artesanais que funciona há dois anos em Curitiba e não usa leite condensado nas receitas.
Carolina Garofani é pâtissière e proprietária da descolada Caramelodrama Confeitaria, uma casa de doces artesanais que funciona há dois anos em Curitiba e não usa leite condensado nas receitas.

 

1 comentário em “Há vida além do brigadeiro”

  1. A ditadura do leite condensado no Brasil é maléfica tanto do ponto de vista gastronômico (nivela os sabores pelo dulçor extremo e falsifica receitas antigas) quanto do nutricional (faz explodir o consumo de açúcar). Por isso, muito bem-vindo o artigo! Porém ele traz algumas incorreções.

    O leite, no século 19, era visto principalmente como um alimento infantil e foi com essa função que a suíça Nestlé emplacou mundialmente seu leite condensado. Nesse período a confeitaria brasileira (como a mundial) ignorava a latinha.

    Tudo muda na década de 1940, quando avanços na pediatria / puericultura fizeram com que o leite condensado passasse a ser considerado impróprio para o consumo das crianças.

    A Nestlé não se deixou abater, lançando o leite em pó (o famoso Ninho), nova estrela da alimentação infantil (modernizado de tempos em tempos em versões próprias para bebês etc.)..

    Mas para o leite condensado não tinha volta: houve uma severa queda no consumo mundial, situação que dura até hoje, Menos no Brasil. Por que o Brasil acabou sendo uma exceção?

    Por uma estratégia tentada – com enorme sucesso – pela Nestlé do Brasil.

    Para tentar salvar seu produto mais famoso, a subsidiária brasileira procurou encontrar novos usos para o leite condensado, introduzindo o produto em uma série de sobremesas tradicionais brasileiras. A coisa foi profissional: a Nestlé contratou cozinheiras para criar as receitas adaptadas ao uso da latinha e promoveu eventos-teste e de divulgação.

    Um dos maiores sucessos foi o “novo” pudim de leite (que originalmente usava apenas ovos como aglutinante).

    A Nestlé passou a editar e distribuir livros de receitas que usavam seus produtos, leite condensado à frente.

    A lata passou a ser usada como medida para tudo, uma bênção para donas de casa cada vez menos treinadas para a cozinha. O leite condensado tornou-se um coringa para essas gerações de esposas mal treinadas, garantindo cremosidade e dulçor às sobremesas.

    Enfim, até 1940/50 o leite condensado não havia contribuído em nada à nossa confeitaria. E mesmo depois, o que as receitas da Nestlé fizeram foi basicamente alterar receitas tradicionais que muitas vezes não levavam leite (muito menos leite condensado), caso por exemplo de docinhos como camafeu de nozes e o cajuzinho de amendoim. O brigadeiro – criado em 1946 usando desde sempre leite condensado – é a grande exceção.

    Acima fiz um resumo da dissertação de mestrado defendida pela historiadora Débora Santos de Souza Oliveira, intitulada ‘A transmissão do conhecimento culinário no Brasil urbano do século XX’, disponível em pdf na internet. Há um capítulo inteiro contando a trajetória do Leite Moça no Brasil.

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