SELF

Texto para mais um ano, um ano a mais, um ano novo

Crônica editorial, por Caetano Galindo

Dias antes do aniversário de 20 anos da minha filha, meu sobrinho de quatro anos caiu de um brinquedo de parquinho e teve que sofrer uma intervenção cirúrgica. Coisas da vida. Ela sabe ser dura. Sabe te quebrar os ossos. Por causa da hospitalização (uma noite só: ele já está bem), minha sobrinha pequena veio passar a noite aqui em casa. Voltei à infância das minhas capacidades de cuidador de crianças pequenas. Voltei quase vinte anos no tempo. Coisas da vida. No meio da madrugada ela acordou assustada e não conseguia mais voltar a dormir na caminha que a gente tinha improvisado. Era tentar largar no colchão que ela estrilava. Eu disse pra minha mulher apagar a luz e fui pra sala com ela, ver se logo ela dormia mais profundamente e eu trazia de novo, tentando garantir o melhor sono possível pras duas. Ao menos o plano era esse. Imaginei que em meia horinha estaria de volta na cama. Mas não. Passei cinco horas acordado no sofá, com ela dormindo no meu colo. Primeiro aos trancos, assustadiça. E cada vez mais fundo. Mais em paz. E fui me deixando ficar, ali no escuro, olhando pra ela. Porque um bebê adormecido é como o mar. Você pode se entregar a todo tipo de reflexão enquanto contempla aquela paz, aquele potencial. Os oceanos de que um dia saiu a vida toda do planeta. O envelope miúdo de que gradativamente vai se desenrolar uma vida inteira. Muitas vidas. Além do escuro, no sono eu saí do quarto sem os óculos. Acho que foi a primeira vez em décadas que passei tanto tempo sem óculos. E por causa disso eu olhava pra ela não só por sobre o abismo dos 43 anos que nos separam, mas através de uma espécie de névoa, através de um tipo de véu. Coisas da vida. E é normalmente nessas situações que a gente acaba vendo face a face.

Acaba encarando a verdade do outro lado do abismo, no meio da neblina que sempre dá um jeito de encobrir o outro, os outros. Era uma das últimas semanas do ano de 2017. Um ano que, por tantas e tantas, tamanhas razões, parece ser desejável, senão esquecer, ao menos superar o mais rápido possível. Um ano em que raiva, cegueira e divisão parecem ter atingido níveis que a gente mal conseguiria imaginar pouco tempo atrás. No Brasil, no mundo todo. Estávamos a poucas semanas do começo do ano de 2018. Um ano que não se anuncia como potencialmente muito melhor. Ano, ainda, em que as eleições devem de novo trazer à tona o pior em todas as vozes, o mais duro em todas as posturas. Ano de confronto Ano de mudança? Antes da cirurgia do meu sobrinho, eu, ocultando a minha própria preocupação, dizia pro meu irmão tentar ficar tranquilo, que tudo ia dar certo. Como deu. Às quatro horas da manhã, vendo no escuro enevoado o rosto da menina que dormia, eu pensava se ainda consigo imaginar que tudo (tudo) vai dar certo. Pensava que quando ela tiver a minha idade eu não devo estar por aqui: não vou saber então, como não posso saber agora, em que tipo de mundo ela, mulher, brasileira, pessoa, há de viver. E hoje pareço ter motivos pra recear. Mas ao mesmo tempo eu lembrava de uma outra noite, 31 de dezembro de 1997, minha filha de menos de duas semanas apavorada com os fogos, capaz apenas de dormir deitada na minha barriga.

E foi como eu passei a noite. Acordado. E hoje… Hoje ela é melhor que eu. E membro de uma geração em tudo e por tudo melhor, mais ativa, mais consciente, mais bem-educada e mais bem alimentada que a minha. Uma geração que já está deixando suas marcas, e que já deixou muito claro que não pretende mesmo passar sem deixar marcas. Uma geração que vai ter uma chance a mais no ano que vem. E eu acredito neles. E até por isso acredito na geração também da minha sobrinha (duas mulheres, fator nada irrelevante). Acredito mesmo que em 2060, quando ela estiver com 44 anos, não apenas o mundo será um lugar menos indecentemente duro, injusto e violento… acredito que ela vai ser capaz de olhar para 2017 e 2018 e ver não um espelho de 1917-18 (como às vezes pode parecer), mas um período turbulento no caminho rumo a algo mais pleno. Acredito que ela vá poder rir das memórias da fratura e da recuperação do irmão. Junto com ele. Acredito que os tempos ruins terão ficado pra trás.

Acredito que eles dois, e os milhões de crianças e bebês de hoje, vão fazer algo para que isso aconteça. Vão ter mais condições e mais vontade. E vão conseguir. Eu acredito naquele rosto. Eu acredito em você, Clarinha. Até porque você já é a prova. Porque, quando os teus pais a adotaram, quando você se transformou na minha sobrinha, eles deram justamente prova da existência de gente melhor. Da possibilidade de se alterar uma vida, de se mexer no conteúdo de um envelope ainda fechado. Mostraram que daquele oceano de possibilidades, detrás da névoa da nossa miopia pessoal, pode sempre surgir um continente novo. Possibilidades. Amor… coisas da vida. Ela sabe ser assim. Sabe te amolecer as pernas.

Feliz ano novo.

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