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Sandro Luiz Fernandes: Futuro da sociedade brasileira

Confira a quarta parte da matéria principal "Vozes que pensam o amanhã", na edição 237 da revista

Cientista social, mestre em Educação e professor de História e Sociologia na rede municipal e particular de ensino e do curso preparatório Dom Bosco.

O que esta pandemia tem mostrado sobre a nossa sociedade?
A principal questão que podemos colocar como ponto de mudança de comportamento é enxergar que nós podemos mudar, que podemos aprender. Por exemplo, em relação ao home office, ao e-commerce. Gente que nunca comprou e nunca vendeu pela internet está fazendo isso agora. Pessoas que nunca pensaram em fazer trabalho remoto.

Como essas grandes crises impactam a sociedade?
Acho que trazem mudanças possíveis. Estamos passando por algo delicado e não sabemos muito bem onde isso vai dar. A Segunda Guerra Mundial, por exemplo, trouxe uma mudança política sensível na Alemanha. Depois dela, [tivemos] a formação da ONU, que foi fundamental para pensar uma política globalizada. No Brasil, também: Getúlio Vargas cai. Nos EUA, a crise de 1929 provocou mudanças importantes e lá se estabeleceu o estado de bem-estar social, que durou alguns anos no país e depois foi para a Europa. Uma nova política surgiu depois da crise de 1929, principalmente da presença do Estado. Estamos falando de eventos políticos, imperialistas, mas não podemos nos esquecer dos eventos naturais. Eles provocam transformações sociais significativas, como o terremoto no Haiti. [O país] até hoje não conseguiu se reerguer. Esses grandes eventos provocam transformações, sejam eles naturais ou político-econômicos. Aqui no Brasil, hoje, a gente vê uma valorização maior do Sistema Único de Saúde. Talvez as pessoas nunca tivessem pensado no SUS. Agora, as pessoas estão pensando nisso. Penso que as grandes crises do mundo nos ajudam a repensar e, sem dúvida, criam possibilidades de mudança.

Como a população vai ser afetada?
No comportamento das pessoas, nas dinâmicas sociais… A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) está preparando um relatório para pensar isso. A primeira coisa que temos que destacar é que cada país do mundo, até cada região de cada país, vai ter algo diferente para contar sobre isso. Algo que vai acontecer, no Brasil, sem dúvida, é a ampliação do e-commerce e do trabalho remoto. Isso é uma coisa interessante, porque vai gerar um tipo de redução de custo para as empresas. Estou falando de professores, mas pense em contadores, engenheiros, arquitetos. Muitas pessoas já faziam isso, inclusive. Com a presença da Covid-19 e a obrigatoriedade de isolamento social, isso aumentou exponencialmente – e acredito que isso vai ser uma mudança significativa. A maneira como as pessoas lidam com os horários do dia a dia também vai
mudar. Eu chegaria a arriscar que até a educação presencial vai mudar. Eu tenho dado aula e algumas atividades que eu faço com os alunos não precisam ser presenciais – por exemplo, a assistência a eles.

O que nossa sociedade ensina a outros países e o que ainda precisamos aprender?
[Agora] o brasileiro está servindo como exemplo negativo no mundo todo. Estamos demonstrando, infelizmente, uma certa incapacidade de lidar com a pandemia, do ponto de vista político. Do ponto de vista científico, estamos conseguindo mostrar que o Brasil é um país sério. Teve uma cientista brasileira [Jaqueline Goes de Jesus], negra, que conseguiu sequenciar o vírus. Isso tem impacto positivo fora do país. [Falando no
geral] acho que uma coisa que o brasileiro demonstra é o enfrentamento da vida e dos problemas de maneira
não arrasada. Acho que isso é uma característica positiva. Pelo menos essa é a impressão que as pessoas de fora têm de nós, [a de] que a gente consegue rir da desgraça – não em uma conotação negativa, mas no jeito de enfrentar. O que deveríamos aprender com o exterior é levar a educação e a ciência a sério. Não é só o presidente [Jair Bolsonaro] que é ignorante em relação a isso, mas, de um modo geral, o brasileiro não leva a ciência e a educação a sério. Eu dou aula há muito tempo e percebemos [professores] o quanto os alunos têm uma posição muito passiva em relação à educação. Sabemos que em outros países do mundo não é assim, como na Índia, na Rússia, no Japão, nos países escandinavos. [Lá] os alunos querem e buscam o conhecimento. No Brasil, somos muito indisciplinados em relação aos estudos e à importância da ciência no cotidiano. Sinto que não dão tanta importância à educação como uma forma de melhorar a situação social do Brasil. Não é culpa só do aluno, é uma questão do sistema como um todo, seja a comunidade, os pais, os alunos, o corpo docente da escola, a equipe pedagógica. A gente sabe que os países que têm um IDH e um desenvolvimento alto, principalmente um desenvolvimento mais sustentável, investem muito em educação e em pesquisa. Temos que aprender. Vemos hoje o que pode soar como uma contradição: temos os movimentos sociais com muita força e, ao mesmo tempo, uma onda de conservadorismo da extrema- direita também ganhando espaço.

Como você analisa esse cenário?
Eu acho que é o contrário: tem uma onda progressista agora. O conservadorismo está muito mais presente na história da humanidade do que o progressismo. Tivemos uma onda do movimento negro, a partir dos anos 1960, com o auge no fim dos anos 1990, no Brasil, quando a gente teve a aprovação do estatuto da igualdade racial. A mesma coisa com os indígenas, o movimento LGBT ou a questão das mulheres – do avanço do feminismo –, os deficientes físicos. Todas essas minorias conseguiram um avanço significativo no país, principalmente nos anos 1990 e 2000. Na verdade, foi uma onda progressista muito grande, com muitos progressistas próximos ao governo, seja do FHC [Fernando Henrique Cardoso], do Lula ou da Dilma [Rousseff], pessoas que marcavam sua presença ali. Essas pessoas conseguiram fazer marcos significativos de mudança. Esse período progressista foi muito importante, mas, agora, por várias questões, não consigo analisar uma questão nacional, mas acho que é uma tentativa de algumas pessoas que perderam espaço social, ou imaginam que perderam, de querer resgatar isso. [Querem questionar] esse conservadorismo que diz que é “mimimi” a reivindicação feminista ou dos negros e a ideia de meritocracia. É uma questão delicada, os movimentos que querem pelo menos garantir o que foi estabelecido têm que correr atrás. Veja que, por exemplo, os trabalhadores, de um modo geral, perderam muito já no fim do governo [Michel] Temer, com a Reforma Trabalhista. Os movimentos organizados, seja feminista, negro, dos deficientes físicos, indígena, têm que ficar muito próximos ao que está rolando no país. Têm que ficar de olho e, sempre que vier algo contra esses avanços sociais significativos, denunciar, ir para a luta, ir para a rua, fazer uma contraofensiva. A imprensa também tem um papel importante.

“Estamos demonstrando, infelizmente, uma certa incapacidade de lidar com a pandemia, do ponto de vista político. Do ponto de vista científico, estamos conseguindo mostrar que o Brasil é um país sério.”

Falamos, hoje, no Brasil, de uma sociedade bastante polarizada politicamente. Como chegamos a isso?
Já havia polarização no Brasil. No período militar, tivemos polarização de dois lados. Quando vem a democracia, depois das Diretas Já e da formação de novos partidos a partir de 1980, essa polarização recrudesce, diminui. Mais atores sociais, pessoas e grupos passam a ter voz. O grande problema foi, de uma certa maneira, midiático. A mídia apostou que o PT estava roubando muito – e realmente estava. Não só o PT, a gente tem que se lembrar disso. Falamos mal do PT, mas não se esqueça de que, para o PT estar no poder, ele se associou a vários partidos, inclusive  PP e o PMDB, que agora apoiam o Bolsonaro. Então a gente tem essa polarização porque tanto a imprensa brasileira polarizou a discussão, colocando como inimigo o PT, quanto o grupo do Bolsonaro se aproveitou disso e criou o “meu inimigo”. Isso já foi feito outras vezes no Brasil. [O ex-presidente] Getúlio Vargas também polarizou. Ele disse: “eu sou do bem e os comunistas querem tomar o poder.” Foi o golpe de estado de 1937. Então o comunismo tem sido considerado como um “inimigo” em outras épocas? Cria-se um inimigo palpável e ruim para lutar contra ele. Se não tivesse inimigo, por que a imagem do
Bolsonaro seria tão agressiva? “Quem é meu inimigo? É o PT. São os comunistas. São esses esquerdopatas.” Assim, ele cria o inimigo. É curioso que, naquela reunião que foi divulgada, ele disse: “é, porque os nossos inimigos…” Nunca vi um chefe de estado falando que tem inimigo do país. Os chefes de estado que acompanhei falam “tem nossos adversários políticos, tem a oposição”. Que inimigos? A gente quer tomar o Brasil de alguém? É ridículo isso. Mas eles criam isso porque é fácil do povo entender. Como Getúlio Vargas fez, como os militares também fizeram. Não é uma estratégia nova do Bolsonaro, é bom se lembrar disso. Criar um inimigo é mais fácil – e as pessoas caíram nesse conto do inimigo comum. E aí sim, criar essa polaridade foi uma estratégia política boa do Bolsonaro e, de certa forma, uma parte da esquerda comprou a briga. E não é
isso, é muito mais amplo do que essa discussão facebookiana ou twitteriana. A gente sabe que a política não é só esquerda e direita. Tem muitas variáveis nesse meio.

“A gente sabe que a política não é só esquerda e direita. Tem muitas variáveis nesse meio.”

No mês de abril, Bolsonaro participou de uma manifestação, em meio ao isolamento social, em que os participantes pediam o golpe militar, o AI-5 e o fechamento do Supremo Tribunal Federal e do Congresso Nacional. Ou seja, em 2020, estamos colocando em xeque a democracia. Isso preocupou muita gente.
Tem uma falta de memória. E aí entra a educação, como nosso processo educativo e a nossa memória de Brasil é ruim. [Falando sobre os] períodos democráticos brasileiros: primeiro, a República da Espada não conta, deram um golpe no Dom Pedro I. Aí vem a República Velha, com os presidentes oriundos de Rio de Janeiro, de São Paulo e de Minas Gerais. Aquele circuito que tinha voto de cabresto, voto de gente morta, não era democracia. Vem Getúlio Vargas e dá um golpe de estado. Quando teria eleição, dá outro golpe dentro do golpe. Então o primeiro período democrático que nós tivemos foi a partir da eleição do [Eurico Gaspar] Dutra, por 19 anos. Aí vem a ditadura militar. Então estamos no maior período democrático – vem de 1990 até 2020. 30 anos de democracia, para o Brasil, é um absurdo de tempo, mas, no geral, é muito incipiente. Não entendemos direito as nossas instituições e como funciona um partido político. É um sistema que funciona muito bem em outros lugares do mundo, mas, no Brasil, a gente não entende… tudo isso ajuda a deixar nossa democracia frágil, porque as pessoas não sabem nem como votar. Não encaramos o país ou o estado como algo em que as pessoas têm que disputar questões de interesses diferentes. As pessoas encaram a política como lugar para realizar seu sonho pessoal de conseguir um carro melhor, um apartamento, os contatos melhores. Isso só vai mudar quando a gente tiver democracia durante mais tempo – e com participação social. Estamos aprendendo muito agora. Imagine dar um golpe agora? Voltamos para o zero de novo. Parar a democracia agora é uma burrada. Ainda estamos aprendendo. Ainda somos uma “criança” no ponto de organização política e social.

Como você analisa a maneira como tratamos a ditadura?
No Brasil, a gente demorou muito para discutir o problema dos militares. Isso começou a acontecer no fim do governo FHC, o Lula deu um pouco de continuidade e a Comissão da Verdade foi criada apenas no governo da Dilma. Funcionou durante um bom tempo e o Bolsonaro caçou isso. Tem esse problema político, que os militares conseguiram escapar, principalmente com a questão da anistia, do [ex-presidente Ernesto] Geisel, em 1979. Com a questão da anistia, Geisel consegue minimizar isso. A Dilma, principalmente, retoma o tema e tenta indenizar pessoas que desapareceram ou foram assassinadas. Mas isso ainda foi muito pouco. Tem um mea-culpa que deve ser feito pela educação brasileira. E, quando falo em educação, é para ampliar essa discussão, que vai além da escola e tem a ver com a mídia, como nossa história é contada fora da escola e como isso é significativo na vida das pessoas. Infelizmente, não conseguimos dar conta de mostrar os problemas gerados a partir dos militares: endividamento muito grande, corrupção, desaparecimento de pessoas, tortura. Tudo isso é muito delicado e não temos isso como memória coletiva. As pessoas têm que aprender a fazer relações, pensar de uma maneira diferente e entender que o momento dos militares teve os seus problemas. Não adianta comparar o momento dos militares com agora e falar: “ah, mas na época dos militares era um paraíso viver no Brasil.” Era nada. Tinha os problemas daquela época.

*Matéria originalmente publicada na edição #237 da revista TOPVIEW.

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