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Xeque-mate

Mulheres se destacam no xadrez há anos, mas minissérie traz luz ao cotidiano permeado por machismo e falta de representatividade que vivem as enxadristas

A enxadrista chega para o torneio, apresenta-se e logo começa a notar os olhares de desconfiança dos participantes presentes. Quando os jogos começam, seus rivais são majoritariamente homens – mais velhos. Todos subestimam o potencial de uma jovem vencê-los, mas ela termina o campeonato em primeiro lugar. Essa cena é da minissérie O Gambito da Rainha – a mais popular da história da Netflix –, mas representa uma realidade vivida cotidianamente por diversas jogadoras de xadrez, que somam apenas 15% do total de jogadores licenciados, segundo a Federação Internacional de Xadrez (FIDE).

Entre elas, está a enxadrista e treinadora de xadrez Vanessa Gazola. “Uma cena me marcou muito: eu ia jogar com um senhor bem mais velho e, quando ele viu que sua adversária seria uma menina, disse ao meu professor que estava tranquilo, porque sabia que ia ganhar. Nós empatamos”, relembra.

O preconceito, em muitos casos, é visto na forma de subestimação. “Já escutei muitas vezes comentários menosprezando meus títulos, desmerecendo as conquistas. Fora os bordões clássicos do tipo ‘perdi para uma mulher’. Os adversários subestimam por ser menina, por ser mais jovem”, analisa a enxadrista Ellen Larissa Bail, 21, que viralizou nas redes sociais ao publicar um relato sobre as situações difíceis enfrentadas pelas mulheres no esporte.

A enxadrista Juliana Terao, 29, hexacampeã brasileira, percebeu as diferenciações aos poucos. “Quando comecei, nem percebia. Só reparava que era uma das únicas meninas a participar. Em vários torneios, eu era a única menina. Quando fui fazer um tour de torneios na Europa, eu não me sentia confortável, porque só iam meninos na viagem e não tinha nem como dividir o quarto”, relembra.

A desigualdade é reforçada, ainda, pelos próprios campeonatos, que são divididos entre as modalidades absoluta, para todos os gêneros, e feminina. Na segunda, os prêmios são menores. Para preencher essa lacuna, existem diversas iniciativas que incentivam a participação das mulheres. O projeto Damas em Ação, da qual Gazola e Terao são integrantes, visa apoiar o xadrez feminino de base. Já o Rumo à Maestria pretende arrecadar fundos para o treinamento das meninas qualificadas para as Olimpíadas.

No Paraná, a Federação de Xadrez do Paraná conta com o Comitê de Xadrez Feminino, criado no ano passado. Bail faz parte do projeto.

(Foto: Arquivo Pessoal)

“Temos muita coisa para desenvolver ainda, mas queremos incentivar o xadrez feminino e dar mais segurança para as mulheres falarem como se sentem.”

As jogadoras reforçam que ter mulheres à frente pode, também, dar mais acolhimento em casos de assédio. Para Maria, outra parte importante é a possibilidade de o comitê propor mais torneios femininos.

Mas nem sempre é assim. Entre os competidores mais jovens, ainda há uma participação equilibrada das meninas. “Nas categorias sub-10 até sub-14, há mais meninas. Depois, nos campeonatos para adultos, elas começam a sair. Em um torneio muito forte, não vemos nem ¼ de mulheres entre os participantes”, conta Bail. “Para as mulheres, o xadrez ainda é visto como um hobbie – as pessoas não veem como uma profissão.”

A estudante Maria Eduarda Beraldo Buiar, de 14 anos, trocou o balé pelo tabuleiro aos oito anos. Hoje, já percebe as adversidades, mas pretende persistir no sonho e, se possível, conquistar o título de Grande Mestre.

(Foto: Arquivo Pessoal)

“Acho que deveria ter mais mulheres, porque muitas não jogam por medo que seja um jogo que não se encaixe para elas.”

Um esporte desvalorizado

Vanessa e Juliana vivem do xadrez, privilégio que não é compartilhado por todos os que tentam a vida no esporte. Para Gazola, a falta de incentivo atinge a todos, mas é ainda pior para as mulheres. “Ninguém consegue viver bem jogando xadrez no país, nem homens nem mulheres. Não temos patrocínio nem incentivo. Para sobreviver com o xadrez, tem que dar aula”, opina. Apesar dos desafios, a enxadrista já chegou a competir nas Olimpíadas, em 2008, 2010 e 2012. “Eu amo xadrez, é um prazer estudar e ver xadrez. Eu vejo beleza no jogo. O xadrez me deu tudo o que eu tenho hoje, a minha vida.”

O momento, no entanto, nunca foi melhor. Em especial impulsionado pela série da Netflix, o xadrez está vivendo seu auge – ganhando mais respeito e gerando interesse em pessoas de todas as idades. Uma semana após a estreia da série, as buscas pelo esporte aumentaram 41%,segundo o Google Trends. “A série ajudou muito, com uma mulher como protagonista. Deu visibilidade e uma forma de enxergar o esporte de outra maneira. Por que eu, mulher, não posso ser a melhor em uma área dominada pelos homens? Isso planta a sementinha”, questiona Terao.

*Matéria originalmente publicada na edição 247 da revista TOPVIEW. 

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