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Avós, cigarras e sucrilhos: notas sobre sororidade

Leia a crônica da escritora Wal Dal Molin

Como tratamos na matéria de capa “Mulheres no mundo: unam-se” da edição de dezembro, sororidade tem diversas dimensões – e pode ser percebida em vários tipos de relação entre mulheres.

A advogada e escritora nas horas vagas Wal Dal Molin escreveu uma crônica exclusiva para a TOPVIEW sobre sororidade.

“Na vizinhança das coisas sem relação, ajusto o relógio para às 5h e acrescento as últimas notas no meu caderno-clichê de capa dura vermelha: descobri que Xamego foi a primeira palhaça negra do Brasil; que o inventor dos sucrilhos era inimigo do clitóris e que Maria Anna, a irmã de Mozart, foi uma musicista maravilhosa. Também: um time foi campeão. Uma celebridade faleceu. O meu bairro foi invadido por cigarras e um bougainville vestiu de rosa um pinheiro próximo de casa. Às 5h posso tomar um bom banho e secar os cabelos com dignidade. Amanhã é mais um dia de levar os filhos, trabalhar, fazer, comprar, terminar, escrever, pagar, suar e não engordar. Nesse não lugar entre hoje e amanhã, penso no processo de construção de uma palhaça. A maquiagem, o sapato, o nariz vermelho, as piadas. É muita coisa. Talvez ela tivesse que acordar às 4h pra dar conta de tudo. Eu descobri Xamego no documentário “Minha avó é um palhaço”. Ela assumiu a personagem quando o marido adoeceu, mas o fez no anonimato, confirmando a tese de Virginia Woolf. Era anos 40 e o público não poderia saber que Xamego passou a ser interpretado por uma mulher, a Maria Elisa, a avó da palhaça Birota. É uma boa história contada pela neta. Não sei se Maria Anna teve netas. O que sei é que os textos dizem que ela era uma musicista habilidosa, perfeita e que fazia duetos com Mozart. Mas chegaram os 18 anos, o casamento, filho e uma carreira interrompida. Penso no processo de desconstrução de uma musicista. Será que ela dedilhava entre uma troca de fralda e outra? Me conforta imaginar que ao menos Maria Anna nunca comeu sucrilhos. Lembrei da lista de compras. Acendo a luz. Risco sucrilhos e acrescento amendoim e paçoca. Ostras talvez? Fleabag olharia para a câmara agora. Apago a luz. Ajusto o relógio para as 05h30 (um banho mais curto agora) e lembro da palestra de outro dia. O ator cômico disse que o nariz vermelho é sempre uma autorização. Uma autorização para o lugar da rebeldia, do anárquico, do fracasso, do desajuste. Para novos personagens. Um nariz vermelho amanhã cairia bem. Eu poderia dormir um pouco mais e não secaria o cabelo. Acho que o processo de construção começa por aí e também por um sapato grande e confortável. Ou seria melhor, desconstrução? Roupas (in)adequadas. Risos soltos e aquela marginalidade estrangeira que Christian Dunker lindamente nos conta no livro sobre a escuta: Tornar-se palhaço é encontrar esse lugar de estrangeiro no interior de uma situação familiar. Mas é também tornar-se conhecido dentro do estrangeiro. O estrangeiro que habita em cada um de nós. Meia noite dando as caras e eu sigo no picadeiro dos devaneios e no cultivo das olheiras. Tudo bem. Já entendi que elas são absolutamente fundantes da existência de todo o ser que deseja romper o cíclico “dia da marmota” em verbos no infinitivo: dormir, acordar, fazer, levar, comprar, terminar, escrever, pagar, suar, não engordar. A verdade é que gosto de pensar que minhas notas são o meu exercício noturno de sororidade. Uma espécie de ação hamster que toda noite revisita a roda da história gerando um contingente bom de energia, afeto e empatia por aquelas, essas e tantas outras mulheres esquecidas. Apago a luz e faço notas mentais no clichê vermelho: a vida das cigarras é uma advertência. Não como a de Olavo Bilac citando Ortigão, para sua Amélia. O grande autor, descontente com a publicação de um soneto de sua noiva, disse a ela que o primeiro e grande dever de uma mulher honesta é não ser conhecida. Recomendou assim, que ela escrevesse tantos versos quando desejasse, mas somente para seus irmãos, amigas e principalmente para ele. Jamais para a humanidade. As cigarras vivem um bom tanto de sua vida embaixo da terra, algumas até durante 17 anos. Um belo dia de primavera decidem sair e gritar. A ciência irá dizer que esse grito é de acasalamento e feito pelos machos. Já a literatura poderá dizer que é o som da existência. Estamos aqui humanidade. Existimos e não é possível nos ignorar.”

“A verdade é que gosto de pensar que minhas notas são o meu exercício noturno de sororidade. Uma espécie de ação hamster que toda noite revisita a roda da história gerando um contingente bom de energia, afeto e empatia por aquelas, essas e tantas outras mulheres esquecidas.”

Conheça Wal Dal Molin

Wal é escritora, filósofa e advogada colaborativa. A curva da letra igualzinha à sua é seu primeiro livro de contos. Nasceu em Londrina, em um ano ensolarado.

Os documentários e filmes mais interessantes de sororidade

Jogo de Cena (Eduardo Coutinho)

O diretor publicou um anúncio no jornal convidando mulheres para contar suas histórias. Atrizes também encenam as entrevistas reais.

Estamira (Marcos Prado)

Ela viveu em um aterro sanitário no Rio de Janeiro e sofre distúrbios psíquicos, mas tem reflexões poéticas e interessantes sobre o mundo. Trata da vulnerabilidade e pobreza da mulher.

Aquarius (Kleber Mendonça Filho)

Trata da representação das mulheres acima de 50 anos, do envelhecimento e da sexualidade. Há lugar para o envelhecimento da mulher na sétima arte?

Agnus Dei (Anne Fontaine)

Inspirado na médica francesa Madeleine Pauliac, que, em 1945, auxilia freiras polonesas grávidas, vítimas de estupro. Trata de maternidade e da solidariedade entre mulheres.

*Matéria originalmente publicada na edição 231 da revista TOPVIEW.

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