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A revolução do pornô feminino – que não tem nada de soft

Sai a figura da mulher como objeto. Entram em cena relações focadas no prazer feminino. No pornô feito para elas um novo universo se abre

A partir desta linha, é preciso abrir a cabeça e se desprender de preconceitos. Combinado? Então tá. Se até então os filmes pornôs expunham relações irreais e papéis estereotipados (mulheres maquiadas, bem-arrumadas; homens de biotipo atlético e membro avantajado), hoje esse tipo de entretenimento vai para um novo caminho, mais próximo da realidade. Além de instrumento de prazer, esses vídeos podem ser bastante educativos, na medida em que mudam nossas percepções de gênero e abrem espaço para as muitas sexualidades existentes.

A começar pelo desenvolvimento crescente do chamado pornô feminino, voltado para as mulheres e focado no prazer delas. Porque, sim, elas consomem – e cada vez mais – pornô. Só em 2018, o Pornhub – um dos sites adultos mais acessados do mundo, com 20 milhões de usuários registrados – viu seu número de visitantes mulheres crescer 29%, em relação a 2017. Elas representam 26% do público total.

Para Fernanda Cabral Bonato, psicóloga e membro do Núcleo de Diversidade de Gênero e Sexualidade do Conselho de Psicologia do Paraná, o tabu em torno do pornô está enraizado em uma frágil educação sexual. A falta de conhecimento, por sua vez, resulta em um desconhecimento sobre o próprio corpo e as formas de obtenção de prazer. “Isso recai sobre a pornografia – as pessoas não falam muito, apesar de acessarem significativamente. E, quando a gente fala de pornografia vinculada à mulher, ainda há muito resquício dessa educação repressora”, completa.

Afinal, é necessário considerar a diferenciação entre a educação dirigida aos homens e às mulheres. Enquanto a eles é permitido olhar e falar, com elas, isso não acontece. “A mulher não é ensinada a olhar, se tocar, e isso interfere no desejo dela”, observa a psicóloga. Assim, é fácil cair no discurso de que “homens são visuais e mulheres mais auditivas e olfativas”, quando ambos foram educados para tal.

Ela lembra que, embora tímidos, os números mostram uma mudança expressiva, derivada dos últimos 30 anos. “A gente está falando de uma mudança que ocorre junto com essa revolução tecnológica. De 1980 a 1990, as pornografias estavam nos vídeos que a gente precisava alugar, em uma parte separada nas videolocadoras”, recorda. Hoje, com o celular, criou-se um novo padrão de comportamento, mais independente, e os vídeos anteriormente feitos exclusivamente para homens heterossexuais agora são voltados também para homens gays, mulheres lésbicas e mulheres heterossexuais. “A vantagem é que as diferentes orientações sexuais estão muito mais representadas”, define.

As brasileiras estão na frente!

No relatório do Pornhub, divulgado em dezembro passado, as brasileiras estão entre as que mais consumiram pornografia em 2018. Aparecemos em 2º lugar entre as que mais acessaram o site, atrás apenas das filipinas: 35% dos usuários brasileiros são mulheres. Além desse dado relevante, o parecer revelou que o termo “lésbicas” é o mais buscado pelo público feminino. A advogada Júlia Possetti, 30 anos, é uma das que consome esse tipo de conteúdo.

Bissexual, mas com uma preferência maior por mulheres, ela admite que algumas vezes os vídeos a ajudaram também a se sentir mais segura com um homem. “Gosto de assistir para aprender um pouco.”

Segundo a ginecologista, sexóloga e parceira da boutique erótica Innuendo, Nelly Kim Kobayashi, as mulheres que consomem pornô podem aprimorar a vida sexual em muitos aspectos. “Pode melhorar o desejo, a excitação, o prazer e, inclusive, facilitar o orgasmo. Estimula a fantasia e a imaginação, além de ajudar a mulher a ser mais aberta ao sexo”, define. Ela, inclusive, já prescreveu esse tipo de filme para muitas pacientes – “Elas têm gostado muito!”, afirma.

Foi o que percebeu a coordenadora de marketing Ana Gomes, de 37 anos. Casada há 13, ela assiste semanalmente – na maioria das vezes, acompanhada do marido. O interesse surgiu na adolescência, quando via escondida as revistas pornô do irmão mais velho e alguns filmes em fita-cassete. “Mas sempre tive muito medo de ser descoberta, então nunca consegui ver os filmes inteiros”, pondera. Com a rotina e os filhos, o interesse se perdeu. Um dia, zapeando na TV, parou em um canal erótico. “Meu marido viu que eu curtia e passamos a ver juntos”, conta. Para eles, os filmes são “uma preliminar das preliminares reais”.

Feito para elas e por elas

O novo olhar sobre o “sexo real” está cada dia mais inserido na atualidade, na medida em que vem sendo difundido pelas mais populares artes: o cinema e a televisão. Haja vista as cenas de sexo bastante verossímeis do extinto seriado Girls, da HBO, assim como o longa Love (2015), de Gaspar Noé, com chocantes duas horas de sexo explícito, ou o sucesso-pop Azul É A Cor Mais Quente (2013), de Abdellatif Kechiche.

No desejo de mostrar um pornô mais feminino, as próprias mulheres estão empreendendo nesse mercado ainda tão dominado pelos homens – inclusive as brasileiras. A paulista Lívia Cheibub, que vive em Nova York, é sócia e diretora criativa do Wild Galaxies, um coletivo de cineastas mulheres que nasceu da vontade de ressignificar a relação com a sexualidade e, principalmente, com o prazer e o corpo feminino. Em 2017, ela lançou Landlocked, filme que foi selecionado para a 13ª edição do Pornfilmfestival de Berlim, em 2018.

Em Landlocked (2017), filme pornô independente de Lívia Cheibub, ambientado em Berlim, Joana é uma recém-chegada à cidade que, ao conhecer Thomas, experimenta uma relação breve e apaixonada na qual inseguranças são confrontadas.

Em entrevista por e-mail, Lívia explica que, ao contrário do pornô mainstream, no qual os homens são os atores principais, o pornô feminista respeita os corpos, os gêneros, os atores e fortalece o prazer da mulher como algo legítimo. “Vemos tantas mulheres gritando de prazer, mas não vemos muito sobre como alcançar esse prazer”, frisa. A diretora reforça a censura sofrida inclusive pelas redes sociais. “Derrubam fotos, derrubam o filme. Não posso usar as ferramentas de vendas nas redes sociais. (…) O nosso prazer e o nosso desejo sexual não podem significar algo perigoso ou impuro. (…) Precisamos falar sobre consentimento, clitóris, toque, #orgasmosemcensura.”

Quatro anos atrás, a jornalista inglesa Zoe Williams já analisava o pornô feito para mulheres em sua coluna no The Guardian. Em um artigo dedicado ao tema, ela desconstrói a ideia de que a pornografia feminina é mais suave e polida, uma versão mais pesada das novelas diurnas. “Você pode dizer o que quiser sobre pornografia convencional, mas não pode dizer que parece real.” Já no pornô para elas, ao invés de mulheres submissas e punidas, atrizes tendem a parecer mais humanas – inclusive pelos variados tipos de corpos, como na vida real. “É incrivelmente confrontante assistir. (…) É como se estivesse vendo um momento sexual real”, afirma.

Matéria originalmente publicada na edição 221 da revista TOPVIEW.

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